Sociedade

MPF suspeita de massacre de indígenas no Amazonas

Se confirmado, este seria o segundo ato de genocídio cometido por invasores contra indígenas isolados no Vale do Javari em 2017

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O Ministério Público Federal no Amazonas está investigando uma denúncia de que indígenas de um grupo que vive isolado na Terra Indígena Vale do Javari, incluindo mulheres e crianças, podem ter sido assassinados e esquartejados. Garimpeiros ilegais que costumam navegar pelo rio Jandiatuba, localizado dentro da terra indígena, seriam os suspeitos.

O crime, que seria mais um episódio do genocídio ao qual os povos indígenas são submetidos no Brasil, ocorreu há cerca de um mês. Não se sabe qual a etnia dos indígenas mortos, mas fontes ouvidas pela coluna afirmam que podem ser os “flecheiros”, dada as descrições e a localização.

Os relatos desse massacre começaram a chegar no município amazonense de São Paulo de Olivença, na região da tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia, em agosto, quando também os supostos assassinos passaram a mostrar materiais recolhidos de suas vítimas, como flechas e um remo. De acordo com as investigações em andamento, os assassinos ainda teriam cortado os corpos dos indígenas mortos ao meio e jogado no rio, como desova, para que afundassem, acelerando a decomposição, de forma dificultar as investigações.

O MPF está investigando o caso e realizando diligências para ouvir as testemunhas e tentar prender acusados. O procurador do MPF Pablo Luz de Beltrand confirmou à coluna a denúncia do massacre no rio Jandiatuba e a existência de uma investigação em curso, mas preferiu não dar detalhes do resultado das diligências e das oitivas que estão sendo realizadas.

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A atividade de garimpo nessa região é praticamente toda ilegal, com ouro ilegal extraído em invasões na Terra Indígena Vale do Javari movimentando a economia de São Paulo de Olivença. Garimpeiros constituem não apenas uma poderosa força política local, como também perigosa e violenta. E qualquer fuga nessa área é facilitada por ser uma região de fronteira. Da mesma forma, a troca do ouro por armas e cocaína ocorre com frequência.

As dragas ilegais que invadem o Vale do Javari para extrair ouro são reabastecidas periodicamente, cerca de duas vezes ao mês, com material comprado em São Paulo de Olivença. Para a alimentação dos garimpeiros, homens são contratados como caçadores nos garimpos, responsáveis por prover proteína. Dessa forma, além de destruir os rios, a atividade garimpeira ainda promove a caça ilegal e predatória dentro das terras indígenas.

As informações apuradas indicam que o massacre ocorreu justamente em uma dessas investidas de caça: caçadores encontraram um grupo de indígenas que são conhecidos como “Flecheiros”. Eles estariam coletando ovos de tracajá numa praia nas margens do rio, e os caçadores atiraram com suas armas de fogo contra os indígenas. Não se sabe quantos podem ter sido mortos, mas suspeita-se que tenham sido mais do que dez pessoas. Além de partir os corpos para desovar no rio, os assassinos teriam pego “troféus” de suas vítimas, roubando alguns dos pertences.

Após relatos do caso chegarem ao MPF, foi desencadeada uma operação em conjunto com o Exército e o Ibama para combater a atividade garimpeira no rio Jandiatuba. Nessa operação foi confirmada a presença maciça de garimpeiros no interior dos territórios onde vivem os isolados. Pelo menos quatro das 16 dragas de garimpo foram destruídas.

A expedição conjunta de Exército, Ibama e MPF, no entanto, não conseguiu chegar até o local onde ocorreram os relatos das mortes pelos garimpeiros, por ser de difícil acesso. A notícia dessa operação foi divulgada pelo MPF nesta quarta-feira 6. “A atividade garimpeira possui alto potencial poluidor e degradador do meio ambiente e baixo retorno social. Além da poluição e degradação ambiental inerente à atividade, o garimpo está associado a condições de trabalho precárias, prostituição, tráfico de entorpecentes e vários crimes relacionados à violência”, afirmou o procurador da República Alexandre Aparizi.

