Sociedade

‘Vada a bordo, cazzo!’

Vivemos num período do ‘salve-se quem puder’, mas a História não perdoa personagens como Schettino, o comandante fujão do navio

O comandante do navio de cruzeiro "Costa Concordia", cujo naufrágio na sexta-feira causou a morte de 11 pessoas e 20 desaparecidos, foi libertado durante a noite e levado a Meta di Sorrento, no sul da Itália, onde cumprirá prisão domiciliar, informou a imprensa italiana. Foto: Andreas Solaro/AFP
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Era fatal. Toda vez que acusava meus medos de dormir sozinho no quarto, atravessar o corredor para beber água de madrugada, pedalar sem rodinhas pelo quintal ou atravessar as raias da piscina sem boia, alguém mais velho me encarava e perguntava, em tom de desafio: “Mas você é homem ou é um saquinho de pipoca?”

Às vezes, de tanto medo, dava até vontade de dizer: “saquinho de pipoca”. Na infância, poderia ser menos apavorante ser um saquinho de pipoca, seja lá o que isso significasse, do que enfrentar situações adversas, como envelhecer e se virar sozinho.

Ouvindo o diálogo entre os comandantes Gregorio de Falco, da Capitania dos Portos, e Francesco Schettino, do navio que afundou na Toscana, fiquei imaginando em que momento ouviria, num italiano histriônico, o primeiro perguntar ao responsável pela embarcação: “Schettino, você é um homem ou um saquinho de pipoca?”.

Não era preciso perguntar, nem filmar o rosto do comandante do Costa Concórdia, que àquela hora deveria estar em pânico, escondido debaixo da cama, protegido do próprio escuro e envergonhado da própria covardia. Pessoas que estavam sob a responsabilidade dele poucos minutos antes morriam sem ajuda, enquanto o comandante – em tese, o último a abandonar o navio – se negava a voltar à embarcação e morrer, se fosse o caso, como um bravo.

Provavelmente, nenhum herói da história ou da literatura fez o mesmo: nem chorou pitangas nem molhou as calças diante de desafios sobre-humanos, como atravessar o Atlântico em direção à América (no tempo das caravelas), pisar na Lua (no tempo dos foguetes), acertar a pedra no gigante Golias (nos tempos bíblicos) ou enrolando outro gigante, o Adamastor (nos tempos poéticos).

Como na vida real não tem mais Vasco da Gama nem rei Davi, o “vada a bordo, cazzo!”, proferido por de Falco, não demorou a virar sensação pelo mundo, em que pese o luto pela tragédia italiana.

De alguma forma, os fãs declarados do comandante de Falco se apropriaram daquela fala para resgatar um antigo valor de nobreza, dado somente aos destemidos – e quase nunca aos que afinam. É como uma torcida de futebol, que releva todas as limitações técnicas de um atleta desde que ele se mostre disposto a comer a grama para vencer a partida, mas não perdoa a displicência de quem fugiu do pontapé ou da dividida nem honrou o manto nem a tradição.

Em pouco tempo, a frase foi parar em camisetas, hashtags e fatalmente entrará nos tópicos de palestras motivacionais web afora.

O que leva a algumas conclusões. Uma delas: a vida moderna pode ter eliminado as capas e espadas, mas está cheia de esperanças de que a virtude é que triunfa quando sobem os créditos com o final feliz.

Não se sabe ao certo como Schettino agiu enquanto teve forças, mas a bronca captada pelo rádio colocou os velhos mitos do herói e do vilão em vestes atuais: um é enérgico, e diz o que deve ser feito; o outro, o fujão, agora lembrado como bunda-mole, que escapa da raia junto com os ratos.

A história costuma ser implacável com personagens como Schettino, e reserva suas melhores prateleiras a quem se deixou flagrar em ato de coragem e despreendimento, como o piloto do avião que anos atrás aterrissou no rio Hudson, em Nova York, e salvou a vida da tripulação. Ou os bombeiros do 11 de Setembro. No esporte, a correlação está cheia de metáforas, como Gabrielle Andersen, a maratonista suíça que, com câimbras, finalizou a prova na Olimpíada de Los Angeles mesmo aos trancos, até a linha de chegada.

