Sociedade

Já ouvi de pessoas da minha própria família: ‘Jovita, vai viver sua vida’

A mãe de Priscila Belfort, desaparecida há 17 anos no Rio, fala de sua trajetória de ativismo e cobra avanços da política nacional de buscas

Jovita Belfort, a mãe do lutador Vítor Belfort, segue há 17 anos sem o desfecho do desaparecimento da filha. Créditos: Arquivo Pessoal Jovita Belfort, a mãe do lutador Vítor Belfort, segue há 17 anos sem o desfecho do desaparecimento da filha. Créditos: Arquivo Pessoal
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A ativista Jovita Belfort se aproximou da causa dos desaparecidas após viver um longo drama pessoal que teve início em 2004, ano que a filha Priscila Belfort desapareceu no Rio de Janeiro. Priscila era funcionária pública da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer do município. No dia 9 de janeiro, deixou o local para almoçar e não foi mais vista.

 

O caso segue nesses 17 anos sem desfecho — embora a polícia trabalhe com a hipótese de que ela tenha sido sequestrada e morta por traficantes no Morro da Providência, no centro do Rio. Priscila tinha 30 anos quando desapareceu. Hoje, teria 46.

Na semana que a Lei que institui a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas completa dois anos, Jovita conversou com a reportagem de CartaCapital sobre os desafios que o Brasil ainda precisa vencer. Também mãe do lutador Vitor Belfort, ela contou detalhes de sua trajetória como mãe de uma pessoa desaparecida.

O conhecimento trazido pela dor se materializa, desde 2019, na superintendência de Prevenção e Enfrentamento ao Desaparecimento de Pessoas na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

Confira os destaques a seguir.

‘Fiz do meu luto a minha luta’

“Lembro que quando a Priscila desapareceu eu não sabia o que fazer. É bem diferente de um caso de morte, por exemplo, que basicamente você sabe que tem que ir atrás de um atestado de óbito, depois tem que encontrar um cemitério e enterrar”, atesta. Ela conta que, em 2004, ano do desaparecimento da filha, ainda eram escassas as organizações que apoiavam os familiares, com exceção da Mães da Sé, em São Paulo, fundada em 1996, e para onde Jovita se dirigiu para fazer um dos primeiros cadastros sobre o seu desaparecimento, depois da ocorrência junto à Polícia do Rio de Janeiro.

Eu já ouvi de pessoas da minha própria família, ‘Jovita, vai viver sua vida, Priscila deve ter morrido’. Eu não acho que ela morreu, tem 50% de chances dela ter morrido e 50% de chances de estar viva

“No começo, eu tinha a certeza de que a encontraria. Depois fui me dando conta de que não a encontrei naquela noite, nem na seguinte, nem na outra. E lá se vão 17 anos”, conta a mãe que enfrentou problemas como depressão e, depois, passou reconhecer gargalos no processo de busca pela filha. “Fiz do meu luto, a minha luta”, afirma.

“Conheci uma mãe, na época, que também procurava o filho desaparecido. Os casos foram veiculados na época pelo Fantástico, e então um diretor do IML de Duque de Caxias que, por sorte estava frente à televisão, viu o caso e reconheceu que o garoto tinha passado pelo instituto”, conta. “Dali comecei a me perguntar como poderíamos avançar neste tema”.

A atuação política em 2019

Em 2019, Jovita foi convidada para atuar na coordenação de Prevenção e Enfrentamento ao Desaparecimento de Pessoas, e depois alçada à superintendente. Já em sua chegada, Jovita percebeu a falta de conhecimento político acerca do tema.  “Com o apoio do Thiago Miranda Gomes [subsecretário de Promoção, Defesa e Garantia dos Direitos Humanos] fui para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e percebi como o tema ainda era desconhecido pela casa. É importante garantirmos o espaço das políticas públicas voltadas à prevenção e enfrentamento dos casos no País”.

‘Como dizer para uma mãe parar de procurar seu filho?’

Em 2020, a família de Jovita Belfort desmentiu a notícia de que uma moça encontrada em São Paulo era Priscila Belfort. Ainda assim, a mãe comemora o acontecido. “Foi a quinta ou a sexta moça encontrada que foi sinalizada como sendo a Priscila, mas que também estava desaparecida e conseguiu retornar à sua família depois da divulgação. Isso me traz um conforto muito grande, é como se fosse seu filho também”, relata ao reforçar a necessidade de políticas de acompanhamento para os familiares.