O Vale do Javari concentra a maior quantidade de povos indígenas isolados do mundo. Diversas bases de fiscalização da Frente de Proteção Etnoambiental, da Funai, que deveriam proteger a região da entrada de garimpeiros, caçadores e madeireiros têm sido fechadas em razão de cortes orçamentários e da desestruturação em curso da Funai.

A base do rio Jandiatuba, que poderia ter evitado a entrada dos garimpeiros que chacinaram os “flecheiros”, foi fechada em 2014, devido a cortes no orçamento. Estudo do Inesc apontou um corte de 50% do orçamento da Funai para esse ano, com cortes de cargos e de servidores inclusive das frentes que protegem áreas de alta vulnerabilidade de contato e extermínio de povos isolados.

Das doze Frentes da Funai que existiam até pouco tempo atrás, cinco foram fechadas esse ano, expondo ainda mais povos isolados ao risco do genocídio. Problemas políticos na gestão anterior da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, da Funai, também podem ter contribuído para a desestruturação do sistema de proteção do Vale do Javari, inclusive resultando em um confronto entre indígenas de duas etnias.

Ainda no Vale do Javari, em julho desse ano foi denunciado por indígenas Kanamari outro massacre na mesma região, de um outro povo isolado, os  Warikama Djapar. O crime pode ter sido cometido por caçadores ilegais que invadiram a terra indígena no início do ano. Na mesma região da denúncia dos Kanamari, em dezembro de 2016 a Funai havia observado um fato incomum: malocas queimadas pelos isolados no interflúvio entre os rios Itaquai e Jutaí. Um sobrevoo identificou essa maloca queimada alguns meses antes dos Kanamari denunciarem o ataque por parte de invasores caçadores e madeireiros, o que pode ser um indicativo de que os indígenas sofreram um ataque e, por isso, possam ter posto fogo em sua própria aldeia em fuga.

Fontes ouvidas pela coluna confirmam que a queima das malocas pode ser consequência dessas invasões que o Vale do Javari está sofrendo. Os indígenas podem queimar suas casas quando ocorrem mortes dos habitantes dessas residências.

 

“Povos isolados”

Os povos que se atribuem viver em isolamento voluntário, os “índios isolados”, são grupos que já tiveram no passado experiências traumáticas de contato e violência com o mundo colonial do entorno, e optaram por viver de forma autônoma na floresta, evitando assim a aproximação com outros povos indígenas contatados e o resto da “sociedade envolvente”. Esse “isolamento” (coloco entre aspas por ser essa uma perspectiva colonial) reflete uma situação de vulnerabilidade epidêmica: qualquer contato pode ser uma bomba química de doenças.

O ataque e os cortes na Funai, que têm provocado o fechamento de Frentes de Proteção e de bases de fiscalização, colocam em situação de extrema vulnerabilidade e risco uma série de populações

Em 2011, no Acre, foi fechada a Base do Xinane, e em 2014 aconteceu o contato com um grupo indígena que fala uma língua Pano, o “Povo do Xinane”, ou também conhecidos como Tsapanawa. Eles relatam terem sofrido um ataque antes do contato, talvez por madeireiros ou traficantes.

Outros casos de contato recente também tiveram o relato dos indígenas de ataques ou doenças, como o dos Korubo e dos Awa Guajá, também em 2015. A Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, onde vive um grupo Awa Guajá isolado, está invadida por madeireiros. Em Rondônia, três bases foram fechadas, no Cautário, em Mirante da Serra e em Monte Nebo, todas elas na terra Indígena Uru-Eu-Way-Wau, que tem uma grande concentração de povos em isolamento e está pressionada por madeireirtos e invasões. Também foi fechada a base no rio Purus, expondo os indígenas Suruwahá, de pouco contato, e os Hi-Merimã, isolados, a ataques de invasores e proselitismo de missionários.

