Sociedade

Olimpíadas: os mais rápidos e fortes estão atingindo seus limites matemáticos?

Os jogos modernos tornam extremamente importante a medição precisa da conquista. Mas, ao nos aproximarmos dos limites da capacidade atlética humana, os números contam só uma parte da história

Usain Bolt, da Jamaica, cruza a linha de chegada na final do revezamento 4x100m, à frente do americano Ryan Bailey. A equipe jamaicana bateu o recorde mundial da prova em Londres-2012. Foto: Johannes Eisele / AFP
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Por Daniel Tammet

Lágrimas. Tantas, que o rosto da espadachim sul-coreana brilhava. Durante mais de uma hora depois de sua derrota na arena ExCel, em 30 de julho, o florete de Shin A-lam ficou caído na pista ao seu lado. Ela não se mexia. Os juízes se reuniram, os espectadores aplaudiram lentamente. Todos os olhares estavam no relógio eletrônico. Um segundo havia afastado a coreana da vitória e de uma possível medalha de ouro olímpica. Quanto tempo dura um segundo? Mais que a lâmina de sua adversária, descobriu Shin em agonia.

Nos esforços olímpicos para vencer, um segundo muitas vezes é decisivo. Até os maiores atletas podem se encontrar do lado errado do tempo. Vinte e quatro horas depois do drama na esgrima, uma dupla de nadadores na prova de 200m borboleta tocou a parede simultaneamente. Michael Phelps — o competidor mais condecorado na história dos Jogos Olímpicos — teve de se conformar com uma rara prata: seu tempo de 1min53s01 ficou 1/20 de segundo atrás de Chad le Clos, da África do Sul. Phelps, massageando sua decepção, poderia ter recuado mentalmente quatro anos, aos jogos de Pequim, quando outra finalização simultânea dessa vez foi a seu favor. Uma revisão confirmou seu sétimo ouro na competição (equiparando-se ao recorde de Mark Spitz em 1972) por uma margem de 1/100 de segundo.

Essas margens eram impensáveis nos tempos de Pitágoras. Os antigos atletas gregos se importavam muito mais com o momento (kairos) do que com o tempo (chronos). Os lutadores e boxeadores buscavam o momento certo, o instante de maior oportunidade para derrubar um adversário ou acertar um direto vencedor. A vitória era sempre visível, incontroversa. Era a mesma história em outras disciplinas. A agitação das corridas de charretes tornava a competição pescoço a pescoço virtualmente impossível. Quedas e choques ocorriam regularmente durante as 12 voltas do percurso. Nos Jogos de 482 a.C., em um campo de 41, somente chegava ao fim.

Como nota Armand D’Angour em seu relato da mentalidade grega antiga, os atletas não demonstravam o desejo de atuar com maior eficiência ou correr cada vez mais depressa. Eles seguiam dietas especiais e forçavam seus corpos à exaustão, mas somente para ser o melhor naquele dia. Não se faziam medições acuradas, nem se mantinham registros confiáveis (podemos seguramente desconsiderar o salto de 16,5 metros de Phayllus de Kroton como proverbial). Não se mantinha um padrão único. O diâmetro dos discos podia variar de 14 a 34 centímetros. Cada cidade-estado tinha sua própria versão da corrida no estádio: em Olímpia, os competidores corriam 192 metros; em Delfi, 177; em Epidauro, 181; em Pérgamo, 210.

Quando o barão Pierre de Coubertin inaugurou os Jogos Olímpicos modernos em Atenas, em 1896, ele também os tornou matemáticos. Os mesmos pesos e distâncias viajavam em ciclos quadrienais de país em país e de cidade em cidade. Novas disciplinas como o pentatlo moderno (inventado por Coubertin), que estreou nos Jogos de Estocolmo em 1912, classificavam os participantes de maneira objetiva, usando pontos. As regras atuais do pentatlo qualificam tudo, desde o toque no florete de um adversário (que equivale a um atraso na corrida final de 3.000m de exatamente 7 segundos) ao valor de um segundo na piscina (mais ou menos 12 pontos, dependendo do tempo total do nadador em 200m). Os árbitros atualmente avaliam o embaraço de cair de um cavalo — durante a prova de salto — como uma dedução de 60 pontos.

