Sociedade

Inumeráveis: Projeto cria memorial em homenagem às vítimas do coronavírus

Iniciativa busca romper com a lógica estatística atribuida às vítimas da covid-19 e resgatar histórias, a partir da memória dos familiares

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Filho de libaneses, o paulistano Edgard Farah não teve a oportunidade de conhecer o país de suas origens. Mas “seu Edgard”, como era conhecido pelos amigos e parentes, cultivava e vivia no dia a dia a cultura dos pais. Gostava de contar histórias de família e cozinhar pratos típicos, como o quibe cru e os charutos. Edgard só abriu mão do jeito reservado quando conheceu a mineira Eunice, com quem viveu 47 anos de companheirismo, o que rendeu quatro filhos e sete netos.

A mineira Eunice Farah, aliás, era alegre. Muito alegre. Venceu uma batalha contra um câncer de laringe, com sessões de quimioterapia e bombas de medicamento, sem lamentar. Também não reclamou do isolamento, que lhe tirou as saídas constantes e as visitas aos netos, e nem das dores no corpo provocadas pelo novo coronavírus. Buscava conforto e alívio na música. Eclética, ouvia de tudo. Ecumênica, frequentava o centro espírita às terças e a igreja evangélica aos domingos. A fé de dona Eunice era na vida e nas pessoas.

Recentemente, Eunice deu entrada no hospital com sintomas leves de covid-19 e não saiu mais. Edgard, também contaminado, acabou sendo internado logo depois. O casal de longa data, tão desacostumado a ficar longe um do outro, acabou se distanciando por pouco tempo, apenas dois dias, o curto período entre a morte de Eunice, de 77 anos, e Edgard, de 81, ambos vítimas de coronavírus.

Edgard e Eunice integram uma longa lista de vítimas fatais do coronavírus no Brasil. Desde o dia que o País anunciou a sua primeira morte, em 17 de março, esse numerário passou a fazer parte do cotidiano dos brasileiros, em uma escalada triste e preocupante.

A nova realidade vinha angustiando o artista Edson Pavoni. Habituado a pensar a sociedade e suas formas de conexão – Pavoni trabalha com a criação de instalações interativas para locais públicos -, ele se sentiu desafiado a estabelecer uma nova relação entre as pessoas e os números crescentes.

“Acordamos todos os dias com números novos e entramos nessa lógica estatística. Falamos mais sobre o nosso desejo de que isso acabe logo, e menos sobre a vida do seu Edgard, da dona Eunice, que não tem volta”, problematiza.

Pensando nisso, Edson criou o Inumeráveis, um memorial virtual em homenagem a cada uma das vítimas da covid-19. O painel é formado por uma sucessão de nomes, cada qual acompanhado de sua trajetória particular. Os relatos são feitos com base nas memórias dos familiares das vítimas e se estruturam em tom poético. “Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”, assegura Pavoni.

Uma parte do trabalho é realizada ativamente pela equipe do projeto, que conta com pesquisadores, escritores, checadores e revisores. Eles são responsáveis por encontrar essas famílias e registrar cada uma das histórias. Mas também há um recebimento espontâneo. Familiares podem encaminhar seus relatos ao preencher um questionário no site do projeto, ou encaminhá-los por áudio, via aplicativo de mensagem. A iniciativa também conta com o apoio de voluntários (jornalistas ou estudantes de jornalismo) que podem se juntar ao time para encontrar essas histórias ou escrevê-las.

Na visão de Pavoni, o projeto Inumeráveis também carrega a missão de construir uma narrativa de paz. “É uma forma de nos opormos ao conflito, a esse jeito muitas vezes desumano de lidar com essa situação”, conta o artista, que idealizou a iniciativa em parceria com o empreendedor social, Rogério Oliveira.

No último Dia das Mães, os perfis publicados pelo Inumeráveis foram projetados nas ruas de Belo Horizonte, como forma de homenagear mães e filhas vítimas do coronavírus. A ação foi feita em parceria com o coletivo Projetemos, que também nasce em meio à pandemia, e reúne pessoas dispostas a ligarem projetores em suas janelas, e garantirem a projeção de frases pelos muros das cidades do País.

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