Sociedade

Sem querer, youtuber nipo-brasileiro vira ídolo dos misóginos na web

O vídeo em que o rapaz pergunta o que fazer da vida tornou-se um hit, quase um ano depois de ser postado, passando das 230 mil visualizações

Foto: Istockphoto
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“Já tentei de tudo: trabalhar no Brasil e em fábrica no Japão, comprar um caminhão, montar uma loja, ser youtuber, xingar pessoas famosas, transmitir jogos, casar e nada deu certo. (…) Então, se tem ideia do que posso fazer da vida, posta nos comentários, beleza?” Intitulado “Tentei de tudo nessa vida, e agora?”, o vídeo de três minutos e meio, de 1º de janeiro de 2019, reúne elementos comuns do canal de Ricardo Ohara no YouTube – em um monólogo com pouca edição, o brasileiro de ascendência japonesa, 41 anos, fala sobre sua vida, esperanças e fracassos em tom pausado, lânguido, perguntando-se sobre o futuro.

Atualmente no Japão, país para o qual se mudou pela primeira vez ainda adolescente, seus vídeos trazem conteúdo simples sobre seu cotidiano como funcionário em uma loja de conveniência, degustação de produtos, passeios, além de viagens e discussões sobre seu sonho de, um dia, cursar Medicina. No YouTube desde 2011, suas gravações, apesar de terem atraído cerca de 30 mil inscritos até o início de novembro do ano passado, não davam mostras do repentino sucesso. Dois meses e meio depois, o número de seguidores do canal cresceu mais de dez vezes, em ritmo acelerado, além de abrir uma nova perspectiva profissional, desta vez como youtuber. 

 

Mas, se grande parte do público de Ohara afirma que a admiração vem da sua simplicidade diante da câmera e uma espécie de humor involuntário animado por bordões (“aí sim, hein, cara”, os mais famosos deles), é também nas respostas aos vídeos e lives, além do conteúdo produzido por outros canais a respeito dele, que desponta outro motivador do recente sucesso: as diatribes do youtuber com sua ex-esposa, Laura*, e os discursos de ódio contra mulheres surgidos a partir dela. Qualquer pesquisa pelo nome de Ohara no YouTube, além de seu próprio canal, também resultará em dezenas de vídeos cujos títulos descrevem a sua “história”, alguns com mais de 100 mil visualizações. Em todos eles a descrição é a mesma: casado no Brasil, o youtuber teria se mudado sozinho para o Japão em 2008, com a finalidade de trabalhar para custear os estudos de Medicina da esposa. Concluída a graduação, a mulher “ingrata” teria pedido o divórcio. Sozinho, Ohara viveria atualmente em precárias condições financeiras, sem amigos.

Laura* recebeu ameaças de morte e teve a vida rastreada por um grupo que atribui todos os males ao sexo feminino

“Vadia”, “é pra isso que serve o feminicídio”, “nojo desse tipo de meretriz”, “tem que mandar matar” são alguns dos comentários mais inofensivos direcionados a Laura. Outros, mais elaborados, costumam discursar sobre a suposta natureza interesseira e privilegiada das mulheres: “Você se casa, a mina te ferra e você não pode contar pra ninguém, a lei sempre do lado da mulher”, diz um dos “defensores” do youtuber, que em seus vídeos não fala o nome da ex-esposa, nem insiste na história do divórcio ou dá detalhes sobre essa versão dos fatos. Campanhas para ajudar o canal do nipo-brasileiro a ganhar popularidade logo começaram a surgir e a marca dos 100 mil inscritos não demorou a ser ultrapassada, nem o algoritmo do YouTube a recomendá-lo. Subitamente, o vídeo no qual pergunta o que fazer da vida tornou-se um hit, quase um ano depois de ser postado, passando das 230 mil visualizações.

Sucesso. Ohara registra sua vida banal no Japão, como outros tantos. Era um completo desconhecido até dois meses e meio atrás. Não mais do que de repente…

Se a suposta circunstância do divórcio, acontecido em 2014, ganhou popularidade no fim do ano passado e funcionou para alavancar o canal, os cantos mais obscuros da internet brasileira, conhecidos pela misoginia e perseguição online, têm grande participação em trazer essa versão à tona. Sem ter ideia do motivo, Laura começou a ter seus dados pessoais expostos (prática conhecida como doxing) no fim de novembro, além de receber ameaças de morte online. A linha de frente dos ataques é feita por participantes de fóruns frequentemente não listados pela internet normal, apenas na chamada deep web, os chans.

Protegidos pelo anonimato, discursos de ódio racial, contra minorias, mulheres, além de conteúdo terrorista e pedófilo são divulgados nesses ambientes frequentados, entre outros, pelos autores dos ataques a tiros às escolas públicas em Suzano, em São Paulo, no ano passado, e em Realengo, no Rio de Janeiro, em 2011. Com códigos e vocabulários próprios, os channers (ou “anões” no Brasil) têm um longo histórico de perseguição às mulheres, discursos de supremacia masculina e capacidade de mobilização online contra alvos previamente combinados. Ainda que youtubers costumem passar longe da predileção dessa comunidade, a suposta traição a Ohara parecia comprovar suas teses a respeito do sexo feminino e incentivar mais um episódio de perseguição.

Laura nunca cursou Medicina, tem outra família desde a separação e começou a tomar alguns cuidados depois das primeiras ameaças. Em posse das prints, resolveu abrir um processo contra o Facebook, pedindo que a rede social exclua os comentários ofensivos a seu respeito e forneça os dados dos autores das ameaças às autoridades. Um inquérito policial também foi instaurado para constatar a autoria e a responsabilidade criminal das ameaças – Ohara é um dos averiguados – sem pedido de reparação financeira.

