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Precisamos falar sobre LGBTfobia e discurso de ódio na mídia e na internet

Ataques a LGBTs na última semana mostram o perigo da liberdade de expressão se sobrepor a outros direitos assegurados

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por Thiago Coutinho e Gyssele Mendes

Na mesma semana em que Sikêra Jr., apresentador do policialesco Alerta Nacional, foi absolvido por proferir ofensas à população LGBT, a exposição homoerótica “Suaves Brutalidades” foi cancelada em Belém e a vereadora trans de Niterói, Benny Briolly, saiu do País devido as ameaças a sua integridade física. Mais do que nunca, o 17 de maio, Dia Internacional de Luta Contra a LGBTfobia, é uma data necessária. 

Em agosto de 2020, Sikêra Jr. foi condenado a pagar a uma multa de 30 mil reais por, após ter transmitido uma reportagem de um crime cometido por um casal lésbico, proferir ofensas contra a população LGBT e tratá-la como criminosa e violenta.

“Eu vou mostrar o que essas coisas fizeram com o povo brasileiro”, disse.

O programa exibiu, então, a imagem da atriz transsexual Viviany Beleboni, que em 2015, na parada LGBT de São Paulo, representou Jesus Cristo crucificado. O apresentador disse ainda que não tinha mais medo “dessas coisas” e completou chamando a população LGBT de “raça desgraçada”. A atriz entrou com uma representação contra o apresentador, julgada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no último dia 10 de maio.

São inúmeros os exemplos de perseguições a artistas que experimentam a associação da imagem de Cristo com a população LGBT. No campo da comunicação, vale lembrar que, em dezembro de 2019, o programa Porta dos Fundos, no Especial de Natal, apresentou uma versão de Jesus Cristo gay. O programa teve sua circulação suspensa por uma decisão judicial no Rio de Janeiro. Após a primeira exibição, a produtora do programa teve sua sede atacada por coquetéis molotov. Em janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffolli autorizou a exibição do programa e, finalmente, em novembro do ano passado, o STF suspendeu a censura ao programa por unanimidade. O entendimento do STF foi que a proibição violava a liberdade de expressão. 

O argumento da liberdade de expressão foi o mesmo utilizado pelo Tribunal de Justiça para absolver Sikêra Jr. Dois dias depois da decisão, o apresentador foi novamente denunciado. Desta vez, pelo ativista político Agripino Magalhães, que acusa o apresentador de estimular o discurso de ódio e a LGBTfobia. 

Porta dos Fundos retratou Jesus como homem gay. (Foto: Reprodução)

Limites da liberdade de expressão

Muitas vezes, grupos de direita e extrema-direita se apoiam no direito constitucional à liberdade de expressão para proferir e incitar violências contra grupos oprimidos. Apesar de a Justiça brasileira ter dificuldades de estabelecer os limites para o exercício da liberdade de expressão, uma fronteira é nítida: a liberdade de expressão não pode servir à propagação do discurso de ódio.

Em um artigo publicado por este blog em 2014, o Intervozes já defendia que “a liberdade de expressão não é um direito absoluto a ser garantido em detrimento dos demais direitos”. Nesse artigo, a jornalista e pesquisadora Ana Mielke lembra que liberdade de expressão é um direito assegurado em inúmeros tratados internacionais da ONU e da OEA, dos quais o Brasil é signatário.

Esses documentos apontam “que os países signatários devem normatizar a proibição da propaganda em favor da guerra; e a apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”. 

A liberdade de expressão existe, fundamentalmente, para garantir espaço para vozes dissonantes e múltiplas em relação às estruturas de poder vigentes. Mielke aponta ainda que, no Brasil, o debate sobre a liberdade de expressão foi desvirtuado e em muitas situações é instrumentalizado com a finalidade de manutenção da ordem. Apesar do artigo ter sido escrito em 2014, a absolvição de Sikêra Jr. em 2021 nos leva a pensar que pouca coisa mudou nesses sete anos.

O fato de a Justiça não interferir nas declarações agressivas contra a população LGBT feitas por um apresentador de TV traz inúmeras consequências práticas, não apenas no estímulo à violência física. Essas práticas também legitimam a perseguição e a intimidação às livres manifestações da população LGBT. 

Cancelamento na arte

Na semana passada, repercutiu a notícia de que a exposição Suaves Brutalidades, do artista Henrique Montagne Figueira, em Belém (PA), foi cancelada dois dias antes de sua montagem sem nenhum embasamento jurídico e comunicado formal. A exposição havia sido selecionada pelo edital do Banco da Amazônia e trazia uma série de obras com a temática homoerótica.

Ela ficaria aberta a visitação na entrada do banco e no seu canal virtual. A instituição argumentou que havia preocupação de segurança, referente à Covid-19, embora nenhuma exposição anterior tenha sido cancelada, mesmo quando vigorava decreto mais restritivo na cidade. A exposição também foi cancelada no ambiente virtual. 