Usando os números gerados por essas unidades padronizadas de medida, surgiram os primeiros recordes esportivos oficiais do mundo. O recorde, na analogia de Coubertin, tornou-se para o movimento olímpico o que a gravidade foi para a mecânica de Newton. Seus números abstratos denotam feitos de excelência humana do tipo que já foi elogiado nas odes de Píndaro. Mas, diferentemente dos poemas, os números são universais. A abstração anula os dedos doloridos, as partidas falsas e as multidões ruidosas de um determinado lugar e dia. Através dela podemos comparar o nado 200m borboleta recordista de Michael Phelps em Roma em 29 de julho de 2009 (1min51s51) com o de Mark Spitz em Munique em 28 de agosto de 1972 (2min00s07) ou o ponto em que o disco de Jürgen Schult pousou em Neubrandenburg em 6 de junho de 1986 (74,08m) com o alcançado por James Duncan, o primeiro recordista da disciplina, em Nova York em 27 de maio de 1912 (47,58m). Raramente, porém, fazemos uma pausa para contemplar as notáveis diferenças em, por exemplo, nutrição, incentivo financeiro ou posição na pista. Os números nos parecem desapaixonados, imutáveis, autoritários.

Nenhum recorde olímpico simboliza melhor a quantificação da conquista que o dos 100m masculinos. O corredor não enfrenta qualquer antigo 100m, mas sim a ideia de 100m: abrangendo uma faixa de território padronizada e rigidamente prescrita. Um século atrás, os espectadores em Estocolmo admiraram Donald Lippincott, um estudante da Universidade de Pensilvânia, quando ele estabeleceu o primeiro recorde mundial do evento no “maravilhoso tempo de 10 3/5 segundos” (10s6). Uma fileira de cronometristas com chapéus de palha apertou seus aparelhos (com precisão de 1/5 de segundo) quando ele passou correndo.

A cronometragem eletrônica suplantou os cronômetros nos Jogos de Helsinque em 1952. Na final, nada menos que quatro corredores cruzaram a linha em um tempo de 10s4. Mais notável ainda, os corredores foram considerados um pouco lentos. O recorde mundial da época, definido pela primeira vez por Jesse Owens 16 anos antes, definia a excelência da corrida em 10.2.

Os recordes, porém, não são imunes à insatisfação. Em muitas mentes, aqueles 2/10 de segundo incomodavam. Dezesseis anos depois de Helsinque, correndo em altitude nos Jogos da Cidade do México, o americano Jim Hines, vencedor da medalha de ouro com 9s95, pareceu redefinir a corrida. Hines tornou-se a primeira pessoa na história a correr abaixo da marca de 10 segundos.

Os velocistas de hoje são medidos em centésimos de segundo. Na semana passada em Londres, o equipamento de altíssima tecnologia acompanhou o corredor Usain Bolt em cada passo. Seu tempo de reação na largada foi de 0.165 (classificando-o em um modesto quarto lugar entre oito). Mas então o jamaicano entrou em seu ritmo. Suas longas pernas concluíram a corrida em 41 passadas. Seu recorde olímpico de 9s63 o colocou em 1/8 de segundo — cerca de 1,20 metro — à frente do bando. Para Bolt, porém, ganhar a medalha não foi suficiente, e ele confidenciou a um repórter: “Então surgiu na minha cabeça: recorde mundial! [Bolt fez 9.58 em 2009]… Ainda é um tempo rápido, o segundo mais rápido da história, mas não vou dizer que foi a corrida perfeita porque sei que meu treinador discordaria”.

