Sociedade

Não se resolve o crack com política criminal e sim com acolhimento, diz antropóloga

Luana Malheiro acompanhou mulheres usuárias por mais de 15 anos e escreveu um livro sobre sua pesquisa

"Só resolveremos o crack tratando a desigualdade econômica e o racismo", diz a antropóloga Luana Malheiro. Foto: Julliano Falcão.
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Presente em cerca de 85,44% das cidades brasileiras, de acordo com levantamento do Observatório do Crack, a droga é tema recorrente em anos eleitorais. O assunto, tratado mais como uma questão de segurança do que de saúde pública, “criminaliza os usuários”, na avaliação da antrópologa Luana Malheiros.

Ela lançou, neste mês, o livro “Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política sobre drogas”.

“Eu acompanhei um universo de 20 mulheres e descrevo a trajetória específica de 8. Qual foi o momento que esse significado muda? Exatamente quando elas estavam em um ambiente seguro, com casa, trabalho e dignidade. Isso é importante para reduzir os danos do uso de drogas. Das 20 entrevistadas, 18 foram pra ruas porque foram violentadas por parentes próximos”, diz em entrevista a CartaCapital.

No país, de acordo com pesquisa de 2017  realizada pela Fiocruz, em parceria com o Ministério da Saúde, aproximadamente 1,4 milhão de pessoas entre 12 e 65 anos já usaram a substância ao menos uma vez na vida.

A gente não resolve com uma política criminal, precisamos de política assistencialistas. Essas pessoas não precisam de polícia e, sim, de acolhimento“, afirma Luana.

Confira a entrevista completa: 

CartaCapital:  Em sua pesquisa, você chegou a fazer o uso de crack? 

Luana Malheiro: Como a minha pesquisa é sobre o uso de drogas, uso de crack em específico, em alguns momentos aconteceu de eu usar com elas, mas foi momentos pontuais. Fiz como experiência de aproximação dessa cultura, também me colocando como uma pesquisadora que faz parte dessas redes. Mas tem uma discussão no livro sobre essa questão que é se tornar mulher usuária de crack. Por mais que eu faça o uso, a minha história e minha trajetória são completamente diferente das mulheres que eu pesquisei. São mulheres que têm traumas muito fortes, com violências marcantes.  As mulheres que pesquisei começam a relatar que fazem o uso do crack para aguentar um ambiente que tem morte o tempo inteiro, violência sexual, agressão física, homicídio, violência racial entre outras violações. Então, são vários elementos que impõem essa trajetória que faz com que a mulher use o crack. É o caminho que elas encontraram para lidar com uma dor que é insuportável. A questão do uso da droga não deve ser entendida só nesse aspecto da pessoa que usa substância. O livro muda a ideia defendida pela mídia, de que o crack em si causa problemas sociais. Temos elementos de vários estudos que mostram que a droga não tem todo esse poder.

CC:  Então o crack é um problema social?

LM: Eu acho que se construiu uma epidemia de crack no Brasil para justificar um conjunto de políticas públicas que violam os direitos das pessoas que usam drogas e estão na rua. Tivemos nesse percurso da epidemia o avanço das comunidades terapêuticas, mantidas por entidades religiosas, e o avanço das internações compulsórias. Todo esse debate nacional, em vez de gerar uma maior organização no sentido de garantir as políticas de cuidado e atenção, gerou a construção de um plano nacional que incentivou muito mais o encarceramento e um cenário de guerra. Então, a gente diz que é a construção fantasiosa dessa epidemia que  justifica um avanço dos grupos religiosos, que estão na disputa eleitoral. A epidemia do crack surge também para responder esse anseio de apresentar um tipo de política focado na repressão.

CC: Como foi a aproximação das mulheres?

LM: Eu moro no centro histórico de Salvador e sou redutora de danos há 15 anos. É um trabalho que eu fazia na Universidade Federal da Bahia, de ir para os espaços de uso para dialogar sobre direitos, uso menos abusivo. A partir disso, eu me aproximei dessas mulheres e dei início à pesquisa. As mulheres colocavam muito a violência de gênero como um pedido de socorro. Os pontos da rede de proteção que foram buscados por essas mulheres acabaram expondo-as a uma outra violência. A gente acaba entendendo que a Lei Maria da Penha foi feita para poucas mulheres, pois enquadra a violência doméstica para uma mulher que tem um domicílio. A lógica da proteção não existe para uma mulher que não tem onde morar. Eu presenciei o preconceito na delegacia pelo fato delas não terem um lar. Elas saem da delegacia com uma protetiva e são agredidas novamente na rua. Eu debato no livro como a política para mulheres e para drogas foram feitas por homens para poucas mulheres. Defendemos que elas precisam construir o caminho do cuidado. Nos relatos, a mudança de vida começa quando a mulher se sente cuidada por programas do governo e começa a ter acesso à política. Quando falamos sobre o uso abusivo de drogas, muitas pessoas precisam do básico: moradia, alimentação, dignidade e direitos. Existem mulheres que estão em situações tão violenta, que ficam na rua nesse ciclo. Esse ciclo só é quebrado com a entrada de política pública que atua nesses território.