Nesse contexto de ataque aos direitos indígenas, a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), vive uma situação de emergência orçamentária, dispondo apenas de 60% do orçamento de 2015. A desestruturação da Funai praticamente tem inviabilizado ações de proteção das terras indígenas e dos aparatos de proteção aos povos em isolamento, resultando em invasões e, como ocorreu nas duas tragédias relatadas apenas este ano no Vale do Javari.

O papel de Jucá

Em meio a esse caos, essa área específica da Funai, que deveria proteger povos que vivem no Vale do Javari da invasão de garimpeiros, enfrenta a maior pressão política desde que foi criada, em 1987: o senador Romero Jucá (PMDB-RR) estaria articulando nomeações para a área. A estratégia política de Jucá, apurou a coluna, é exonerar a atual Coordenadora da CGIIRC, que possui perfil técnico, para nomear uma indicada sua, de Roraima, que tem em seu currículo o trabalho com turismo, e não com povos indígenas. Se concretizada essa nomeação, é provável que a Funai deixe de colaborar com as investigações destes dois massacres no Vale do Javari.

Jucá foi acusado pelo líder Yanomami Davi Kopenawa de incentivar o garimpo na terra de seu povo, o que causa uma preocupação ainda maior diante da notícia deste massacre no Jandiatuba. Estas nomeações em curso estão sob a égide da Diretoria de Proteção Territorial, cuja titular, Azelene Kaingang, foi indicada pela bancada ruralista quando Osmar Serraglio era Ministro da Justiça.

Há uma dança das cadeiras em marcha na Funai, com indicações políticas que preocupam servidores e lideranças indígenas por servir não aos povos indígenas, mas apos interesses de  quem indica.

Ainda para CGIIRC, a coluna apurou que está planejada a indicação de um engenheiro elétrico, sem nunca ter trabalhado com povos indígenas. Ele passou, no entanto, mais de 20 anos em uma gigante mineradora. O cargo para o qual ele está cotado é direcionado ao planejamento, orçamento e estratégia para o trabalho em campo das Frentes de Proteção.

Além disso, o deputado Edio Lopes (PR-RR), relator de um projeto de lei que visa abrir as terras indígenas para mineração, teve recentemente uma audiência com o presidente da Funai, Franklinberg Freitas. Apurei que estas articulações visam facilitar a entrada da mineração em Terras indígenas, inclusive ocupadas por povos isolados.

Ângela Amanakwa Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), é representante das organizações indígenas no Conselho  da Política de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, órgão criado esse ano pela Funai, disse em entrevista repudiar o massacre e também as mudanças nessa área da Funai.

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“É uma questão muito presente e um cenário muito frágil: os índios isolados estão numa região de grandes interesses das mineradoras e empreendimentos; o primeiro ataque é fazer a sociedade pensar que não existem estes povos; depois é o genocídio, puro e simples, como esse caso no Vale do Javari. Repudiamos totalmente isso.”

Para ela, “as mudanças na CGIIRC são uma forma de enfraquecer a atuação. É fechar as portas para fazerem o que querem com os territórios dos índios isolados. Querem é limpar o terreno. Ele afirma que foi informada do massacre no Jandiatuba durante a XI reunião da COIAB, que aconteceu de 28 a 30 de agosto na Terra Indígena Alto rio Guamá, através de uma liderança do povo Marubo, que também vive na Terra Indígena do Vale do Javari.

Outro membro do conselho para proteção dos índios isolados da Funai, o indigenista Antenor Vaz, especialista em Políticas de Proteção para Povos Indígenas Isolados, considera “gravíssima a atual situação de falência da CGIIRC”, e adverte que massacres como esses relatados no Vale do Javari “estão ocorrendo em regiões sob a jurisdição das Frentes de Proteção.

Agora, imaginem naquelas regiões onde existem 51 informações de presença de povos indígenas isolados, nas quais a Funai nunca realizou alguma ação de proteção desses povos. O número de massacres de povos indígenas isolados deve ser ainda maior. É preciso uma ação efetiva e urgente da sociedade civil e do Ministério Público”

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