Sociedade

“Política de drogas do Brasil vai contra evidências científicas”

Experiências menos repressivas colhem melhores resultados, aponta o professor Luís Fernando Tófoli

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Em meados de maio, o Senado aprovou um projeto de lei que altera profundamente a política nacional sobre drogas. O PL tramitava há nove anos e é de autoria do ex-deputado federal e atual ministro da Cidadania, Osmar Terra. Em linha com os retrocessos defendidos pelo governo Bolsonaro, o PL ignora as políticas de redução de danos e valoriza as comunidades terapêuticas, em geral administradas por grupos religiosos, e a abstinência.

Funciona? Segundo Luís Fernando Tófoli, professor de Psiquiatria da Unicamp e integrante do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas de São Paulo, as evidências empíricas e os estudos mais recentes mostram que experiências menos repressivas colhem melhores resultados, enquanto o endurecimento estimula o encarceramento em massa e causa danos à saúde dos usuários. O ideal, afirma, seria regular substância por substância, com níveis diferentes de controle por parte do Estado. “A criminalização da conduta do usuário não muda o comportamento”, resume.

CartaCapital: O projeto de lei dá um poder enorme às comunidades terapêuticas. Do ponto de vista médico, esse modelo funciona?

Luís Fernando Tófoli: Se você comparar as comunidades terapêuticas a tratamento nenhum, há um efeito positivo. Um efeito placebo. Existem alguns estudos, aqui e ali, mas ainda não existem grandes e bons levantamentos sobre os modelos de cuidados. Há uma revisão sistemática que diz que, na média dos pacientes das comunidades terapêuticas, o tratamento é tão eficiente quanto qualquer outro, inclusive aqueles sem reclusão.

CC: E a abstinência?

LFT: Quando você oferece apenas um único caminho, vários indivíduos vão ficar para trás no meio. Agora, isso não significa que o governo vai acabar com a redução de danos no País. O programa Redenção, do Bruno Covas, prefeito de São Paulo, deixou claro no lançamento que vai na contramão das posições anunciadas pelo governo federal. Não está proibida a redução de danos, uma bobagem. Como não houve a proibição da abstinência, ao contrário do que dizia o Osmar Terra.

Tófoli integra o conselho paulista sobre drogas. (Foto: Imago/Zuma Press)

CC: Qual seria o modelo mais adequado para lidar com as drogas no Brasil?

LFT: Cada país precisa encontrar seu caminho. Mas podemos aprender o que fazer e o que não fazer. A Suécia, país super-evoluído em outros indicadores, tem um número altíssimo de mortes por overdose por não aplicar a redução de danos. O modelo de Portugal é muito interessante. A partir do momento em que se define que o indivíduo é usuário, começa-se um processo para saber se ele é problemático ou não. Para os problemáticos há um esquema organizado de assistência social e tratamento para dar conta desses casos. Foi uma opção política, que livrou a polícia da tarefa de enxugar gelo em flagrantes e investiu o dinheiro em sistemas de tratamento. E que trouxe uma enorme queda na contaminação por HIV através das drogas injetáveis.

CC: Muita gente teme que, com as drogas descriminalizadas, o País viva um boom de consumo. Faz sentido essa preocupação?

LFT: Os dados empíricos indicam que não faz o menor sentido. No Uruguai, o porte de drogas para uso pessoal nunca foi crime. Alguém ouviu falar de um boom de drogas que tenha acontecido lá? A criminalização da conduta do usuário, até onde sabemos, não muda o comportamento. O comportamento muda a partir da percepção que se tem das drogas, e isso é muito mais complexo. Qual nicho social usa, quais os valores associados, qual a imagem que se tem do usuário em cada contexto. É isso que vai influenciar. E também as questões mercadológicas, como o preço das drogas. São como tendências de mercado, só que em um mercado ilegal.

CC: E nos casos de legalização?

LFT: Ainda não sabemos qual o impacto da legalização. No Canadá, no Uruguai e nos Estados Unidos, ainda não há nenhuma evidência de aumento monstruoso no consumo. Mas há informações muito claras de o quanto a proibição estimula o encarceramento e afeta a saúde de quem acaba preso.

“Pesquisas sugerem que, se você libera demais ou proíbe demais o uso das drogas, há um aumento nos riscos associados a essas substâncias”

CC: O senhor afirmou certa vez que, se fosse para descriminalizar apenas uma droga no Brasil, melhor seria liberar o crack. Por quê?

LFT: Dessa forma se daria prioridade à droga mais associada aos riscos de saúde e à vulnerabilidade social. O usuário de crack não vai chegar ao sistema de saúde, se sente acuado. O Estado é seu inimigo. Parece absurdo, mas, quando houve a criminalização da morfina e da heroína na Inglaterra, um grupo de médicos levantou-se e disse: não criminalize, transforme em uma droga de prescrição e nós prescrevemos. Os usuários ficariam viciados, mas o vício seria controlado por um agente social do Estado. Foi muito profético. A ideia é retirar da esfera criminal aqueles que mais precisam de auxílio.

CC: O ministro Osmar Terra parece acreditar em um país totalmente livre das drogas.

LFT: Osmar Terra está muito bem encaixado neste governo, que não dá bola para evidências científicas, que destrói universidades. Ele estava até um pouco deslocado no governo Temer. Ele diz uma série de absurdos do ponto de vista científico. Algumas coisas são distorções, outras são enganos e outras eu só posso acreditar que são mentiras. A descriminalização, mostram os dados, não traz impactos negativos. Não foram encontradas evidências de que ela influencie as tendências de consumo. Há até uma possibilidade de redução entre os mais jovens, como aconteceu em Portugal. Ao tirar da esfera criminal, você passa a olhar o problema como questão de saúde.

CC: Como a aprovação desse projeto vai afetar a discussão em curso no STF?

LFT: O projeto é de 2010. Muita coisa aconteceu nesse meio tempo em política de drogas. O Senado escolheu aprovar com duas sinalizações, uma delas falsa, a de que o projeto afetaria o mérito do julgamento do STF. Que, se aprovado, o Supremo não poderia “legalizar” as drogas. A outra é uma sinalização política. Eles quiseram, neste caso, mostrar ao Supremo que quem legisla é o Congresso. Não dá para dizer que o projeto é produto do momento político, mas o fato de o autor ser o atual ministro da Cidadania tem a ver.

CC: Muitos pesquisadores da área de segurança pública apontam a legalização como a única saída para o combate ao crime organizado. O senhor concorda?

LFT: Pesquisas sugerem que, se você libera demais ou proíbe demais o uso das drogas, há um aumento nos riscos associados a essas substâncias. O lugar ótimo estaria no meio do caminho: regulamentar substância por substância. A maconha poderia ser regulamentada como o álcool ou o tabaco. E o crack, de uma forma mais controlada. Com distribuição nas mãos do governo, talvez.

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