Sociedade

Na ditadura, até Jesus era confundido com Marx

Todos eram rotulados como comunistas, até os sedentos e famintos de justiça, escreve Dom Angélico Sândalo Bernardino

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Muitos enfatizam, na lembrança do início da ditadura, o fato de que foi implantada às vésperas de 1º de abril, o dia da mentira. As intenções e métodos da ditadura, sempre mais, estão sendo colocadas às claras. Em um mundo então polarizado entre os Estados Unidos e União Soviética, com pretexto de erradicar o “perigo comunista que nos ameaçava”, militares deram o golpe, influenciados e pressionadas pelos donos do poder econômico, ideológico, do campo e da cidade, e dos Estados Unidos. Implantou-se a ditadura com seus atos institucionais, contra os legítimos interesses do povo, em especial da classe trabalhadora tradicionalmente explorada.

De 1964 a 1974, em Ribeirão Preto (SP), como redator e diretor do Diário de Notícias, frequentemente censurado, tive a honra de batalhar a favor da restauração da liberdade e da democracia. A linha editorial sempre foi pautada pelo Evangelho, pela doutrina social da Igreja, no compromisso de construção do Reino de Deus, feito de justiça, amor e paz. O pessoal da ditadura, por ignorância ou autoritarismo cego, confundia Jesus com Marx e rotulava de comunista todos os sedentos e famintos de justiça. Vivi as dramáticas circunstâncias da prisão e exílio de Madre Maurina Borges e da solene exclusão da Igreja Católica dos delegados de polícia que eram subservientes do regime.

Nas periferias da cidade o trabalho se desenvolvia na formação de comunidades vivas, alicerçadas na alegria do Evangelho com juízo crítico sobre a realidade.

A partir de 1975, nomeado pelo papa Paulo VI bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, tive a felicidade de integrar a equipe de bispos coordenada pelo ilustre profeta dom Paulo Evaristo Arns. Além de atuar nas periferias da metrópole, fui bispo da Pastoral Operária Arquidiocesana e diretor do jornal O São Paulo sob forte censura. Numerosas vezes saí às ruas, com a multidão a gritar, diante do aparato  opressor: “O povo, unido, jamais será vencido”, reivindicando liberdade, saúde, educação, moradia , creches, transportes.  E como foi emocionante participar, no ocaso dos anos de chumbo, da memorável jornada pelas Diretas Já!

Neste cinquentenário, desfilam em minha memória militantes das pastorais sociais, ilustres cidadãos, perseguidos, presos, torturados e assassinados pela ditadura.

Hoje, oferecendo aberto apoio às Comissões da Verdade, julgo fundamental o trabalho de desnudar a ditadura, pondo às claras a verdade histórica. Como octogenário que sou, contemplando, na esperança, a juventude comprometida com o lento e árduo processo de construção da democracia, neste cinquentenário marcado por muitas mentiras, o brado patriótico é este: Brasil tortura, ditadura, nunca mais!

Dom Angélico Sândalo Bernardino foi bispo auxiliar do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo cuja trajetória foi marcada pela proteção aos militantes. Seu relato é parte de uma série de artigos para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe militar

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