Bolt havia falado em correr em menos de 9.5 em Londres. Afinal, se os números abstratos de um recorde nos permitem comparar desempenhos com o passado, eles tornam igualmente possível prever o futuro. Os corredores perseguem um número fantasma, o ideal platônico da “corrida perfeita”. O que é esse número? Os matemáticos há muito tempo discutem a questão. Segundo John Barrow, professor de ciências matemáticas na Universidade de Cambridge, os limites da velocidade humana continuam muito distantes. Uma reação mais rápida ao tiro de largada, uma brisa de 2 metros por segundo em suas costas, altitude maior e portanto menos resistência do ar: tudo isso ajudaria Bolt a conseguir uma velocidade ainda maior. Barrow calcula um recorde potencial de 9.45. O estatístico Reza Noubary concorda, estimando “com 95% de segurança” o limite superior em 9.44. Outros, medindo a melhora relativa no desempenho em corridas entre jogos consecutivos desde 1896, concluem que teremos de esperar pelo menos até 2020 para que alguém supere 9s5. Enquanto isso, o físico Filippo Radicchi prevê um tempo definitivo nos 100m masculinos de 8.28 (em cálculos mais conservadores ele colocou 8s8).

Mas alguns questionam o que o filósofo dos esportes Sigmund Loland descreve como o “culto de entidades abstratas”, em que uma corrida é transformada em “uma busca por conhecimento objetivo semelhante ao que encontramos no experimento científico”. A atenção oscila entre a humanidade de Bolt e Phelps — suas histórias e rivalidades peculiares — e “questões de pesquisa empíricas”: em que velocidade um ser humano consegue correr? Com que rapidez ele ou ela pode nadar? Por trás dessas perguntas, nota Loland, espreita a ideia iluminista de progresso indefinido.

Somos todos filhos do iluminismo: contamos calorias, programamos o despertador, assistimos à previsão do tempo na TV. Tão habituais e inconspícuos são esses rituais cotidianos que os realizamos automaticamente. Ao contrário dos antigos gregos, que consideravam o homem “a medida de todas as coisas”, sentimo-nos à vontade em um cosmo em infinita expansão. Grandes pensadores dos séculos 17, 18 e 19 nos transmitiram a noção da civilização movendo-se em uma única e desejável direção. Termômetros, balanças e microscópios há muito tempo no levaram em segurança para além dos pântanos da aproximação. Tempo, risco e mortalidade são hoje contados em números e quantificados, já que o progresso incremental depende da medição acurada.

“Citius, altius, fortius”, diz o moto olímpico, mas, como indica Loland, a ideia de progresso indefinido corre o risco de levar o esporte a um impasse. Os recordes não poderão ser superados para sempre. Em breve, talvez, os tempos dos 100m terão um terceiro decimal depois do ponto. Mesmo essa solução, porém, poderá não funcionar. Um milésimo de segundo representa um único centímetro, mas sabe-se que o comprimento das faixas da pista diferem em até 2cm.

Por que reduzir o desempenho a um número? Cada esporte e cada esportista são únicos. Considere, em vez de recordes abstratos, um enfoque renovado para o drama humano e a infinita variedade da partida.

Jogos de bola como o tênis oferecem uma visão alternativa da infinita variedade do esporte: intuição e proeza técnica complementam a velocidade e a força do atleta. As unidades do jogo são definidas de maneira peculiar (zero é charmosamente chamado de “love”); e estatísticas como “voleios totais” ou porcentagem de saques devolvidos são meros efeitos colaterais de um jogo. A conquista se adapta a cada partida. Horas antes da corrida de Bolt no último domingo, Andy Murray disputou a final masculina olímpica contra Roger Federer. Semanas antes, no mesmo lugar, Murray tinha perdido a final de Wimbledon para o mesmo homem; desta vez ele ganhou o ouro. Fãs de Murray se lembram da rivalidade, da importância da partida. E, por um momento fugaz, como o escocês exultante, esquecemos de nós mesmos.

Marcando o heptatlo

Além das incríveis reservas de determinação, perícia e força, Jessica Ennis precisa de uma nota decente em matemática para compreender o sistema de pontuação usado para seu evento, o heptatlo. Ele depende de uma série de equações destinadas a refletir quão melhor uma atleta se sai, quanto mais difícil se torna melhorar os resultados. Por exemplo, é mais fácil aumentar a distância de seu dardo de 45m para 50m do que de 50m para 55m. No entanto, alguns afirmam que esse sistema é prejudicial a certos eventos porque as equações não levam em conta a diferente extensão dos resultados em cada evento. Por isso as disciplinas com maior extensão na verdade valem mais pontos. Dessa perspectiva, o arremesso do peso e lançamento do dardo são duas vezes tão importante que os 110m com barreiras. O pessoal do aftermatter.com propôs um novo conjunto de valores, que segundo eles dá igual importância a cada evento. Felizmente, eles são amigos de Jess: ela teria ganho o ouro por 399 pontos em vez de 306.