No Brasil, a cadeira cativa foi recentemente reservada a uma professora de escola pública que, de frente a deputados e demais autoridades, desancou tudo e todos e expôs a situação de miséria que infligia a categoria. Parecia o manifestante chinês que parou a pé uma fileira de tanques de guerra. Ou Adolfo Suarez, presidente do Parlamento Espanhol, que se negou a ajoelhar, como os colegas, e encarou de pé o militar endoidecido que invadiu armado o recinto numa tentativa frustrada de golpe.

As honrarias estão reservadas para essas pequenas grandes atitudes, ainda que a ordem, em tempos neoliberais, pareça outra: “salve-se quem puder”. Mas muito se engana quem imagina que basta crescer, aparecer, enriquecer e se dar bem para ter direito aos louros da glória. Pode parecer bobagem, mas isso muito idiota consegue – e Rupert Murdoch está aí para não me deixar mentir. As falências e escândalos seguidos de depressão em tempos de crises mostram que o apogeu, aos olhos da História, é quase nada.

O único imperativo é fazer a coisa certa, como mandou fazer o chefe da capitania dos portos: “Vada a bordo, cazzo!”. É o que todos queriam dizer ao comandante do navio.

Mas Schettino, ao que tudo indica, tomou outro caminho, num tempo em que todos parecem abandonar os barcos quando algo sai da linha. Como pais que, ao ver que um bebê é mais complexo que animais de estimação, e que animais de estimação são menos maleáveis que bichos de pelúcia, perdem-se na impossibilidade de rebobinar a fita, e rever uma opção irreversível. E abrem mão do próprio papel. Ou governantes que salvam os próprios bolsos, preocupados que estão em se manter sobre o cavalo, e já não sabem para onde vão.

Basta uma situação-limite para reconhecer os muitos Schettinos em terra firme – aquele sujeito que, ao ver a água invadir o Costa Concordia, foge do barco para viver eternamente com 15 anos – e, se possível, voltar para o ventre da mãe e nunca mais sair.

A esses, uma boa opção sempre é se esconder debaixo da cama e não atender nunca, jamais, a qualquer telefonema de Gregorio de Falco. Assim, nunca correrão o risco de descobrir que não são homens, só saquinhos de pipoca.

Era fatal. Toda vez que acusava meus medos de dormir sozinho no quarto, atravessar o corredor para beber água de madrugada, pedalar sem rodinhas pelo quintal ou atravessar as raias da piscina sem boia, alguém mais velho me encarava e perguntava, em tom de desafio: “Mas você é homem ou é um saquinho de pipoca?”

Às vezes, de tanto medo, dava até vontade de dizer: “saquinho de pipoca”. Na infância, poderia ser menos apavorante ser um saquinho de pipoca, seja lá o que isso significasse, do que enfrentar situações adversas, como envelhecer e se virar sozinho.

Ouvindo o diálogo entre os comandantes Gregorio de Falco, da Capitania dos Portos, e Francesco Schettino, do navio que afundou na Toscana, fiquei imaginando em que momento ouviria, num italiano histriônico, o primeiro perguntar ao responsável pela embarcação: “Schettino, você é um homem ou um saquinho de pipoca?”.

Não era preciso perguntar, nem filmar o rosto do comandante do Costa Concórdia, que àquela hora deveria estar em pânico, escondido debaixo da cama, protegido do próprio escuro e envergonhado da própria covardia. Pessoas que estavam sob a responsabilidade dele poucos minutos antes morriam sem ajuda, enquanto o comandante – em tese, o último a abandonar o navio – se negava a voltar à embarcação e morrer, se fosse o caso, como um bravo.

Provavelmente, nenhum herói da história ou da literatura fez o mesmo: nem chorou pitangas nem molhou as calças diante de desafios sobre-humanos, como atravessar o Atlântico em direção à América (no tempo das caravelas), pisar na Lua (no tempo dos foguetes), acertar a pedra no gigante Golias (nos tempos bíblicos) ou enrolando outro gigante, o Adamastor (nos tempos poéticos).

