Sociedade

Olimpíada das Mulheres no País do Futebol

A insustentável leviandade da mídia para com as atletas beira a molecagem quando se trata das guerreiras do futebol

Ministério do Esporte
Apoie Siga-nos no

Talvez o esporte seja o único lugar onde a competitividade e o desejo de vencer possam se dar num contexto de plena justiça. As regras de cada modalidade servem, afinal, de forma equânime para os nela envolvidos.

Mas se esta vem sendo a #OlimpíadaDasMulheres, é menos por causa de resultados absolutos medidos em competições justas, e mais como metáfora para disputas de gênero que, ao transbordarem este espaço, mal contam como “disputa”, visto que visam equidade.

Já escrevi aqui que feminismo não é imposição ideológica. Também não é vingança. Nem tie-break, pois ainda que relações de gênero fossem um jogo, ele nunca esteve empatado. Feminismo é justiça por equidade. Em todos os campos.

Entender a magnitude da empreitada que é lutar por esta equidade não requer um esforço igualmente magnânimo, no entanto. Começa por acreditar no que diz quem aponta para onde a desigualdade se revela. Ou, se pedir isso parecer demais, que se contemple a possibilidade de que tenham razão. Em suma: é necessário no mínimo tentar assimilar o que dizem as mulheres sobre suas experiências como mulheres, no esporte ou em qualquer área, especialmente se muitas mulheres endossam a mesma denúncia. Mas este raramente é o caso.

Nenhuma atleta está imune à mídia machista (nenhuma mulher está), mas as histórias que melhor fundamentam o argumento que venho fazendo até agora vêm do futebol. Espero que seja evidente que o que pretendo com este artigo é delinear a tremenda falta de compreensão a respeito do que marcamos como “o machismo presente no discurso da mídia”, e fazê-lo usando o futebol como simbologia é útil, pois, ao menos no contexto brasileiro, é aí que esta presença é mais forte, acontece das formas mais previsíveis, e com uma constância aparentemente inabalável – apesar do conhecimento produzido sobre o tema estar abundantemente disponível.

Em entrevista recente a meia Formiga – única jogadora do mundo a ter participado de cinco Jogos Olímpicos, ou seja, todas as edições desde que a modalidade foi inserida nos eventos – declarou com sapiência da veterana que é que se pudesse trocava todos os seus prêmios pelo aprimoramento do profissionalismo no futebol brasileiro. A argumentação é simples: “Eu não teria medalha, mas o Brasil ganharia muitas. Basta profissionalizar para que venha o ouro muitas vezes”. Formiga, que felizmente promete não parar de falar, pois “a coisas precisam melhorar”, infelizmente não é a primeira jogadora de futebol a apontar para a precariedade lamentável onde floresce o futebol das mulheres.

Escrevo este texto horas após o jogo entre Brasil e Suécia pelo lugar na final do futebol feminino, que perdemos nos pênaltis, e a disputa agora é pelo bronze. Assim são os jogos, se ganha ou se perde. E apesar do dia difícil para todas as modalidades femininas, nem tudo está perdido. Não vingamos no handebol, no atletismo e no salto com varas, e o sonho do tri acabou para a equipe do vôlei – mas a corrida por medalhas continua, no futebol, na vela e no vôlei de praia, e nada nos tira os bronzes de Poliana Okimoto e Mayra Aguiar, muito menos o delicioso ouro de Rafaela Silva.

O dia não foi o melhor para nós nos jogos do Rio até agora, mas ficou pior do que precisava com o que mais pareceu a reação do Clube do Bolinha frente ao desempenho das Luluzinhas.

E apesar de ser fácil – e apropriado – fazer piada com o caráter infantil das gracinhas misóginas feitas em relação a atuação de atletas mulheres, chacotear esse comportamento pueril é insuficiente, pois a falaciosamente inofensiva brincadeira de mau gosto é uma das mais potentes engrenagens da máquina de moer mulheres.

Uma coleção de clipagens circulando pelas redes sociais acumula exemplos de machismo em matérias jornalísticas sobre a #Rio2016, e não apenas no Brasil. Para quem acompanha a mídia esportiva com lentes feministas firmemente plantadas nos olhos há pelo menos três Olimpíadas, a sensação é de que plus ça change, plus c’est la même chose. São sempre os mesmos erros machistas, portanto os apontamentos feministas soam repetitivos.