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Por Daniel Tammet

Lágrimas. Tantas, que o rosto da espadachim sul-coreana brilhava. Durante mais de uma hora depois de sua derrota na arena ExCel, em 30 de julho, o florete de Shin A-lam ficou caído na pista ao seu lado. Ela não se mexia. Os juízes se reuniram, os espectadores aplaudiram lentamente. Todos os olhares estavam no relógio eletrônico. Um segundo havia afastado a coreana da vitória e de uma possível medalha de ouro olímpica. Quanto tempo dura um segundo? Mais que a lâmina de sua adversária, descobriu Shin em agonia.

Nos esforços olímpicos para vencer, um segundo muitas vezes é decisivo. Até os maiores atletas podem se encontrar do lado errado do tempo. Vinte e quatro horas depois do drama na esgrima, uma dupla de nadadores na prova de 200m borboleta tocou a parede simultaneamente. Michael Phelps — o competidor mais condecorado na história dos Jogos Olímpicos — teve de se conformar com uma rara prata: seu tempo de 1min53s01 ficou 1/20 de segundo atrás de Chad le Clos, da África do Sul. Phelps, massageando sua decepção, poderia ter recuado mentalmente quatro anos, aos jogos de Pequim, quando outra finalização simultânea dessa vez foi a seu favor. Uma revisão confirmou seu sétimo ouro na competição (equiparando-se ao recorde de Mark Spitz em 1972) por uma margem de 1/100 de segundo.

Essas margens eram impensáveis nos tempos de Pitágoras. Os antigos atletas gregos se importavam muito mais com o momento (kairos) do que com o tempo (chronos). Os lutadores e boxeadores buscavam o momento certo, o instante de maior oportunidade para derrubar um adversário ou acertar um direto vencedor. A vitória era sempre visível, incontroversa. Era a mesma história em outras disciplinas. A agitação das corridas de charretes tornava a competição pescoço a pescoço virtualmente impossível. Quedas e choques ocorriam regularmente durante as 12 voltas do percurso. Nos Jogos de 482 a.C., em um campo de 41, somente chegava ao fim.

Como nota Armand D’Angour em seu relato da mentalidade grega antiga, os atletas não demonstravam o desejo de atuar com maior eficiência ou correr cada vez mais depressa. Eles seguiam dietas especiais e forçavam seus corpos à exaustão, mas somente para ser o melhor naquele dia. Não se faziam medições acuradas, nem se mantinham registros confiáveis (podemos seguramente desconsiderar o salto de 16,5 metros de Phayllus de Kroton como proverbial). Não se mantinha um padrão único. O diâmetro dos discos podia variar de 14 a 34 centímetros. Cada cidade-estado tinha sua própria versão da corrida no estádio: em Olímpia, os competidores corriam 192 metros; em Delfi, 177; em Epidauro, 181; em Pérgamo, 210.

Quando o barão Pierre de Coubertin inaugurou os Jogos Olímpicos modernos em Atenas, em 1896, ele também os tornou matemáticos. Os mesmos pesos e distâncias viajavam em ciclos quadrienais de país em país e de cidade em cidade. Novas disciplinas como o pentatlo moderno (inventado por Coubertin), que estreou nos Jogos de Estocolmo em 1912, classificavam os participantes de maneira objetiva, usando pontos. As regras atuais do pentatlo qualificam tudo, desde o toque no florete de um adversário (que equivale a um atraso na corrida final de 3.000m de exatamente 7 segundos) ao valor de um segundo na piscina (mais ou menos 12 pontos, dependendo do tempo total do nadador em 200m). Os árbitros atualmente avaliam o embaraço de cair de um cavalo — durante a prova de salto — como uma dedução de 60 pontos.

