Sociedade

Medo de violência faz LGBTs e mulheres investirem em autodefesa

No Brasil da polarização e do discurso de ódio, minorias recorrem às técnicas marciais para se defenderem

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Outubro de 2018. Época do segundo turno da eleição presidencial no Brasil que tinha um representante da esquerda contra um da extrema direita. Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL)  eram os nomes mais falados do País e, em uma espécie de conto nada romântico, dividiam os brasileiros entre o amor e o ódio. Haddad trazia a lembrança dos 13 anos do PT no poder enquanto vídeos de Bolsonaro, quando ainda deputado federal, eram espalhados pelas redes sociais. Um era acusado de ser do partido que teria destruído o país, o outro de ser homofóbico, machista, racista e preconceituoso.

A polarização foi sentida nas ruas. Na noite do dia 16 daquele mês, Priscila, uma mulher transexual, estava em um bar no Largo do Arouche, região da República, Centro de São Paulo. Às 4h30, os vizinhos começaram a ouvir uma discussão. Uma pessoa, que não quis se identificar, disse ao G1 que ao olhar pela janela viu a transsexual com 5 homens em sua volta. “Ela estava com quatro ou cinco homens em frente ao bar. E daí eu comecei a ouvir gritos, uma briga. Chamavam ela de vários nomes, agressões verbais, e gritavam ‘Bolsonaro'”, contou.

A transsexual foi morta com diversas facadas enquanto seus assassinos gritavam o nome daquele que, após alguns dias, se tornaria o presidente da república.

A dois quarteirões do crime, o jornalista Alberto Freitas, de 37 anos, recebeu a notícia do assassinato de Priscila pelas redes sociais. Politicamente de esquerda, ele viu os amigos compartilhando matérias que traziam na manchete: “Travesti é assassinada no centro de SP sob gritos de ‘Bolsonaro presidente”. Alberto é gay e percebeu que o momento não era propício para quem é considerado pelo sociedade uma minoria.

“Percebi que, de alguma forma, nós precisaríamos nos preparar para nos defender contra possíveis agressões que poderiam se intensificar. Vimos durante a campanha que algumas pessoas foram mortas em função dessa polarização, dessa radicalização e desse discurso de ódio. Percebi que precisava agir”, disse.

O medo tomou conta de Alberto. Ele, que sempre foi “paz e amor”,  começou a procurar por aulas de defesa pessoal. “Sempre fui um cara bastante tranquilo, de brigar verbalmente, sempre tive bons argumentos para lidar com os preconceituosos, tanto nas redes sociais quanto no dia a dia. Mas me vi em uma situação em que só bons argumentos não bastam”, contou.

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Alberto pesquisou por escolas ou grupos que ensinavam técnicas de defesa, mas queria algo que focasse em atender as minorias. Até que um dia um amigo comentou que estava criando uma equipe para ensinar defesa pessoal para LGBTs e minorias em geral. Mulheres, negros ou quem se sentisse ameaçado seria bem-vindo.

Alberto prontamente se juntou ao G. Break e começou a participar dos encontros.

O retrato da violência contra LGBTs

Neste ano, o Brasil passou do 55º lugar para o 68º no ranking do site Spartacus dos países mais acolhedores para a comunidade LGBT. Uma queda de 13 posições em relação a 2018. Na comparação com os últimos 10 anos, o tombo é ainda maior: 49 posições. Em 2010, os brasileiros chegaram a ocupar o 19° lugar.

O site estabeleceu seu ranking dos países mais abertos à comunidade LGBT. Ele se baseia, em particular, nas informações fornecidas pela ONG Human Rights Watch e também em estatísticas da ONU e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. No total, 197 países são classificados.

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O cenário só tem piorado. Segundo um levantamento anual feito pelo Grupo Gay da Bahia, o número de mortes de LGBTs motivadas por ódio tem crescido, em média, 30% ao ano. Isso faz com que o Brasil, em números absolutos, se torne o país que mais mata LGBTs.

Foi analisando esse cenário que se deu a ideia de criar o G. Break. “Diante de uma situação de violência física não adianta tentar o diálogo, você tem que reagir fisicamente. Ao ver vídeos de pessoas sendo agredidas, percebi que seria tão mais fácil para elas se conseguissem sair daquela situação se tivessem o mínimo de conhecimento sobre lutas”, afirmou o criador do grupo, que prefere não ter seu nome divulgado.

