Sociedade
Não há “fascismo”, mas “malignidade” no Brasil, diz sociólogo
Antonio Cattani, da UFRGS, aponta raízes históricas e econômicas do fenômeno em ‘A síndrome do mal’
“Fascistas” e “fascismo” são palavras muito usadas para descrever Jair Bolsonaro, o bolsonarismo e os brasileiros de extrema-direita. São adequadas? Não, na visão de um sociólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Antonio David Cattani. Para ele, é mais apropriado falar em “maus” e “malignidade”, características que seriam fomentadas por “forças econômicas poderosas movidas pela ganância sem limites”.
A tese é defendida no recém lançado livro “A Síndrome do Mal”, publicado pela editora Cirkula. Para Cattani, o fascismo foi uma forma de governo marcada por uma relação direta entre líder político e massas populares e pelo nacionalismo, surgida em alguns países europeus numa época específica (as décadas de 1920 e 1930). Entram aí a Alemanha de Hitler (no poder de 1934 a 1945), a Itália de Mussolini (de 1922 a 1943), a Espanha de Franco (de 1936 a 1975) e Portugal de Oliveira Salazar (de 1932 a 1968).
Mestre e doutor em sociologia pela Universidade de Paris, o autor entende que é maldade pura e simples o comportamento dos brasileiros defensores de ideias como a morte de pobres e bandidos, de gays e negros, de rivais políticos. “Não são fascistas. São pessoas malignas que, agora, com a degradação do caráter moral coletivo, manifestam ódio e intolerância aos valores da civilização”, disse Cattani a CartaCapital.
Essa “malignidade” caracteriza-se, segundo o livro, pela crença de que há pessoas superiores e inferiores, por autoritarismo, individualismo, egoísmo, anti-intelectualismo, obsessão com a sexualidade e idealização da família e da tradição.
As reflexões apresentadas na obra nasceram quando o sociólogo trabalhou na Universidade de Bologna, na Itália, entre 2018 e 2019. Ali, ele observou de perto manifestações fascistas promovidas pelo líder da extrema-direita local, Matteo Salvini, vice-primeiro ministro e ministro do Interior até setembro do ano passado.
“As estratégias que ele [Salvini] usa de atiçar ressentimentos, intolerâncias, racismos é o que se observa também com [Donald] Trump e Bolsonaro. Eles conseguem mobilizar o que tem de pior na sociedade, especialmente quando faltam oportunidades de trabalho e a concorrência entre os trabalhadores se acirra”, disse Cattani. “Essas semelhanças me estimularam a analisar o comportamentos dos brasileiros, historicamente machistas, racistas, intolerantes e elitistas e que, agora, encontram num presidente desqualificado apoio parar extravasar a malignidade.”
Segundo o livro, “na quase totalidade dos casos, as pessoas más são ‘normais’, dotadas de tirocínio, de consciência, de valores morais específicos”. Apesar de apontar “malignidade” individual, a obra propõe que “é o caráter moral coletivo que precisa ser posto em questão”. Uma parte da sociedade brasileira estaria degenerada, desumanizada. Essa “malignidade” à brasileira é “um fato social, é ideologia posta em prática, é ação intolerante, intencional e violenta dirigida contra alguns”.
Para o sociólogo, que se graduou em economia, a “malignidade” à brasileira tem sido fomentada e aproveitada pela elite do País, como bancos, meios de comunicação, multinacionais. Os donos do grande capital, diz o livro, não precisam de democracia. Recrutam “grupos obcecados e moralistas” que, por medo e ressentimento, extravasam ódio, tentam “subjugar e eliminar os vulnerabilizados, os diferentes, os portadores de um projeto mais humano, generoso, solidário”.
Alguns fatores históricos explicariam a “malignidade” de parte do País. A escravidão, por exemplo. E a falta de mea-culpa das Forças Armadas pela ditadura de 1964-1985. “O Judiciário avalizou a ignominiosa Lei da Anistia e os perpetradores nãos só permaneceram impunes como guardaram legitimidade perante parte da população”, afirma o livro.
Não há uma data precisa, prossegue a obra, que “permita identificar quando se acentuaram as manifestações de malignidade de muitos brasileiros. Indivíduos extravasando preconceitos, racismo, intolerância e ódio existem desde sempre. Porém, os casos mais escabrosos eram contidos pelas normais sociais, pelas políticas públicas e pelos aparatos legais”.
O sociólogo arrisca-se a apontar 2010 como um momento significativo. A partir dali, políticos, comunicadores, digital influencers e pastores fundamentalistas ganharam exposição ao defender ideias intolerantes e discriminatórias. Aquele ano, recorde-se foi o da primeira eleição de Dilma Rousseff, em uma disputa contra o tucano José Serra, o qual usou na campanha o tema “aborto”.
Para Cattani, 2013 foi o ano em que os brasileiros comuns, aqueles que aplaudiam os políticos, comunicadores, influencers e bispos do parágrafo anterior, passaram a brandir eles próprios sua malignidade. “Extravasam ódio, pedem a volta da ditadura, acham que os defensores da democracia merecem ser torturados, abominam a universidade, acreditam que bandido bom é bandido morto, execram os direitos humanos”. Outra recordação: 2013 foi o ano dos grandes protestos de junho.
Segundo o sociólogo, “se as forças progressistas e democráticas não se mobilizarem para evitar o desastre, as vítimas [da malignidade à brasileira] continuarão aumentando”.
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