Usando os números gerados por essas unidades padronizadas de medida, surgiram os primeiros recordes esportivos oficiais do mundo. O recorde, na analogia de Coubertin, tornou-se para o movimento olímpico o que a gravidade foi para a mecânica de Newton. Seus números abstratos denotam feitos de excelência humana do tipo que já foi elogiado nas odes de Píndaro. Mas, diferentemente dos poemas, os números são universais. A abstração anula os dedos doloridos, as partidas falsas e as multidões ruidosas de um determinado lugar e dia. Através dela podemos comparar o nado 200m borboleta recordista de Michael Phelps em Roma em 29 de julho de 2009 (1min51s51) com o de Mark Spitz em Munique em 28 de agosto de 1972 (2min00s07) ou o ponto em que o disco de Jürgen Schult pousou em Neubrandenburg em 6 de junho de 1986 (74,08m) com o alcançado por James Duncan, o primeiro recordista da disciplina, em Nova York em 27 de maio de 1912 (47,58m). Raramente, porém, fazemos uma pausa para contemplar as notáveis diferenças em, por exemplo, nutrição, incentivo financeiro ou posição na pista. Os números nos parecem desapaixonados, imutáveis, autoritários.

Nenhum recorde olímpico simboliza melhor a quantificação da conquista que o dos 100m masculinos. O corredor não enfrenta qualquer antigo 100m, mas sim a ideia de 100m: abrangendo uma faixa de território padronizada e rigidamente prescrita. Um século atrás, os espectadores em Estocolmo admiraram Donald Lippincott, um estudante da Universidade de Pensilvânia, quando ele estabeleceu o primeiro recorde mundial do evento no “maravilhoso tempo de 10 3/5 segundos” (10s6). Uma fileira de cronometristas com chapéus de palha apertou seus aparelhos (com precisão de 1/5 de segundo) quando ele passou correndo.

A cronometragem eletrônica suplantou os cronômetros nos Jogos de Helsinque em 1952. Na final, nada menos que quatro corredores cruzaram a linha em um tempo de 10s4. Mais notável ainda, os corredores foram considerados um pouco lentos. O recorde mundial da época, definido pela primeira vez por Jesse Owens 16 anos antes, definia a excelência da corrida em 10.2.

Os recordes, porém, não são imunes à insatisfação. Em muitas mentes, aqueles 2/10 de segundo incomodavam. Dezesseis anos depois de Helsinque, correndo em altitude nos Jogos da Cidade do México, o americano Jim Hines, vencedor da medalha de ouro com 9s95, pareceu redefinir a corrida. Hines tornou-se a primeira pessoa na história a correr abaixo da marca de 10 segundos.

Os velocistas de hoje são medidos em centésimos de segundo. Na semana passada em Londres, o equipamento de altíssima tecnologia acompanhou o corredor Usain Bolt em cada passo. Seu tempo de reação na largada foi de 0.165 (classificando-o em um modesto quarto lugar entre oito). Mas então o jamaicano entrou em seu ritmo. Suas longas pernas concluíram a corrida em 41 passadas. Seu recorde olímpico de 9s63 o colocou em 1/8 de segundo — cerca de 1,20 metro — à frente do bando. Para Bolt, porém, ganhar a medalha não foi suficiente, e ele confidenciou a um repórter: “Então surgiu na minha cabeça: recorde mundial! [Bolt fez 9.58 em 2009]… Ainda é um tempo rápido, o segundo mais rápido da história, mas não vou dizer que foi a corrida perfeita porque sei que meu treinador discordaria”.

Bolt havia falado em correr em menos de 9.5 em Londres. Afinal, se os números abstratos de um recorde nos permitem comparar desempenhos com o passado, eles tornam igualmente possível prever o futuro. Os corredores perseguem um número fantasma, o ideal platônico da “corrida perfeita”. O que é esse número? Os matemáticos há muito tempo discutem a questão. Segundo John Barrow, professor de ciências matemáticas na Universidade de Cambridge, os limites da velocidade humana continuam muito distantes. Uma reação mais rápida ao tiro de largada, uma brisa de 2 metros por segundo em suas costas, altitude maior e portanto menos resistência do ar: tudo isso ajudaria Bolt a conseguir uma velocidade ainda maior. Barrow calcula um recorde potencial de 9.45. O estatístico Reza Noubary concorda, estimando “com 95% de segurança” o limite superior em 9.44. Outros, medindo a melhora relativa no desempenho em corridas entre jogos consecutivos desde 1896, concluem que teremos de esperar pelo menos até 2020 para que alguém supere 9s5. Enquanto isso, o físico Filippo Radicchi prevê um tempo definitivo nos 100m masculinos de 8.28 (em cálculos mais conservadores ele colocou 8s8).