“Eu já ouvi de pessoas da minha própria família, ‘Jovita, vai viver sua vida, Priscila deve ter morrido’. Eu não acho que ela morreu, tem 50% de chances dela ter morrido e 50% de chances de estar viva. Já vi casos de pessoas que foram reencontradas depois de 30 anos. Então, como você pode dizer para uma mãe parar de procurar seu filho?”, questiona.

Jovita conta que o processo de busca ativa, sobretudo os de longo prazo, impactam os núcleos familiares de maneiras diversas, com impactos físicos, emocionais, financeiros. “Já vi muitos casos de maridos que deixam suas companheiras por não aguentarem o fato das mães estarem sempre buscando. Agora, se a própria família abandona, imagina o poder público?”, questiona.

“Isso ocorre porque não existe no País a conscientização sobre a dor e a desestruturação que o desaparecimento provoca no seio familiar.”

Priscila Belfort desapareceu em 2004, ao sair do trabalho para almoçar, no centro do Rio. Créditos: Arquivo pessoal

‘Temos uma média de 82 mil desaparecimentos por ano, como não temos campanha?’

Jovita entende ser fundamental que o País, via Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves, encabece campanhas nacionais para apoiar na divulgação dos casos.

“Temos uma média de 82 mil pessoas desaparecidas ao ano, como não temos uma campanha? Isso é importante até para efeitos de prevenção da sociedade. Falta conhecimento sobre as múltiplas causas do desaparecimento. O que você não conhece você não previne”, alerta.

Entraves que o País precisa superar

Para Jovita, a Lei 13.812, de março de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas trouxe avanços à pauta.

“Primeiro porque trouxe uma definição do que é uma pessoa desaparecida, ‘todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas’. Também definiu que uma criança ou adolescente desaparecido é toda pessoa desaparecida menor de 18 anos”, pontua a superintendente.

Ela ainda destaca que a Lei reforçou a prioridade imediata nas buscas pelos órgãos investigativos especializados, o que deve ajudar a romper com a falácia de ter que esperar 24 horas para fazer o registro do desaparecimento. “Isso está no imaginário do brasileiro, e precisa ser superado. Quanto mais cedo as buscas começam maiores são as pistas disponíveis”, atesta.

Ainda assim, Jovita entende que é preciso avançar com o que a lei prevê, caso da criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.

“O desaparecimento é tratado a partir de várias disciplinas, não existe só a polícia, só o ministério público, só a saúde ou só a educação, requer todo um complexo intersetorial. Por isso a necessidade de uma única plataforma, que permita ao País ter uma linguagem única acerca das notificações e desdobramentos dos casos”, explica.

Jovita acredita que o primeiro passo tenha sido dado com o decreto 10.622, do dia 9 de fevereiro de 2021, que institui o Comitê Gestor da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, que tem o papel de integrar a coordenação das atividades e garantir a participação de representantes de órgãos e de entidades públicas e privadas. A política te, como autoridade central o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado pelo ministro André Mendonça.

A superintendente ainda acrescenta à pauta de melhorias a necessidade de o País implementar uma identificação civil nacional um documento único, que fortaleceria um sistema nacional de identificação. “Hoje, uma pessoa pode ter 20 identidades e isso é uma coisa que dificulta a busca ativa em casos de desaparecimento”, constata.

Na segunda-feira 15, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, assinou um acordo de cooperação técnica com o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, e com o ministro da Economia, Paulo Guedes, com o objetivo de implementar o programa de Identificação Civil Nacional (ICN). Com isso, será possível fortalecer um sistema nacional de identificação do cidadão de forma integrada em todo o país.

Sob a responsabilidade do TSE, e criada pela Lei n° 13.444/2017, a ICN tem objetivo de cadastrar os brasileiros para que sejam identificados com segurança e facilidade em suas relações públicas e particulares.

Na prática, o programa vai facilitar a vida do cidadão em várias esferas, uma vez que servirá de base para comprovação de identidade em diversas instituições, tais como embarque em viagens nacionais utilizando a validação biométrica e prova de vida para beneficiários do INSS, por exemplo.

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