Como na vida real não tem mais Vasco da Gama nem rei Davi, o “vada a bordo, cazzo!”, proferido por de Falco, não demorou a virar sensação pelo mundo, em que pese o luto pela tragédia italiana.

De alguma forma, os fãs declarados do comandante de Falco se apropriaram daquela fala para resgatar um antigo valor de nobreza, dado somente aos destemidos – e quase nunca aos que afinam. É como uma torcida de futebol, que releva todas as limitações técnicas de um atleta desde que ele se mostre disposto a comer a grama para vencer a partida, mas não perdoa a displicência de quem fugiu do pontapé ou da dividida nem honrou o manto nem a tradição.

Em pouco tempo, a frase foi parar em camisetas, hashtags e fatalmente entrará nos tópicos de palestras motivacionais web afora.

O que leva a algumas conclusões. Uma delas: a vida moderna pode ter eliminado as capas e espadas, mas está cheia de esperanças de que a virtude é que triunfa quando sobem os créditos com o final feliz.

Não se sabe ao certo como Schettino agiu enquanto teve forças, mas a bronca captada pelo rádio colocou os velhos mitos do herói e do vilão em vestes atuais: um é enérgico, e diz o que deve ser feito; o outro, o fujão, agora lembrado como bunda-mole, que escapa da raia junto com os ratos.

A história costuma ser implacável com personagens como Schettino, e reserva suas melhores prateleiras a quem se deixou flagrar em ato de coragem e despreendimento, como o piloto do avião que anos atrás aterrissou no rio Hudson, em Nova York, e salvou a vida da tripulação. Ou os bombeiros do 11 de Setembro. No esporte, a correlação está cheia de metáforas, como Gabrielle Andersen, a maratonista suíça que, com câimbras, finalizou a prova na Olimpíada de Los Angeles mesmo aos trancos, até a linha de chegada.

No Brasil, a cadeira cativa foi recentemente reservada a uma professora de escola pública que, de frente a deputados e demais autoridades, desancou tudo e todos e expôs a situação de miséria que infligia a categoria. Parecia o manifestante chinês que parou a pé uma fileira de tanques de guerra. Ou Adolfo Suarez, presidente do Parlamento Espanhol, que se negou a ajoelhar, como os colegas, e encarou de pé o militar endoidecido que invadiu armado o recinto numa tentativa frustrada de golpe.

As honrarias estão reservadas para essas pequenas grandes atitudes, ainda que a ordem, em tempos neoliberais, pareça outra: “salve-se quem puder”. Mas muito se engana quem imagina que basta crescer, aparecer, enriquecer e se dar bem para ter direito aos louros da glória. Pode parecer bobagem, mas isso muito idiota consegue – e Rupert Murdoch está aí para não me deixar mentir. As falências e escândalos seguidos de depressão em tempos de crises mostram que o apogeu, aos olhos da História, é quase nada.

O único imperativo é fazer a coisa certa, como mandou fazer o chefe da capitania dos portos: “Vada a bordo, cazzo!”. É o que todos queriam dizer ao comandante do navio.

Mas Schettino, ao que tudo indica, tomou outro caminho, num tempo em que todos parecem abandonar os barcos quando algo sai da linha. Como pais que, ao ver que um bebê é mais complexo que animais de estimação, e que animais de estimação são menos maleáveis que bichos de pelúcia, perdem-se na impossibilidade de rebobinar a fita, e rever uma opção irreversível. E abrem mão do próprio papel. Ou governantes que salvam os próprios bolsos, preocupados que estão em se manter sobre o cavalo, e já não sabem para onde vão.

Basta uma situação-limite para reconhecer os muitos Schettinos em terra firme – aquele sujeito que, ao ver a água invadir o Costa Concordia, foge do barco para viver eternamente com 15 anos – e, se possível, voltar para o ventre da mãe e nunca mais sair.

A esses, uma boa opção sempre é se esconder debaixo da cama e não atender nunca, jamais, a qualquer telefonema de Gregorio de Falco. Assim, nunca correrão o risco de descobrir que não são homens, só saquinhos de pipoca.

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