CC: O que significa o crack para essas pessoas? O que as levaram para a droga?

LM: São vários sentidos. Existe uma narrativa de que é uma coisa só, que usou e já se apaixonou, mas não é. Cada pessoa vai significar o uso a partir de sua história. O uso de crack tem uma cultura de vida na rua. Deixa mais alerta e preparado para uma rotina de violência. São vários significados. Eu acompanhei um universo de 20 mulheres e descrevo a trajetória específica de 8. Qual foi o momento que esse significado muda? Exatamente quando elas estavam em um ambiente seguro, com casa, trabalho e dignidade. Isso é importante para reduzir os danos do uso de drogas. Das 20 entrevistadas, 18 foram pra ruas porque foram violentadas por parentes próximos. Aí vemos uma realidade de crianças que são abusadas na infância, na maioria das vezes desacreditadas pela família e fogem de casa. Na rua, constroem outra família. A rua é o lugar de refúgio dessas crianças. A mulher entender que não pode dormir de bobeira, pois pode ser acordada em uma situação de estupro, faz com que ela procure a droga, pois precisa elaborar estratégias de segurança para ficar acordada e o crack ajuda nisso. O Brasil tem a neurose da negação sobre o racismo e nesse campo vivemos a negação do abandono dessas pessoas. Tivemos um outdoor na Bahia escrito: “Crack, cadeia ou caixão”. Ele dizia que o crack era responsável por 80% dos homicídios da Bahia. Isso não existe. Ele não é responsável. 

CC: Qual a melhor maneira do Estado atuar no combate aos efeitos do crack?

LM: Primeiro temos que investir na política de redução de danos e nas políticas de reforma psiquiatra. Precisamos entender que as pessoas precisam ser cuidadas e a política pública necessita construir espaços acolhedores. Esse é o problema das comunidades terapêuticas, as pessoas precisam se converter. Isso é uma violação de direitos. Se você é LGBT, por exemplo, você não consegue ter acesso a esses serviços, porque você precisa passar por uma conversão. Tem um grupo político muito forte que tem construído um campo eleitoral em cima disso, resolvendo os problemas das drogas por meio de uma falsa salvação, que é oferecido pela comunidade terapêutica. Temos relatórios mostrando que essas terapias são uma violação de direitos. Defendemos políticas públicas de base, o SUS funcionando bem, o consultório de rua, assistência na política de saúde e justiça.  O programa do [ex-prefeito de São Paulo Fernando] Haddad, [Braços Abertos], é uma grande inspiração. Na Bahia, temos o Corra Para o Abraço. O programa que é o mais citado para essas mulheres.  Não é o tratamento impositivo, é o tratamento com o sujeito. Se a pessoa é LGBT ou faz parte de outras religiões, serão elementos utilizados para o cuidado. Se eu falo que ela precisa abandonar tudo para se tratar, eu vou afastar. 

CC: Muitos candidatos falam que vão acabar com o crack, o que pensa disso?

LM: Eu acho que a nossa sociedade não sabe o que é viver sem drogas. Todas as pessoas usam drogas. As pessoas ricas usam drogas, mas elas não são problema. O crack não é o problema, como nunca foi. A política de drogas criminaliza as pessoas.  Essa é a neurose brasileira, que nega tudo isso e foca na substância, fazendo as pessoas acharem que o crack é o problema, e não o racismo e a existência de uma boa parte da população que vive em condição de miséria, sem moradia, ou condições para sustentar seus filhos. Se a gente conseguisse resolver a questão da desigualdade econômica, que é pautada no racismo, conseguiríamos resolver o crack. Mas essa ideia fantasiosa da voto, isso vende. 

CC: O que mais você aprendeu durante essa experiência?

LM: A questão para que serve as pesquisas. Essa foi meu maior aprendizado. Porque esse trabalho gerou um movimento político e social sobre o tema. O resultado final, além de uma transformação pessoal, é dessa possibilidade da construção de um movimento social mesmo, no qual as mulheres consigam entender que tem algo maior e esse algo maior é o racismo.

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