Sociedade

Tragédia de Paraisópolis: “Todos estavam cientes das ameaças de retaliação da PM”

Há vezes em que vemos pessoas serem espancadas, vendedores ambulantes terem seus carrinhos quebrados, os carros arranhados

No distrito de Vila Andrade, onde fica Paraisópolis, a idade média ao morrer é de 63,6 anos. O Distrito é vizinho do Morumbi, onde os moradores morrem, em média, 10 anos mais velhos – aos 73,5
Apoie Siga-nos no

*Por M.P.


Estive ali naquele lugar da tragédia do último final de semana durante quase 10 anos consecutivos da minha vida. De jeito maneira escreverei algo para dizer que aquilo que rola ali está certo e que deveria ser incentivado, porém, é uma saída para um mundo onde se pode tudo. Ali a gente realiza os nossos desejos impostos por um mundo idealizado, ali podemos tudo. Pensando numa sociedade onde você estuda preso dentro de uma sala de aula, onde temos que trabalhar até a morte numa vida entediante, nossos únicos lastros e suspiros de vida se resumiam aos finais de semana no país das maravilhas de Alice.

É naquele local que encontrávamos amigos de outros lugares da cidade, ostentávamos nossas roupas de marca, bebíamos, nos drogávamos e ainda podíamos “pegar” umas “mina de quebra”. Ali não ficávamos livres do mundo cruel, pelo contrário, vivíamos ele no estilo mais trash possível, mas com uma liberdade infinitamente maior do que no trabalho, na faculdade ou na escola.

Hoje, já um pouco distante de tudo isso, posso dizer que não dá para romantizar o que acontece ali e nem argumentar que nós procurávamos aquilo apenas por falta de opções culturais e de lazer. Pelo contrário: vamos ao baile pela liberdade que nos é oferecida ali, pelo poder de transgressão. Há um mundo que se resume em trabalhar e voltar para casa, praticar esportes para manter-se saudável e produzir ainda mais, criar a família e depois morrer.

Mas os moradores (estes por sobrevivência) não gostam de ver o lugar daquele jeito e com razão. De uns anos pra cá, a proporção de um mero baile de bairro evoluiu até se tornar um megapancadão que recebe gente de tudo quanto é canto da cidade e também das cidades em volta (inclusive com caravanas). É compreensível que os moradores exijam uma ação do Estado, já que o poder local não tinha interesse em acabar com aquilo – até porque o lucro deve ser milionário em cada final de semana bem sucedido.

O Estado agiu com a legitimidade dada pelo discurso de uma parte da população, mas isso não significa que essas pessoas sejam simplesmente horríveis, ou más. Esse discurso acontece porque elas entendem suas necessidades antes de qualquer outra coisa e, se a gente pensar bem no nosso modelo de sociedade, isso não é nada absurdo. Porém, mesmo para aqueles que queriam o fim daquela festa naquele lugar, o discurso é que a polícia reprimiu aquele baile com um tipo de violência desproporcional, ainda que as ações violentas da polícia sejam algo comum. Digo sobre ser comum não por ser normal, mas porque é recorrente acontecer de a polícia invadir o baile, e, depois de ir embora, a festa continuar a rolar normalmente.

Tem vezes que vemos pessoas serem espancadas, vendedores ambulantes terem seus carrinhos quebrados, os carros arranhados, as motos terem os pneus rasgados, e ainda assim o baile continuar. Só que dessa vez havia um fator importante por trás daquela ação truculenta. Todos estavam cientes das ameaças de retaliação por causa da morte de um policial pouco tempo atrás. Quando eles invadem a festa, sempre parecem vir sedentos de sangue, mas com essa motivação a mais, deu no que deu.

A política do Estado por aqui é assim há anos. Nesses momentos de tragédia, sempre aparecem muitos políticos salvadores da pátria, inclusive líderes comunitários, com o discurso que são contra ação do governo, mas todos sabemos que há anos mantêm uma relação íntima com os governos do PSDB. Os bailes funks são de fato um problema e devem ser levados a sério, porém, não vejo solução imediatista, até porque tudo que essa realidade nos oferece de remédio acaba sendo subvertido. Antes tínhamos o rap, mas quando o hip hop se tornou institucionalizado, cresceram os bailes funks, então, a saída sempre será marginal. Sim, devemos refletir sobre uma solução para isso, mesmo que a longo prazo, só que ela não virá da noite para o dia, nem de cima para baixo.

Tem horas que me pego imaginando que poderia ser eu ou qualquer outro amigo meu ali naquele final de semana, por isso digo que a favela não deve pedir paz, até porque eles não podem nos dar a paz. Se queremos paz, nossa tarefa é conquistá-la destruindo um sistema que só perpetua miséria e desgraça para construir no lugar uma cidade mais justa que inclua nossas demandas.

Nem um minuto de luto mais por toda uma vida de luta!!!!

*M.P. é morador da Comunidade de Paraisópolis. Por motivo de segurança, o nome dele foi preservado.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo