Entrevistas

‘Quartinho de empregada é indicador de que escravidão continua’, diz Laurentino Gomes

Para o autor da trilogia ‘Escravidão’, o Brasil não enfrentou e nem resolveu o legado desse período. ‘A segunda abolição é um desafio’

O jornalista laurentino Gomes. Foto: Divulgação
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Às vésperas do lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão, Laurentino Gomes vê o Brasil distante de ser uma democracia racial. “O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos”, diz. “Nunca chegamos e estamos muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos.”

O livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no País. Gomes classifica o período como o ápice do comércio de seres humanos no continente americano. “Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do País.”

O autor faz paralelos entre esse período e o Brasil contemporâneo. “Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.” No lançamento do primeiro volume, em 2019, ganhava os jornais o caso do garoto chicoteado por seguranças de um supermercado da periferia paulistana. A finalização deste segundo ocorreu em meio à morte da jovem Kathlen Romeu, grávida, durante uma operação policial no Rio.

Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes.

Em conversa com CartaCapital, Gomes defende que o Brasil passe agora por essa ‘segunda abolição’. “O famoso quartinho de empregada é um indicador de que a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias”.

A pedido do autor, a entrevista foi feita por e-mail. Confira os destaques a seguir.

CartaCapital: Da herança escravocrata, o que ficou de mais trágico para o Brasil?

LG: A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, por exemplo, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro acusado de furtar uma barra de chocolate tinha sido surrado com chicote nas dependências de um supermercado.

Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista ao longo de mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravo para o trabalho.

Agora, passados dois anos, no lançamento do segundo volume, outro escândalo estava na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, disparada esmo em um confronto entre a política e o crime organizada na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.

Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista do que uma concessão

O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos.

Estatisticamente, a pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças.

CC: Você disse, certa vez, que a escravidão é uma tragédia ainda em andamento.

LG: A escravidão acabou oficialmente no Brasil com a Lei Áurea, mas os seus efeitos persistem ainda hoje. Portanto, está longe de ser apenas um assunto museu ou livro de história, algo congelado e acabado no passado. É uma realidade presente assustadora no Brasil deste início de século XXI.

Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.

A segunda abolição preconizada por Nabuco, Rebouças e Gama é um dos desafios a ser enfrentado por esta e pelas próximas gerações de brasileiros. O famoso quartinho de empregada é um indicador de a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que inclui o preconceito racial e regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelham ao das antigas senzalas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias em muito se assemelham hoje aos porões dos navios negreiros de antigamente.

Capa do segundo volume da trilogia

CC: A escravidão ajuda a explicar a desigualdade regional brasileira?

LG: A escravidão explica quase todas as desigualdades brasileiras. A prosperidade das regiões sul e sudeste foi construída, em grande parte, pela chegada de imigrantes estrangeiros, europeus e católicos em sua maioria, a partir da segunda metade do século XIX. Era parte do projeto de branqueamento da população discutido e implementado durante o Segundo Reinado. Na época, se dizia que o sangue africano havia “corrompido” a índole brasileira e que seria necessário oxigenar a demografia nacional pelo estímulo à imigração europeia, branca e católica. O governo subsidiava passagens, alojamentos e outros benefícios para os recém-chegados. Meus bisavós italianos chegaram ao Brasil, em 1895, nessa condição.

Em outras regiões do Brasil, como o Norte e o Nordeste, a imigração foi inexpressiva. Salvador é hoje a maior cidade negra do mundo fora da África. Ali, as desigualdades são assustadoras. Ao olhar o passado, conseguimos ter uma compreensão melhor do presente. Isso inclui, além das desigualdades sociais e regionais, a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influência, o contrabando e a sonegação de impostos, o toma-lá-dá-cá que tanto caracteriza as relações de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Tudo isso era muito forte já na época do Brasil colonial e escravista. Por isso, decidi fazer um capítulo à parte sobre esse tema.

O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide. Seu funcionamento dependia de suborno, extorsão, malversação dos recursos públicos, contrabando, sonegação de impostos, clientelismo e nepotismo, entre outras contravenções. Como explico na abertura desse capítulo, obviamente havia gente honesta no Brasil colonial. Mas o exemplo que chegava de cima não contribuía para fixar essa imagem. Dois importantes governadores de Minas Gerais na fase inicial da corrida do ouro e dos diamantes voltaram para Lisboa muito mais ricos do que permitiam seus rendimentos. As artimanhas dos traficantes de escravos para burlar o fisco e as leis eram inúmeras e uma mais criativa do que a outra. O desvio de ouro, pedras preciosas e outras riquezas dominavam boa parte do comércio colonial.

CC: O Brasil foi tratado, por muito tempo, como  uma ‘democracia racial’. Nós já estivemos perto disso?

LG: Nunca chegamos e estamos ainda muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos. Incapaz de enfrentar o legado da escravidão, o Brasil sempre procurou disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos. A escravidão é, por natureza, um processo violento, repleto de dor e sofrimento, uma experiência que se perpetua ainda hoje na forma de racismo, pobreza e desigualdade social. A vida no cativeiro no Brasil foi tão cruel e violenta como em qualquer outro território escravista da América. A quebra da identidade e dos direitos dos escravizados era toda baseada na violência. Na África e na chegada às Américas, as pessoas eram capturadas, estocadas, marcadas a ferro quente e leiloadas como se fossem mercadorias.

Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os escravizados não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante

Sua nova existência dependeria por completo do poder do seu dono. O simbolismo dessa nova identidade estaria nos rituais que em geral acompanhavam os processos de escravização, como marcas feitas a ferro quente no corpo do cativo, o uso de colares e pulseiras metálicas indicando quem eram seus donos, o batismo em nova religião, o aprendizado de uma nova língua e de uma nova maneira de se vestir e se comportar e, por fim, a atribuição de um novo nome.

Nas ilhas do Caribe, os ingleses diziam que esse era o momento de “temperar” [seasoning, em inglês] o cativo, ou seja, mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e senhor do seu destino. Isso envolvia uma série de torturas, físicas e psicológicas, até que o escravo se “colocasse em seu lugar” – ou seja, o mesmo ocupado por animais domésticos e de trabalho. Segundo o padre jesuíta Manuel Ribeiro da Rocha, que foi missionário na Bahia em meados do século 18, durante essa etapa, muitos senhores de engenho do Recôncavo Baiano tinham o hábito deliberado de surrar os cativos. Era a primeira providência que tomavam depois da compra dos africanos.

CC: Há quem atribua essa ideia a obras como ‘Casa Grande & Senzala‘, que contribuiu para a formação intelectual de muitas gerações.

LG: Gilberto Freyre ajudou a forjar a ideia de uma escravidão patriarcal no Brasil, na qual o negro aparece como alguém passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A tão falada democracia racial seria resultado desse sistema peculiar do escravismo brasileiro. Essa visão, felizmente, está superada. Novos estudos apontam os escravos como agentes de seu próprio destino, negociando espaços dentro da sociedade escravista, organizando irmandades religiosas, formando um sistema complexo de apadrinhamento, parentesco e alianças que muitas vezes incluíam participar de milícias ou bandos armados para defender os interesses do senhor contra os de um vizinho ou fazendeiro rival.

O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide

Pequenas faltas, fugas rápidas, corpo mole no trabalho, malfeito ou inacabado, fingir não dominar a língua ou as ordens, eram todas formas de resistência que não necessariamente incluíam o enfrentamento direto, como observou a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado. Os escravos lutavam por coisas concretas, como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos. O que nem sempre implicava em fugir, se rebelar ou pegar em armas. Ainda assim, eram atos de resistência.

CC: A solução para o País se tornar, de fato, uma democracia racial passa pelo quê?

LG: A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século XIX, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana.

Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Abandonou também a própria memória da escravidão. Temos de enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo no Brasil. Também por isso eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes.

CC: No primeiro livro, o senhor compara a escravidão no Brasil e nos EUA e diz que aqui se alforriava mais e a expectativa de vida dos escravos era menor. Por quê?