Desde o início das Olimpíadas, como era de se esperar, não faltaram comentários obsoletos sobre o futebol de mulheres. Não me refiro a opiniões de comentaristas de redes sociais, mas sim ao jornalismo esportivo. Opinião de leigo vá lá, mas jornalismo não deveria ser pautado em achismos, e para isso a cobertura esportiva precisa buscar saber mais sobre a história das mulheres no esporte.

Simetrias entre a modalidade conforme ela é praticada por homens e mulheres, sem levar em consideração o contexto político, social e econômico que resultam da/fomentam a desigualdade de gênero, são falsas, pois é justamente o contexto que afeta o nível técnico da prática esportiva de homens e mulheres. Insistir em comparar o futebol de homens e mulheres usando exatamente os mesmos critérios, sem olhar para o contexto, endossa o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu apelida de “paradoxo da doxa” – ou seja, a naturalidade com que a ordem tal como ela é se perpetua, com suas obrigações e sanções, a ponto de fazer mesmo as condições mais intoleráveis de existência parecerem aceitáveis, apesar das injustiças pautadas em suas relações de poder. Em bom português, é o “é assim porque sempre foi assim” que não percebe que não é bem assim. Os padrões duplos de análise pautados no que mais parece ser o gosto dos jornalistas do que em conhecimento contextualizado – como, por exemplo, o fato de que a prática do futebol era proibida para as mulheres até 1979 – também sustentam esse paradoxo.

É esperado dos formadores de opinião – e jornalistas com espaço na mídia nacional fazem parte deste grupo – não apenas um mínimo de conhecimento a respeito do assunto que estão comentando, mas também que quando falhas em seus argumentos são apontadas, que tenham pelo menos a sensatez de verificar os fatos. Mas quando se trata de mulheres apontando falhas no discurso deles sobre o futebol feminino, este raramente é o caso.

Existe um ciclo de debate gerado pela cobertura machista de mídia – notável especialmente na mídia esportiva sobre o futebol de mulheres – que vai mais ou menos assim: é feito um comentário machista; mulheres apontam o machismo; reclamam do “mimimi” e da “ditadura do politicamente correto” (ou equivalente); dá-se um furdunço argumentativo; e (duas possibilidades) acaba por aí mesmo, ou o comentarista se retrata sem se retratar.

Vamos ilustrar esse ciclo com um exemplo bastante recente. O machismo embutido em um tweet de Milton Neves, que foi bastante condescendente com o futebol feminino, foi imediatamente exposto, para ser imediatamente refutado, para que logo sua conta virasse um repositório de ofensas e acusações, para que mais tarde ele postasse um texto em seu blog no qual simula respeitar o futebol de mulheres afim de não reconhecer a gafe e evitar o trabalho de dar maiores informações, ou buscar melhores explicações.

Em entrevistas que tenho dado para veículos interessados nos pareceres de quem trabalha com gênero e futebol, tanto sobre o jogo quanto sobre a cobertura machista dele durante os jogos olímpicos, minha resposta para a frequente pergunta “o que é preciso para que o futebol de mulheres se aprimore” tem sido “ouvir as atletas, como faz o feminismo”.

O feminismo é a teoria social feita a partir da perspectiva das mulheres. Falar sobre este conhecimento, sobre esta perspectiva, é sair do paradoxo da doxa, que é androcêntrica. Silenciamentos soam alarmes feministas pois é no silêncio que se perpetuam as injustiças. Vamos continuar falando, porque vamos continuar relatando e construindo a história a partir da nossa perspectiva. É preciso saber as histórias das mulheres para que se entenda o que acontece em suas vidas. Esta perspectiva não é opcional – ela é fundamental.

Não uso a alcunha “guerreiras” para descrever as jogadoras do futebol de mulheres levianamente. Os obstáculos que estas mulheres enfrentam permanecem relativamente invisíveis para quem somente acompanha os jogos quando elas já estão na seleção e as brigas de que se tem notícia são por igualdade salarial e espaço de mídia, ainda que eles sejam constantemente revelados em entrevistas como a de Formiga, em reações imediatas a machismo nas mídias sociais ou través das inúmeras iniciativas, como o Guerreiras Project, que relatam as histórias das protagonistas deste debate.

Precisamos ouvi-las para conhecer estes obstáculos, e é urgente que comentaristas profissionais os levem em consideração antes de emitirem opiniões infundadas disfarçadas de jornalismo. É esta combinação de falta de informação com falta de vontade de adquiri-la mesmo quando ela vem justamente das mulheres, que têm mais conhecimento da causa, o que configura o que chamamos de “machismo!”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo