Sociedade

O Judiciário é cúmplice

Apenas 1% dos acusados por trabalho escravo é condenado à prisão em regime fechado no Brasil

Uma megaoperação libertou 337 trabalhadores em julho deste ano - Imagem: Mohammad Ponir Hossain/NurPhoto/AFP
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“Elas foram privadas de estudo, não foram alfabetizadas. Uma delas nunca teve contato com dinheiro, não sabe distinguir notas. Elas nunca tiveram acesso a lazer, nunca foram ao cinema, nunca foram a uma praia”, comenta a delegada Cynthia Silveira, da Polícia Federal, logo após a libertação de duas irmãs submetidas a condições análogas à escravidão na Paraíba. Segundo os autos da fiscalização, a mais jovem, de 38 anos, trabalhava como doméstica desde os 9 em João Pessoa para a filha da empregadora da irmã, que tem 57 anos e morava em Alagoa Grande.

Quando crianças, as irmãs moravam nas terras de um engenho. Após a morte dos pais lavradores, a senhora da casa-grande decidiu manter a moça mais velha como sua empregada e entregou a criança sob os cuidados da filha. “Isso lembra muito o período colonial, em que as trabalhadoras escravizadas eram passadas entre gerações de uma mesma família”, observa o procurador Italvar Medina, da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), vinculada ao Ministério Público do Trabalho.

As mulheres foram encontradas durante a Operação Resgate II, a maior operação de combate ao trabalho escravo no Brasil, que resultou na libertação de 337 trabalhadores, incluindo cinco crianças e adolescentes e quatro migrantes de nacionalidade paraguaia e venezuelana. Destes, 149 também foram vítimas de tráfico de pessoas, denuncia o MPT. No campo, os flagrantes ocorreram, sobretudo, nas lavouras de café e em fazendas de criação de gado para corte. Nos centros urbanos, destacou-se o caso de uma comunidade terapêutica que explorava a mão de obra de ­dependentes químicos, sem pagar qualquer remuneração. Outras quatro trabalhadoras domésticas, além das irmãs paraibanas, também foram libertadas.

Em 11 anos, apenas 6,3% dos réus foram condenados definitivamente. Um terço dos indiciados nem sequer foi levado a julgamento

Desde o início do ano, foram resgatadas ao menos 1.124 vítimas de trabalho escravo no Brasil. Os empregadores flagrados submetendo funcionários a jornadas exaustivas, condições degradantes, servidão por dívidas ou trabalhos forçados serão obrigados a formalizar o vínculo empregatício das vítimas, bem como pagar as verbas salariais e rescisórias devidas. Da mesma forma podem ser responsabilizados por danos morais individuais e coletivos, multas administrativas e ações criminais. Dificilmente, no entanto, os escravocratas serão condenados à prisão em regime fechado, embora o artigo 149 do Código Penal preveja até oito anos de reclusão a quem reduzir uma pessoa à “condição análoga à de escravo”.

A impunidade, nos casos de responsabilização criminal, é a regra. Um terço dos indiciados nem sequer vai a julgamento e somente 6,3% dos réus são condenados definitivamente, atesta uma pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG. Pior, apenas 1% dos acusados acabam sentenciados a mais de quatro anos de prisão e cumprem pena em regime fechado. Quando a pena é inferior a esse período, o condenado migra para o regime semiaberto e pode ­pleitear a prestação de serviços comunitários.

Encomendada pelo Ministério dos Direitos Humanos e financiada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Pnud, a pesquisa analisou todas as ações penais instauradas no ­País com base no artigo 149 do Código Penal de 2008 a 2019. Segundo o estudo, diversos fatores contribuem para a impunidade. Um deles é morosidade da Justiça Federal, a provocar a prescrição dos crimes imputados em numerosos processos. Outro é a dificuldade de ouvir em ­juízo vítimas e testemunhas muitos anos após a fiscalização que constatou a ocorrência de trabalho escravo. Após serem libertados, muitos trabalhadores retornam aos estados de origem e nem sempre permanecem no mesmo endereço. Sem a confirmação dos depoimentos, os casos são arquivados por falta de provas.

Fonte: Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, com dados oficiais do MPF, dos TRFs e do CNJ

O maior obstáculo é, porém, a relutância dos magistrados em reconhecer as condições degradantes impostas aos empregados como um dos elementos que caracterizam as formas contemporâneas de trabalho escravo, observa Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica da UFMG. “Em muitos processos, vemos juízes e desembargadores reconhecendo que havia condições degradantes de trabalho, mas elas não seriam tão degradantes a ponto de configurar trabalho escravo”, diz. “É curioso porque, em 94% dos casos que monitoramos em Minas Gerais, vemos o tripé completo da degradância: alojamentos precários, ausência de saneamento básico e falta de água potável. Muitos trabalhadores nem têm colchões, precisam fazer as necessidades fisiológicas no mato e bebem a mesma água dada aos animais. Como é possível não considerar isso degradante o suficiente?”

Por incrível que pareça, o Supremo Tribunal Federal terá de decidir, provavelmente no segundo semestre deste ano, se a “realidade do campo” pode justificar o trabalho escravo. Em 25 de fevereiro de 2019, a Quarta Turma do TRF da 1ª Região absolveu dois acusados de manter trabalhadores em condição análoga à escravidão no interior do Pará. Os réus contrataram verbalmente 52 trabalhadores, aliciados por “gatos”, com a promessa de remuneração justa. Os lavradores foram, porém, submetidos a jornadas extenuantes e condições insalubres, sem quaisquer direitos. No acórdão da decisão, o relator Olindo Menezes observa que o trabalho rural “tem sempre o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal”, mas não pode ser confundido com o trabalho em condições degradantes. Segundo o desembargador, os alojamentos precários, a falta de água potável e a ausência de instalações sanitárias são “comuns na realidade rústica brasileira”, e só poderiam justificar a condenação “nos casos mais graves, nos quais, efetivamente, haja o rebaixamento do trabalhador na sua condição humana, em tarefas em cuja execução é submetido a constrangimentos econômicos e pessoais (morais) inaceitáveis”.

No segundo semestre, o STF deve decidir se a “realidade do campo” justifica o trabalho escravo

Em raro lampejo de sensatez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, recorreu da ­decisão, ­observando que não se pode admitir uma diferenciação do conceito de trabalho degradante no campo ou na cidade. “Decisões que, mesmo reconhecendo as condições inadequadas e degradantes a que são submetidos os trabalhadores rurais, deixem de imputar aos responsáveis as consequências jurídicas determinadas pelo Código Penal e pela Constituição, indo de encontro à dignidade das pessoas e à liberdade de trabalho, hão de ser reformadas”, escreveu Aras, ao pedir para o STF se pronunciar sobre a controvérsia e reconhecer a repercussão geral do caso.

“Até 2002, o artigo 149 do Código Penal tinha uma redação bastante vaga, que realmente dava margem para interpretação mais subjetiva por parte dos juízes. Mas isso mudou no ano seguinte, quando a redação incluiu os conceitos de jornada exaustiva e condições degradantes na caracterização do crime de trabalho escravo”, observa Valena Jacob Chaves Mesquita, professora e pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia, vinculada à Universidade Federal do Pará, que participa do julgamento no STF na condição de amicus curiae. “Temos uma legislação sobre o tema bastante elogiada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelas Nações Unidas. O problema é que o Estado se recusa a cumpri-la. Desde 2014, a Emenda Constitucional nº 81 prevê a expropriação de terras de quem explora trabalho escravo para a reforma agrária. Mas o Executivo não cumpre a determinação, está à espera de regulamentação da matéria pelo Legislativo. Uma regulamentação que nem precisaria existir, na avaliação de numerosos juristas. E a bancada ruralista não deixa esse projeto avançar de modo algum.”

Em sua tese de doutorado, Valena Mesquita analisou todas as ações penais ajuizadas contra acusados de trabalho escravo no Pará até 2014, quase 400 processos. “Ninguém foi preso”, garante. “Lamentavelmente, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são coniventes com o trabalho escravo no Brasil. Bastaria aplicar a lei para mudar o cenário que vemos hoje. E não se iluda: os escravocratas não são os pequenos produtores. Ao contrário, são os latifundiários, que figuram na cadeia produtiva do agronegócio.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

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