Sociedade

Sem casa, famílias caiçaras buscam na Justiça direito à permanência na Jureia

Família Prado busca reconhecer judicialmente vínculo ancestral com território e recuperar moradias derrubadas pela Fundação Florestal

Vanessa, Heber e familiares em roda deitados sobre os escombros de casa demolida. Créditos: Arquivo Pessoal Vanessa, Heber e familiares em roda deitados sobre os escombros de casa demolida. Créditos: Arquivo Pessoal
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O pequeno Joaquim ainda não é capaz de entender, mas veio ao mundo no meio de uma disputa ambiental. No dia 11 de março, seus pais Heber do Prado Carneiro e Vanessa Muniz entraram na Justiça para requerer o direito à moradia na Juréia, litoral sul de São Paulo. O caso se arrasta desde julho de 2019, quando a família caiçara teve a casa demolida em uma ação da Fundação Florestal, ligada ao governo do estado de São Paulo.

Na época, a Fundação entendeu que as moradias eram ilegais devido à falta de autorização da fundação para a construção no coração da reserva ambiental. Duas casas foram demolidas: a de Heber e a do seu primo, Marcos Venícios, que morava em companhia da esposa Daiane Neves. O casal também judicializou a questão.

Dias antes do nascimento do bebê, no dia 21 de março, a reportagem de CartaCapital conversou com a família, que mostrava preocupação com a nova fase que estava para chegar.

“É complicado pela questão da casa, só temos um quarto. Fica difícil pensar em uma criança a caminho sem a estrutura ideal para acomodá-la, colocar um berço”, contou Vanessa, que mora com a família em um cômodo anexo à casa dos avós do companheiro.

O pedido judicial

Com o auxílio da Defensoria Pública, as famílias lutam para ter reconhecido o seu direito à moradia no território, com base na ancestralidade de mais de 160 anos da família Prado nos bairros Grajaúna e do Rio Verde, no município de Iguape (SP). Os primeiros registros familiares de terra datam de 1856. Os pedidos judiciais também requerem a reconstrução das moradias derrubadas.

A defensoria contesta a decisão da Fundação Florestal, como explica o defensor público do estado de São Paulo, Andrew Toshio. “Primeiro, as famílias tentaram formalizar a questão das moradias junto à Fundação em 2018, medida que foi negada sem qualquer fundamentção legítima”, aponta o defensor, que também citou um processo de diálogo travado com a Fundação, com apoio do Ministério Público Federal, e que foi interrompido abruptamente.

Toshio também acrescenta que a remoção das famílias desconsidera a ocupação histórica comum ao local. “Há uma lógica de ocupação caiçara na região que já tem ao menos 200 anos. Essas áreas já eram antropizadas e nunca sofreram com comprometimento do meio ambiente e ecossistema. Aliás, foi essa ocupação que permitiu manter a integridade ambiental e justificou a criação da unidade de estação ecológica”.

O defensor cita um levantamento feito na região que identifica 30 famílias caiçaras na região ao longo dos séculos, “ou seja, é um padrão de ocupação de baixa densidade, o que impediu que houvesse qualquer comprometimento ao meio ambiente”.

Também é motivo de crítica pelo defensor a ação utilizada pela Fundação no momento do despejo dos dois casais.

“A Fundação Florestal entrou com um procedimento administrativo, de autotutela, que dispensa a necessidade de uma ação judicial. Esse procedimento, no entanto, se adota na proteção de bens públicos quando não há nenhum tipo de dúvida com relação ao direito da fazenda pública. É inadequado para o caso em que há uma discussão sobre direitos fundamentais, de moradia, de permanência de uma comunidade caiçara em território tradicional”, aponta o defensor público.

Pais de um recém-nascido, Heber e Vanessa moram em um cômodo depois que tiveram sua casa demolida. Créditos: Arquivo pessoal

Toshio conta que o procedimento foi o mesmo adotado pelo estado na ocupação das escolas pelos secundaristas, em São Paulo, nos anos de 2015 e 2016. “O argumento, também questionado à época, surgiu porque o estado queria agilidade na desocupação das escolas, então a Procuradoria do Estado construiu esse argumento e agora o utiliza em outro contexto”, critica.

Não é a primeira vez que a família Prado busca seus direitos na Justiça. O primeiro casal a requerer o direito à moradia no bairro do Rio Verde foi Edmilson Prado – primo de Heber e Marcos Venícios –  e Karina Ferro. Na época da demolição das casas, o casal conseguiu se salvar porque Karina estava grávida e se recusou a sair do imóvel.

O processo judicial, que ainda segue em andamento, teve inicialmente a concessão de uma liminar favorável à família caiçara, que impedia a continuidade do processo de retirada da família pela Fundação Florestal. A liminar foi  contestada pelo órgão no Tribunal de Justiça de São Paulo. Meses depois, ao julgar o mérito da ação, o tribunal confirmou a decisão liminar inicial, novamente questionada pelo Estado via Fundação Florestal.

“Estamos nisso ainda porque nenhuma proposta decente de acordo foi apresentada”, contou Toshio à reportagem de CartaCapital. “A Fundação apresentou duas propostas para o reassentamento do Edmilson e Karina dentro do Rio Verde mesmo, mas em áreas inviáveis. Uma proposta era para que eles morassem como vizinhos, quase colados aos pais do Edmilson. As comunidades caiçaras não vivem assim sob essa lógica de confinamento, é preciso espaço para cultivo, manter os hábitos culturais” apontou o defensor. “A outra proposta era para que morassem em uma área que alagava, completamente inviável do ponto de vista estrutural”, acrescentou.