O rapaz mora em São Paulo há 13 anos, é formado em Arquitetura e também é gay. Desde os 18 anos pratica luta. Treinou capoeira, krav magá, guided chaos, muay thai e boxe. “Ano passado foi quando abri mais o grupo por causa do aumento da violência contra mulheres e a população LGBT. Isso se deve, ao meu ver, à articulação do discurso de ódio e da organização da extrema direita.”

A maior parte de seus alunos atuais são mulheres e LGBTs. Para ele, são os grupos mais atingidos com o crescimento de ideias radicais. “Tenho que trabalhar principalmente a mente das pessoas durante o treino para que elas entendam que são capazes de reagir. Falam ‘pra você é fácil falar, olha o seu tamanho’. Acontece que, com técnicas certas, qualquer pessoas, de qualquer tamanho, orientação de gênero ou porte pode se defender”, ressaltou.

Lute como uma garota

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O aumento da violência não se resume apenas aos LGBTs. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 126 mulheres foram mortas em razão de seu gênero no país desde o início do ano, além do registro de 67 tentativas de homicídio.

A comissão diz que os casos que chegaram a seu conhecimento exigem do Estado a implementação de estratégias abrangentes de prevenção e reparação integral às vítimas, além de investigações “sérias, imparciais e eficazes dentro de um período de tempo razoável”, que possibilitem a punição dos autores dos crimes.

Enquanto não se intensifica a proteção às mulheres, pessoas como  Maira Bandeira, de 22 anos, tem tomado providências. A paulistana, que é faixa preta em taekwondo e praticante de jiu-jitsu , criou o grupo Defesa Pessoal para as Minas, em atividade desde 2015.

Maira teve a ideia de criar o grupo após uma conversa com suas amigas. “Algumas delas estavam desenvolvendo síndrome do pânico por andarem sozinha nas ruas. Quando elas me pediram ajuda, entendi que poderia ajudar outras mulheres na proteção de suas vidas.”

O tempo passou e o grupo aumentou. Das aulas no Parque do Ibirapuera, o grupo se organizou e foi para uma academia com mais estrutura. Hoje Maira comanda grupos de até 20 mulheres e, durante 3 encontros no mês, ensina como a violência evolui desde a aproximação até uma tentativa de estupro.

A lutadora relata que, na época das eleições, a procura dobrou. No dia que o Bolsonaro virou presidente da república, seu telefone tocou inúmeras vezes com pessoas procurando aulas. “O assédio sempre existiu, mas se intensificou com o discurso de ódio”, analisou.

Um trabalho longo e cuidadoso

O Carnaval deste ano foi o primeiro em que se tratou assédio como crime. O projeto de lei que definiu o crime de importunação sexual  foi sancionado em setembro de 2018 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, então presidente da República em exercício.

Nas redes sociais, uma mulher ensinando técnicas para se defender viralizou durante a folia. O vídeo foi postado no perfil da Kizame Team, um grupo de artes marciais do Rio de Janeiro. O idealizador do projeto, o cineasta Guilherme Alonso, de 28 anos, conta que a procura por aulas de defesa pessoal por mulheres e pela população LGBT quase dobrou neste ano.

“Diversos amigos meus foram atacados ou ameaçados com essa promoção do governo e muitos começaram a buscar a prática marcial”, contou.

Guilherme é cauteloso com os pedidos de aula. O motivo: para o professor formado em artes marciais e defesa pessoal, é muito complexo você ensinar uma pessoa a se defender de um ataque, que muitas vezes pode vir acompanhado de armas, em tão pouco tempo. “Antes a pessoa precisa desenvolver as técnicas. É um trabalho longo para a real aplicação”, contou. “Se uma pessoa utilizar algo que ensinei em duas semanas, por acreditar que está fazendo ‘defesa pessoal’, e der errado, de quem é a culpa?”, indagou.

O processo escolhido pelo professor é sempre um diálogo sincero explicando todos os pontos. Antes de ensinar a defesa pessoal, Guilherme ensina técnicas básicas de luta. “Aplicar uma técnica em alguém de 60kg é diferente de aplicar uma técnica em alguém de 90kg. É muito bonito e comercial dizer que é fácil, mas não é. Além disso, existe o fator emocional envolvido no ataque e isso pode ser simulado em alguns combates em aula. Mas antes a pessoa precisa desenvolver as técnicas”, explicou.

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