A vítima prefere guardar silêncio. Seu advogado, Cesar Matsui, desmente a versão que povoa a internet. Segundo ele, Laura trabalhou por quase dez anos como operária no Japão e conseguiu economizar uma boa quantia quando voltou ao Brasil, em 2007. Ohara mudou-se sozinho para o Japão em 2008, ainda casado, no intuito de recuperar o dinheiro gasto em maus investimentos no Brasil, e não para pagar os estudos da então esposa. Laura não traiu Ohara, como dizem algumas versões, e a iniciativa do divórcio não partiu dela.

“Fica claro que a existência desses boatos ajudou a alavancar o canal do senhor Ricardo Ohara e a promovê-lo”, diz Matsui. Segundo o advogado, Quando menos se espera. A escola Raul Brasil, na paulista Suzano, foi palco de um massacre planejado por um aluno existe a intenção de que a situação renda dividendos, “seja através da monetização do seu canal, seja através de pedidos de doação de dinheiro feitos aos inscritos”. Em nota, diz ainda que “o discurso de ódio promovido pelos seguidores do Senhor Ricardo Ohara caracteriza abuso do princípio da liberdade de expressão, bem como configura crimes previstos no Código Penal brasileiro. É inaceitável que, em pleno século XXI, uma mulher seja vítima do discurso de ódio pelo simples fato de ser mulher”.

Quando menos se espera. A escola Raul Brasil, na paulista Suzano, foi palco de um massacre planejado por um aluno. Foto: Nelson Almeida/AFP

Ohara aparenta não saber o que são os chans, deep web ou mesmo como funcionam as práticas de doxing. Ainda que usuários tenham tentado ligá-lo a esses ambientes, não há provas de que tenha participado deles algum dia. Sobre o divórcio, em um vídeo recente afirmou não ter raiva da ex-esposa, não incentivar a perseguição, nem odiar as mulheres ou apoiar qualquer discurso misógino. Ainda assim suas declarações não impediram que as perseguições continuassem a acontecer, nem que a história fosse divulgada por outros como verdadeira. Encarnando, mesmo sem querer, uma espécie de herói dos “anões”, a situação parece estar fora de seu controle quando o assunto são as ameaças.

“Os chans são diferentes do espaço público e normalmente envolvem gente com acesso à educação formal. São lugares extremos da internet, em que a discussão supera todos os limites e se relaciona com a experiência, sempre mais masculina, de estar em espaços conectados que poucos conseguem acessar”, diz a especialista em tecnologias de interesse público e pesquisadora ex-fellow em Harvard Yasodara Córdova. Reações preconceituosas comuns nos comentários em sites de notícias refletem, diz ela, opiniões da sociedade potencializadas pela internet, recurso que aumenta a escala dos fatos e sua velocidade. Se nas caixas de comentários online dos jornais é possível ver linchamentos e preconceito, nos chans a estratégia organiza-se para os verdadeiros ataques. “Podemos identificar a partir do vocabulário”, explica Córdova.

Nas profundezas da internet prosperam o sexismo, a pedofilia, o racismo e até se planejam assassinatos

É fácil topar com termos pouco usuais comentados nos conteúdos de Ohara. Um deles, “hipergamia”, diz respeito à suposta inclinação feminina de se relacionar apenas com homens de nível superior ao dela – um eufemismo para “interesseira”. Outro, “MGTOW” (“Man Going Their Own Way” ou “Homens Seguindo Seu Próprio Caminho”, pronúncia “migtau”), abarca uma filosofia cultivada em chans de que mulheres destroem a independência dos homens, além de serem privilegiadas pelas leis e pela hipergamia, por isso a defesa de um total apartamento. Para Córdova, o caso de Ohara parece mostrar que quem pratica esse tipo de perseguição não está tão preocupado com a verdade, nem se a suposta “vítima masculina” apoia ou não a atitude, apenas em perseguir: “As mulheres não têm uma rede de suporte online como os homens e, neste caso, não foram necessárias muitas informações sobre a história do divórcio para que os ataques começassem”.

Sala de aula. O atirador de Suzano aprendeu técnicas para executar o massacre na deep web, ambiente frequentado por misóginos e pedófilos e outros tipos. Foto: Reprodução

Como são alvo de raras ações policiais, seus usuários sempre conseguem se reunir em novos ambientes difíceis de rastrear e quase nunca são condenados criminalmente. Como deter os chans? “Esta é a pergunta de ouro, temos de criar mecanismos legais atualizados que abracem a velocidade da rede e notifiquem rapidamente os envolvidos”, diz Córdova. Ainda segundo ela, a esperança é de que lugares extremos na rede e sua influência diminuam significativamente conforme a internet se alargue para todos, “como aconteceu no caso do WhatsApp, por exemplo”.

A notícia de que Laura tinha tomado providências legais estimulou novos conteúdos ofensivos. Agora, em vez de “a história de Ricardo Ohara”, youtubers comentando a vida do nipo-brasileiro, pipocam vídeos com o título “a ex-mulher do Ricardo Ohara quer ferrar ele de novo!” e variações, quase todos afirmando que o intuito seria a extorsão. Matsui reforça o fato de que não há pedido de reparação em dinheiro nas ações e afirma que sua cliente deseja apenas uma coisa, “viver tranquilamente”.

Procurado, Ohara aceitou em um primeiro momento conceder uma entrevista, mas não respondeu aos contatos posteriores até o fechamento desta edição.

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