Entenda o caso

A polêmica acerca das continuidade das novas gerações da Família Prado na Jureia se intensifica a partir de 1990 quando foi criada a Estação Ecológica Juréia-Itatins. Na época, a Fundação Florestal realizou um cadastro geral de identificação dos moradores, tendo contabilizado 119 famílias com direito de permanência – a dos Prado incluída.

No entanto, houve a argumentação de que no local onde as casas foram construídas “não havia qualquer comunidade caiçara instalada na região desde 1980”, e que, pela área do Rio Verde ser patrimônio mundial da humanidade declarado pela UNESCO, “não é adequada para moradias”.

O órgão também alegou que criou em 2013 duas reservas dentro do Mosaico Juréia-Itatins – como é chamado o conjunto de quatro unidades de conservação integral – para abrigar as comunidades tradicionais da região, onde as famílias poderiam, se desejassem estabelecer moradia caso comprovada a ligação histórica com o terreno. O local, porém, não corresponde às regiões de tapera da família Prado.

CartaCapital já vem acompanhando a luta da família pela permanência no território. Em reportagens anteriores, em contato com antropólogos que acompanham o caso, foi apontado que a Lei do Mosaico de Unidades de Conservação Jureia-Itatins considera, em seu “Termo de Permissão de Uso”, que comunidades tradicionais que vivem “em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental”, têm o direito de permanecer no local.

A análise feita pelos especialistas Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, Mauro William Barbosa de Almeida e Rodrigo Ribeiro de Castro consta em um laudo oferecido à Justiça, a pedido da Defensoria Pública, como prova de que a região tinha ligações com a ancestralidade caiçara.

Um estudo do antropólogo Rodrigo Ribeiro Castro ainda mostra que a comunidade local veio sofrendo, ao longo do tempo, pressão para deixar a área a partir da dificuldade imposta ao acesso a serviços essenciais como saúde pública e educação. O especialista aponta que das 22 famílias registradas pela Fundação Florestal, em 1991, na região do Rio Verde, apenas sete se mantinham em 2011.

O que diz a Fundação Florestal?

A reportagem de CartaCapital procurou a Fundação Florestal para entender se o órgão tomou conhecimento das novas ações judiciais e qual é o posicionamento diante do objeto delas. Em nota, a Fundação alegou que, dentro dos requisitos legais, Marcos e Heber não estão qualificados a construir na Estação Ecológica da Jureia.

Segundo a organização, os dois nunca tiveram morada habitual no Rio Verde ou Grajaúna, uma vez que seus pais moram e trabalham na cidade antes deles nascerem. “Ambos foram criados na cidade e nela construíram suas vidas”, aponta.

Ainda registrou que “é preciso respeitar a necessidade de preservar espaços destinados apenas aos animais silvestres e às florestas, sob pena de se adotar uma visão egoísta, voltada somente às necessidades do ser humano”.

Confira a nota na íntegra:

Da ponderação entre a necessidade de garantir áreas para a preservação da natureza e abrigar as comunidades tradicionais da Jureia, depois de oito anos de discussões na ALESP, foram criadas as RDS da Barra do Una e do Despraiado, locais destinados às comunidades tradicionais da Jureia, onde, inclusive, vivem tios e primos de Marcos e Heber. Para o Rio Verde e Grajaúna, embora tenha se tentado criar uma terceira RDS no território, proposta rejeitada no debate democrático diante da altíssima importância ambiental da área, a solução foi diversa, permitindo-se, apenas a manutenção dos ocupantes cadastrados e de seus descendentes, desde que tivessem morada habitual e nela mantivessem ocupação efetiva.

Os cidadãos Marcos e Heber, contudo, nunca tiveram morada habitual no Rio Verde ou no Grajaúna. Seus pais moram e trabalham na cidade desde antes de eles nascerem. Ambos foram criados na cidade e nela construíram suas vidas. Chegaram, inclusive, a trabalhar na Prefeitura de Iguape e o fato de visitarem seus avós em alguns finais de semana ou período de férias escolares não os qualifica, dentro dos requisitos legais, a construir na Estação Ecológica da Jureia.

A Fundação Florestal vê com preocupação o movimento de ocupação humana dentro das Unidades de Conservação de Proteção Integral que representam apenas 4% do território paulista. Isso se agrava quando se incentivam invasões em vez de estimular o debate democrático, ou quando diante do indeferimento de um pedido administrativo para construir no rio Verde não se busca o Poder Judiciário, mas opta-se por agir clandestinamente, à margem da lei, o que motivou as demolições realizadas.

Legitimar ou incentivar esse modo de agir trará irreparáveis prejuízos à gestão e a proteção das Unidades de Conservação. É preciso respeitar a necessidade de preservar espaços destinados apenas aos animais silvestres e às florestas, sob pena de se adotar uma visão egoísta, voltada somente às necessidades do ser humano e, como consequência, colocar em risco o frágil equilíbrio do planeta, relegando às futuras gerações ambientes naturais simplificados e empobrecidos, com o risco do desaparecimento de espécies como onça pintada e o maior primata das américas, o muriqui-do-sul, bem como a extinção de espécies vegetais raras que só ocorrem naquela região.

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