Sociedade

Morte de NegoVila é fruto da ‘negligência’ da subprefeitura de Pinheiros, diz comerciante local

Moradores e frequentadores da Vila Madalena narram aglomeração e falta de fiscalização em distribuidora de bebidas durante pandemia

NegoVila se encontrou com os amigos na Royal Bebidas, na Vila Madalena, na noite em que foi assassinado. Créditos: Reprodução Whatsapp NegoVila se encontrou com os amigos na Royal Bebidas, na Vila Madalena, na noite em que foi assassinado. Créditos: Reprodução Whatsapp
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Nove meses após o início da pandemia, no momento em que o País lida com o aumento de casos e mortes do coronavírus decorrentes de uma possível segunda onda, se multiplicam as notícias de aglomerações de pessoas em bares e festas, destoando de uma das principais recomendações sanitárias, a do distanciamento social. No dia 28 de novembro, um dos estabelecimentos comerciais da Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, teve seu nome associado a um assassinato.

A unidade da Royal Bebidas, localizada na rua Deputado Lacerda Franco, 437, foi o local em que Wellington Copido Benfati, conhecido como NegoVila, se reuniu com amigos no início daquela madrugada. Por volta das 4h30, NegoVila foi assassinado nas imediações da distribuidora de bedidas pelo sargento da PM Ernest Decco Granaro, que disparou, segundo relatos, um tiro para o alto e outro contra a vítima, após uma briga. O policial, que estava à paisana e de folga, foi preso em flagrante por homicídio, segundo confirmação da Secretaria da Segurança Pública (SSP). NegoVila chegou a ser levado com vida ao Pronto Socorro da Lapa, mas morreu durante o atendimento médico.

NegoVila, 40 anos, deixou uma filha de 9. Créditos: arquivo pessoal

Duas amigas da vítima, que presenciaram o crime, afirmam que chegaram ao local por volta das 2h da manhã e, em seguida, compraram bebida alcoólica no estabelecimento, que funcionava normalmente. No momento do tiro, as testemunhas disseram que o comércio já estava fechado.

“O local estava cheio quando chegamos. O normal é isso, comprar bebida e ficar bebendo ali na frente, ou do outro lado da rua. Lá virou ‘pit stop’ da galera no meio da pandemia. Com o fechamento dos outros bares, a galera vai descendo pra lá, tem dias que fica abarrotado”, afirmou uma das amigas, que preferiu não se identificar.

No dia do ocorrido, a cidade encontrava-se na fase verde do Plano São Paulo, estratégia governamental para conter o avanço da pandemia do novo coronavírus. Na etapa, está previsto que bares e restaurantes atuem com 60% de ocupação máxima e com consumo local até as 22 horas.

A reportagem de CartaCapital entrou em contato com a subprefeitura de Pinheiros, chefiada pelo subprefeito Acacio Miranda da Silva Filho, para entender o porquê do estabelecimento atuar servindo bebidas alcoólicas durante a madrugada.

Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Subprefeitura de Pinheiros, informou que o estabelecimento funciona “no sistema take away [leve embora], permitido pelo decreto municipal”, que é quando o cliente pode retirar o produto pessoalmente na loja para consumo. Em outro trecho do comunicado, a pasta reforça que “não há consumo de bebida dentro do local” e que o estabelecimento está regularizado para o exercício de sua atividade, como distribuidora de bebidas.

Em seu site, a Royal Bebidas lista como lojas as unidades de Carapicuíba, considerada matriz de acordo com o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CPNJ), da Raposo Tavares e do Bonfiglioli. A unidade da Vila Madalena é enquadrada no modelo express, ‘com atendimento estendido na madrugada com bebidas geladas para você pegar e levar”, descreve a empresa. A distribuidora está registrada em nome de Ali Charaf Badreddine.

A reportagem de CartaCapital, no entanto, teve acesso a vídeos e fotos que comprovam a aglomeração de pessoas, sem máscaras, no entorno do container por onde é feito o atendimento da distribuidora. Em outro vídeo, um ônibus de dois andares, anexo ao local, toca um som alto enquanto frequentadores se reúnem. As gravações foram feitas no período de julho a setembro, segundo fonte ouvida pela reportagem.

https://www.youtube.com/watch?v=xYfAiHuuFlQ&feature=youtu.be

“Negligência por parte da subprefeitura de Pinheiros”

A atuação da distribuidora tem causado mal estar entre moradores e comerciantes da região. “Eles nunca fecharam durante a quarentena. Todo dia tem barulho que segue às vezes até uma da manhã ou mais”, relatou uma moradora, que narra brigas frequentes no local e um cenário propício a tragédias como a que aconteceu com NegoVila.