LG: Alguns fenômenos diferenciam o escravismo brasileiro. Um deles diz respeito ao nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste, nas ilhas do Caribe ou no sul dos Estados Unidos.

A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras.

Outro fenômeno característico da escravidão brasileira foram processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. A alta taxa de alforria é um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe.

Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um País com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.

Os documentos revelam que o sistema sempre cobrava um alto preço pela liberdade. Para comprá-la, literalmente a dinheiro, era necessário trabalhar muitas horas para acumular poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas. Às vezes, o valor cobrado pela alforria era muito superior ao que os donos tinham pago pelos cativos. Entre as condições impostas, estava continuar a prestar serviços no cativeiro enquanto o senhor ou a senhora fosse vivo.

CC: No segundo livro, o senhor se concentra entre 1700 e 1800, auge do tráfico negreiro no Atlântico. Por quê?

LG: O século XVIII representa o auge da escravidão e do comércio de seres humanos no continente americano, em particular no Brasil. Num intervalo de apenas cem anos, cerca de seis milhões de homens e mulheres ficaram arrancados de suas raízes africanas, marcados a ferro quente e transportados para o Novo Mundo acorrentados no porão dos navios negreiros. O Brasil sozinho recebeu dois milhões, um terço do total. O motor do escravismo nesse século foi a descoberta de ouro e diamantes no Brasil e a disseminação, em outras regiões da América, das lavouras de monocultura, como a do açúcar, do tabaco, do arroz e do algodão, todos de uso intensivo de mão-de-obra cativa.

Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. A desproporção entre brancos e negros era enorme. Na região do Caribe, ocupada por franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e dinamarqueses, os negros constituíam mais de 90% da população. Naquela época, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante.

Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes.

Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. A procura por mão-de-obra cativa disparou. Nada menos do que 85% das 35.000 viagens de navios negreiros para a América documentadas pelo banco de dados slavegoyages.org aconteceram depois de 1.700.

Na África, o impacto do tráfico negreiro foi enorme. A demanda cada vez maior por cativos e os preços crescentes pagos por eles desorganizou a economia do continente. Antigas atividades produtivas, como tecelagem, metalurgia, agricultura e pecuária, foram deixadas de lado sob a pressão do comércio escravista. Em lugar delas, instaurou-se um aumento crescente nas taxas de violência. Aliada aos traficantes, uma nova elite militar africana surgiu à frente de Estados predatórios que, apoiados com armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios negreiros.

CC: Qual Brasil o leitor encontrará neste segundo volume?

LG: Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Comprar e vender gente era um fato trivial da vida cotidiana, praticado por todos os brasileiros, sem questionamentos. Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo. Uma vez conquistada a liberdade legal, inúmeros ex-escravos se tornaram também donos de escravos. A banalidade da escravidão me levou a fazer a introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois, porcos, galinhos, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz.

Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. Como explico na abertura de um dos capítulos desse volume da trilogia, os traços estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia-a-dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé.

Começaram ou se consolidaram no século XVIII alguns fenômenos que marcariam profundamente a face do escravismo brasileiro. A escravidão urbana, de serviços, diferente daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar na região Nordeste, deu maior mobilidade aos cativos, acelerou os processos de alforria, ofereceu oportunidades às mulheres e gerou uma nova cultura em que hábitos de origem africana se misturaram a outros, de raiz europeia ou indígena. Isso incluiu a disseminação de festas, danças, rituais, irmandades e práticas religiosas que ainda hoje estão presentes no Brasil.

CC: De tudo apurado, o que mais te impactou?

LC: Eu me surpreendi muito ao constatar o quanto as contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro Cultura e Opulência do Brasil pelas suas drogas e minas, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.

O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo. Novos estudos têm demonstrado o oposto disso. Os africanos escravizados não eram apenas commodities, mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas da África que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais.

Outra surpresa durante as pesquisas está relacionada ao papel das mulheres no Brasil colonial. Mulheres negras foram protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam. Ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. O estudo do papel da mulher no Brasil escravista é um dos temas mais fascinantes na disciplina de história. As mulheres desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos.

CC: E o terceiro volume, quando sai?

LG: O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e ao seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva.

O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.

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