Sociedade

Um decreto contra a participação. Os riscos à democracia no Brasil

O Decreto 9759 traz incerteza jurídica e coloca em perigo várias instâncias e polí­ticas sociais, ambientais e mesmo monetárias

Foto: Marcos Corrêa/PR
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Por Carla Bezerra, José Szwako, Wagner Romao e Bruno Vello

Foi assinado e publicado na sexta-feira 12, pelo senhor Presidente Jair Bolsonaro, Decreto que extingue todos os órgãos colegiados criados por Decretos ou Portaria de toda a administração pública federal. As justificativas para tal extinção seriam razões de ‘economia administrativa’ ou ‘desburocratização’. Lido em contexto, o Decreto 9759 traz mais riscos para a democracia brasileira do que se imagina. Além da incerteza jurídica por ele gerado, o decreto coloca em perigo várias instâncias e políticas sociais, ambientais e mesmo monetárias. Ao fazê-lo, este governo mostra, mais uma vez, sua imperícia frente a princípios tão caros à Democracia como a participação e a cidadania.

O que isso significa na prática?

Órgãos colegiados são instâncias que elaboram, fiscalizam e decidem sobre uma certa política pública. A história dessas instâncias nos remete às conquistas da Constituição de 1988, desde quando foi consagrada a participação da sociedade civil nas políticas públicas. Assumindo variados formatos, esses órgãos colegiados contam com representantes de mais de um ministério, às vezes com a presença de membros do Legislativo, podendo ou não ter representantes da sociedade civil.

A extinção de forma genérica, sem detalhar de quais órgãos estamos falando, tem como efeito imediato uma enorme insegurança jurídica. Embora estabeleça o prazo de 19 de maio para que os órgãos enviem relação de colegiados em atuação, o Decreto entra em vigência imediatamente. Ou seja, não se sabe se os órgãos colegiados a que se refere o Decreto já estão extintos, ou somente passíveis de extinção, caso não sejam encaminhados com justificativa de existência no prazo estipulado.

Tampouco é claro exatamente o número que isso representa, estimando-se até 700 órgãos colegiados. Existem inúmeros órgãos colegiados que têm atribuições essenciais para a execução de várias políticas públicas. Por exemplo, um comitê passível de extinção por este decreto é o COPOM (Comitê de Política Monetária, regulado pela Circular n° 3.868 de 19/12/2017 do Banco Central do Brasil). Ele é composto estritamente pelo governo e responsável por definir toda a política monetária do governo. Ou seja, no momento, não é claro quem definirá tais diretrizes a partir de segunda-feira 15.

Também dependem de órgãos colegiados as ações do governo federal brasileiro na Parceria para Governo Aberto (OGP na sigla em inglês), que envolve compromissos nos temas da participação, transparência, dados abertos e prestação de contas diante da comunidade internacional. Sem o Comitê Interministerial Governo Aberto (Decreto Presidencial de 15 setembro de 2011) e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil, que são responsáveis pela formulação e monitoramento do plano de ação da parceria, que já se encontra em sua quarta edição, as condições de cumprir os compromissos se tornam insustentáveis.

Bolsonaro pode fazer isso?

Um decreto é editado pelo presidente, pois não precisa ser submetido ao Congresso, e está hierarquicamente abaixo de uma lei. Portanto, só pode extinguir colegiados previstos em outros decretos ou portarias. Aqueles previstos em lei continuam existindo, muito embora ainda seja incerto o futuro de alguns criados por lei, mas com funcionamento regulado via decreto.

O decreto se estende para toda a administração pública direta, autárquica ou fundacional. Isto é: além dos ministérios, se aplica também a institutos, universidades, entre outros.

Agora, será preciso ver em cada caso os efeitos e se há medidas judiciais cabíveis para questionar o decreto de Bolsonaro. Isso depende muito das especificações e competências de cada órgão colegiado.

É provável que a partir de segunda até o prazo de 19 de maio, ocorra a recriação de vários desses órgãos, que agora deverão observar as regras mais restritivas de funcionamento do decreto, como a curiosa limitação ao tempo de duração da reunião, descrita no artigo 4o.

A extinção de forma genérica, sem detalhar de quais órgãos estamos falando, tem como efeito imediato uma enorme insegurança jurídica. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Restringindo o acesso ao Estado

Dentre aqueles com participação da sociedade civil, realizamos um levantamento que indica a existência de 70 ao total, sendo que metade deles estaria revogada por não ser prevista em lei. Em um olhar inicial, as principais políticas principais afetadas são: direitos humanos, igualdade racial, indígena, rural, cidades, LGBT e meio ambiente. 