“Além de zero segurança, o lugar é convidativo para que as pessoas comprem e fiquem, tem música alta e espaço para permanência”, conta, ao também questionar a atuação do 14º Distrito Policial, praticamente vizinho da Royal Bebidas. “Se os policiais estivessem coibindo essas aglomerações da maneira correta, ninguém ia se sentir à vontade para ficar ali bebendo na madrugada”, critica.

Uma das amigas de NegoVila afirmou que é comum que as viaturas da Polícia Militar passem no estabelecimento dispersando a movimentação por volta das 5h da manhã. A reportagem de CartaCapital perguntou à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo se o 14º DP tem outros registros de ocorrência em nome do comércio, e foi orientada a registrar a solicitação via Serviço de Informações ao Cidadão (SIC). O registro foi feito no dia 2 de dezembro e o prazo para resposta é de 20 dias.

A subprefeitura também foi questionada se há denúncias sobre o local no âmbito do Programa Silêncio Urbano (PSIU), que prevê, em seu artigo 147, que estabelecimentos que comercializem bebidas alcoólicas e que funcionem com portas, janelas ou quaisquer vãos abertos ou ainda que utilizem terraços, varandas ou espaços assemelhados, não atuem entre 1h e 5 h.

Também em nota, a pasta afirmou que “o PSIU recebeu uma denúncia sobre ruído acima do permitido para o local, e já tem fiscalização agendada”. Ainda de acordo com a subprefeitura, “a data não será divulgada para sucesso da ação”.

Consumidores se aglomeram em distribuidora de bebidas na Vila Madalena. Prefeitura afirma que unidade atua no modelo ‘take away’. Créditos: divulgação

Um comerciante local que também falou em condição de anonimato atrela o acontecido a NegoVila à “negligência por parte da subprefeitura de Pinheiros”. “Já fizemos várias denúncias de aglomeração não só na Royal Bebidas, como em outros bares que têm atuado clandestinamente na região, com as portas fechadas e pessoas para dentro”, afirma.

O comerciante acusa o poder público de conduzir diferentes tipos de fiscalização entre os estabelecimentos do bairro. “Já presenciei equipes da subprefeitura jogando água em clientes para que os bares cumpram o horário determinado na quarentena. No quadrilátero do bairro [entre as ruas entre as ruas Aspicuelta, Fradique Coutinho, Fidalga e Mourato Coelho] já vi ações agressivas, oprimindo e humilhando os visitantes da Vila Madalena. Aí agora as pessoas vão para a Royal, que fica aberta até cinco, seis da manhã, sem fiscalização nenhuma”, diz.

A reportagem de CartaCapital entrou em contato com a Royal Bebidas para checar se há ações previstas por parte do estabelecimento para inibir as aglomerações, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

Já a subprefeitura de Pinheiros afirmou que “continua fiscalizando diariamente os estabelecimentos que excedem o horário permitido pela legislação municipal e se estão disponibilizando mesas nas calçadas, com apoio da GCM”. Ainda de acordo com a pasta, desde o início da quarentena, 1.284 estabelecimentos foram interditados por descumprirem as regras vigentes. Destes, 865 são bares, restaurantes, lanchonetes e cafeterias. Também está prevista multa de 9.231,65 reais. A subprefeitura afirma que, uma vez interditados, os estabelecimentos devem solicitar a desinterdição na subprefeitura da região. A pasta ainda ressaltou que as normas são fiscalizadas pela vigilância sanitária. Em caso de denúncias, os cidadãos podem recorrer à Central SP156, pelo telefone, aplicativo ou site.

Morte de artista e skatista gerou protestos 

Após a morte de NegoVila, o tradicional Beco do Batman, foi pintado de preto em tom de protesto. Os antigos grafites do local deram lugar a frases que simbolizam luto, saudade e pedido de justiça: “Todo nego é nego vila”, “Vila Madalena em luto, viva nego vila”, “Vidas Pretas importam”.

No sábado 5, centenas de pessoas se reuniram em uma caminhada pelas ruas do bairro após missa de sétimo dia celebrada em homenagem à vítima.

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