Mas alguns questionam o que o filósofo dos esportes Sigmund Loland descreve como o “culto de entidades abstratas”, em que uma corrida é transformada em “uma busca por conhecimento objetivo semelhante ao que encontramos no experimento científico”. A atenção oscila entre a humanidade de Bolt e Phelps — suas histórias e rivalidades peculiares — e “questões de pesquisa empíricas”: em que velocidade um ser humano consegue correr? Com que rapidez ele ou ela pode nadar? Por trás dessas perguntas, nota Loland, espreita a ideia iluminista de progresso indefinido.

Somos todos filhos do iluminismo: contamos calorias, programamos o despertador, assistimos à previsão do tempo na TV. Tão habituais e inconspícuos são esses rituais cotidianos que os realizamos automaticamente. Ao contrário dos antigos gregos, que consideravam o homem “a medida de todas as coisas”, sentimo-nos à vontade em um cosmo em infinita expansão. Grandes pensadores dos séculos 17, 18 e 19 nos transmitiram a noção da civilização movendo-se em uma única e desejável direção. Termômetros, balanças e microscópios há muito tempo no levaram em segurança para além dos pântanos da aproximação. Tempo, risco e mortalidade são hoje contados em números e quantificados, já que o progresso incremental depende da medição acurada.

“Citius, altius, fortius”, diz o moto olímpico, mas, como indica Loland, a ideia de progresso indefinido corre o risco de levar o esporte a um impasse. Os recordes não poderão ser superados para sempre. Em breve, talvez, os tempos dos 100m terão um terceiro decimal depois do ponto. Mesmo essa solução, porém, poderá não funcionar. Um milésimo de segundo representa um único centímetro, mas sabe-se que o comprimento das faixas da pista diferem em até 2cm.

Por que reduzir o desempenho a um número? Cada esporte e cada esportista são únicos. Considere, em vez de recordes abstratos, um enfoque renovado para o drama humano e a infinita variedade da partida.

Jogos de bola como o tênis oferecem uma visão alternativa da infinita variedade do esporte: intuição e proeza técnica complementam a velocidade e a força do atleta. As unidades do jogo são definidas de maneira peculiar (zero é charmosamente chamado de “love”); e estatísticas como “voleios totais” ou porcentagem de saques devolvidos são meros efeitos colaterais de um jogo. A conquista se adapta a cada partida. Horas antes da corrida de Bolt no último domingo, Andy Murray disputou a final masculina olímpica contra Roger Federer. Semanas antes, no mesmo lugar, Murray tinha perdido a final de Wimbledon para o mesmo homem; desta vez ele ganhou o ouro. Fãs de Murray se lembram da rivalidade, da importância da partida. E, por um momento fugaz, como o escocês exultante, esquecemos de nós mesmos.

Marcando o heptatlo

Além das incríveis reservas de determinação, perícia e força, Jessica Ennis precisa de uma nota decente em matemática para compreender o sistema de pontuação usado para seu evento, o heptatlo. Ele depende de uma série de equações destinadas a refletir quão melhor uma atleta se sai, quanto mais difícil se torna melhorar os resultados. Por exemplo, é mais fácil aumentar a distância de seu dardo de 45m para 50m do que de 50m para 55m. No entanto, alguns afirmam que esse sistema é prejudicial a certos eventos porque as equações não levam em conta a diferente extensão dos resultados em cada evento. Por isso as disciplinas com maior extensão na verdade valem mais pontos. Dessa perspectiva, o arremesso do peso e lançamento do dardo são duas vezes tão importante que os 110m com barreiras. O pessoal do aftermatter.com propôs um novo conjunto de valores, que segundo eles dá igual importância a cada evento. Felizmente, eles são amigos de Jess: ela teria ganho o ouro por 399 pontos em vez de 306.

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