Por exemplo, está extinto o Conselho das Cidades (Decreto 5790/2006). Com isso, praticamente toda a política de desenvolvimento urbano é desmontada, pois esses órgãos são os responsáveis por definir a alocação dos recursos do Fundo de Habitação destinado à política da moradia. 

Nas políticas de meio ambiente, a extinção de colegiados pode ter impactos não apenas nacionais, mas também sobre compromissos internacionais já assumidos pelo país. Um exemplo é o conjunto formado pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), seu Grupo Executivo (GEx) (Decreto 6.263/2007) e o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (Decreto 9.082/2017), todos extintos pelo decreto. Essa estrutura articula diferentes ministérios e setores da sociedade civil na pactuação de ações de combate à mudança do clima, sem as quais tornam-se escassas as chances de o Brasil atingir as metas de emissão de carbono assumidas voluntariamente diante da comunidade internacional.

Outro exemplo é o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Decreto 6.527/2008). O Fundo, que conta com recursos nacionais e doações de governos estrangeiros, já desembolsou mais de 1 bilhão de reais em projetos de combate ao desmatamento, apoio a áreas indígenas e fomento a atividades produtivas sustentáveis na região amazônica. A extinção do COFA pode paralisar esses projetos – e possivelmente as doações -, já que o comitê é o órgão responsável por aprovar a destinação dos recursos e as prestações de contas do fundo.

O governo justifica-se falando em “economia de gastos” e “redução de burocracia”. Na realidade, parece haver mais um direcionamento para limitar a participação social nas políticas públicas. Isso porque a única legislação revogada de forma explícita é o Decreto 8243/2014, que institui a “Política Nacional de Participação Social” e respectivo sistema.

A PNPS, como ficou conhecida tal política, havia sido alvo de controvérsias no Congresso já às vésperas do processo eleitoral que reelegeu Dilma Rousseff. No entanto, apesar da polêmica e forte repercussão midiática, a PNPS seguia vigente, com uma iniciativa no Legislativo que susta seus efeitos (Projeto de Decreto Legislatvo 147/2014, do PDS) e outra que propõe uma espécie de reedição da PNPS a partir deliberação feita no parlamento (Projeto de Lei 8.048/2014, apresentado pelo PSOL).

Além disso, a justificativa da redução de gastos e da desburocratização não considera uma série de riscos associados ao decreto. A extinção dos colegiados pode afetar diretamente a implementação e formulação de políticas públicas impactando os cidadãos brasileiros beneficiários destas políticas.

O argumento de desburocratização parte da ideia de que a participação atrapalha a administração pública, ao invés de qualificá-la, trazendo o saber cidadão e de distintos especialistas para o processo de decisão. Por fim, vale destacar que ao alterar não só a participação social, mas editar novas políticas por decreto, o governo não apenas desconsidera a sociedade, como também o Legislativo, eleito pelo povo para também pensar estas políticas. Mostra uma dificuldade de dialogar e de ouvir as múltiplas vozes que compõem o país. 

O decreto não menciona explicitamente as Conferências Nacionais de Políticas Públicas. Mas, como elas são convocadas pelos respectivos conselhos, podem também sair prejudicadas. Mais do que isso, ao revogar a Política Nacional de Participação Social, o governo dá um recado expresso de que a participação da sociedade civil não é bem-vinda aos olhos desta gestão. Contra tal tipo de iniciativa, não são poucos os pesquisadores, servidores públicos e ativistas da sociedade civil que vêm tentando denunciar os riscos ligados à intransigência dessa agenda de governo.

O caráter sintomático do ataque à participação

O que se observa é que o programa defendido na campanha está rapidamente sendo implementado, não apenas em termos simbólicos, mas sobretudo em efeitos bastante concretos. Não por acaso, há um desmonte de políticas que protegem minorias étnicas, o meio ambiente e os direitos humanos. Há, agora com este decreto, uma tentativa de restringir as formas de acesso ao Estado, reduzindo ou extinguindo qualquer iniciativa associada ao controle democrático e à participação.

Nesse sentido, é alarmante para a sociedade brasileira em seu conjunto o horizonte, não mais potencialmente, mas claramente autoritário aberto pelo decreto 9759/2019: um governo que não conta com contrapesos internos, sem participação ativa das entidades e vozes da sociedade civil, pode se sentir plenamente autorizado a gerenciar a máquina pública de forma altamente discricionária. Essa história já foi vivida por nós e, como se sabe, os mais prejudicados são as parcelas mais frágeis e vulneráveis da população.

Carla Bezerra, advogada e doutoranda em Ciência Política (USP) 

José Szwako, doutor em Ciências Sociais (Unicamp) e professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia (IESP-UERJ)

Wagner Romao, doutor em Sociologia (USP), professor do Departamento de Ciência Política (Unicamp) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Unicamp)

Bruno Vello, doutorando em Ciência Política (USP)

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