O episódio lembra a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira inaugurada, em agosto de 2017, no Santander Cultural, em Porto Alegre. Por meio das redes sociais, o Movimento Brasil Livre (MBL) coordenou uma série de ataques e pedidos de boicotes à exposição, porque as obras Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva, do artista Fernando Baril, e Travesti da lambada e deusa das águas, de Bia Leite, desrespeitavam símbolos religiosos e faziam apologia à pedofilia, respectivamente. Alegavam, também, que aquela exposição não poderia receber recursos públicos.

Uma das obras da Queermuseu, encerrada antes do prazo

Três dias após a abertura, o Santander informou que “algumas obras desrespeitam símbolos, crenças e pessoas”, e, por isso, a exposição foi cancelada. O Ministério Público do Rio Grande do Sul entendeu não haver nenhuma irregularidade na exposição e recomendou a sua reabertura, mesmo assim, manteve-se suspensão. Um mês depois, a exposição foi vetada no Museu de Arte do Rio, a mando o ex-prefeito do Rio de Janeiro, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivela (Republicanos), o mesmo que, em 2019, mandou recolher uma HQ na Bienal do Livro por ter uma página com um beijo entre dois homens. A Queermuseu ficou fechada até agosto de 2018, quando, por meio de financiamento coletivo, foi reaberta pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Para além das redes

Os impedimentos à expressão da população LGBT e a falta de amparo judicial criam problemas cotidianos. De acordo com pesquisa Violência contra LGBTs+ nos contextos eleitoral e pós-eleitoral, realizada pela Gênero e Número, em 2018, 31% dos entrevistados disseram ter “medo ou receio de expor opinião política nas redes sociais por ser LGBT+”. O número sobe para 36% quando se trata de ter sofrido violência ao compartilhar, curtir ou comentar conteúdo político durante as eleições. Entre os que relataram a agressão, 53% são pardos e negros. O Facebook, com 30%, atinge o maior índice de ocorrência, seguido do WhatsApp, 19%, e Instagram, 16%. 

A inconsistência e ausência de dados públicos sobre a população LGBT dificultam a compreensão do fenômeno da LGBTfobia no Brasil. Os dados são levantados, principalmente, por movimentos políticos e organizações nacionais e internacionais. No caso da pesquisa citada, foram entrevistados LGBTs das capitais Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Embora não seja uma amostra de todo o Brasil, ela ajuda a refletir o contexto. 

A pesquisa mostra que 65% das pessoas trans entrevistadas disseram ter sofrido violência durante o período eleitoral presidencial. 76% das mulheres lésbicas afirmaram perceber um aumento da violência especialmente durante o processo eleitoral. Além disso, 98,5% dos entrevistados concordaram com a afirmação de que “o discurso promovido por candidaturas contrárias aos direitos das pessoas LGBT+ contribuiu para o aumento da violência direcionada a esta população nas redes sociais”. 

A violência, no entanto, não se limita às redes sociais. No último dia 13, o mandato da vereadora LGBT Benny Briolly (PSOL-RJ) anunciou que a parlamentar precisou sair de Niterói, sua cidade, e do Brasil, por estar com a sua integridade física em risco. Vale lembrar que, em março de 2018, a vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL-RJ), também LGBT, foi assassinada. Em janeiro de 2019, o deputado federal reeleito, Jean Wyllys, único parlamentar assumidamente gay no Congresso Nacional, diante ameaças, desistiu do mandato e saiu do país.

As eleições de 2020 foram marcadas pelo crescimento de vereadores LGBTs eleitos. De acordo com a plataforma Vote LGBT, ao compararmos com o pleito de 2016, observamos um crescimento de 62%. O aumento expressivo, em 2020, se mostrou também quando Erika Hilton (PSOL), em São Paulo, Duda Salabert (PDT), em Belo Horizonte, e Linda Brasil (PSOL), em Aracaju, foram não só as primeiras mulheres trans eleitas em suas cidades como também as mais votadas. 

Se por um lado há um avanço do movimento LGBT no parlamento brasileiro, logo após o resultado, as vereadoras Duda Salabert e Linda Brasil denunciaram que estavam recebendo ameaças de agressões físicas. Em janeiro de 2020, nas proximidades do dia 29, Dia da Visibilidade Trans, em uma semana, três vereadoras trans de São Paulo sofreram ameaças diretas. As covereadoras Carolina Iara e Samara Sosthenes, ambas do PSOL, tiveram disparos de armas de fogo em frente as suas casas, enquanto a vereadora Erika Hilton sofreu tentativa de invasão no seu gabinete.

É difícil dimensionar os efeitos diretos de um discurso de ódio puxado por movimentos da extrema direita nas redes sociais ou pronunciado por um apresentador de televisão em rede nacional, mas não há dúvidas também que eles colaboram para o aumento das agressões físicas e virtuais contra a população LGBT. Os episódios apresentados mostram, neste 17 de maio, Dia iInternacional de Combate a LGBTfobia, a necessidade de políticas de proteção a população LGBT, bem como a regulamentação dos meios de comunicação, para que o direito de liberdade de expressão não se sobreponha a outros direitos já assegurados. 

Thiago Coutinho é doutor em Memória Social pela Unirio e professor da UFC.

Gyssele Mendes é mestra em Comunicação pela UFF. Ambos são associados do Intervozes e integram a Setorial LGBTI+ Lurdinha.

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