Justiça

Família caiçara pode perder casa em embate por ancestralidade na Mata Atlântica

Órgão ambiental entrou na Justiça para cassar liminar favorável a caiçaras, que reivindicam práticas ecológicas enquanto povos tradicionais

Edmilson Prado, Karina Ferro e Martin, com 1 mês de idade. (Foto: Arquivo pessoal/Comunidade Caiçara Rio Verde e Grajaúna)
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Uma família de caiçaras com mais de 160 anos de descendência na Jureia, no litoral sul de São Paulo, corre o risco de perder o direito de manter sua casa na região após o órgão ambiental estatal acusá-los de ocupação ilegal na área, a mais preservada em Mata Atlântica no Brasil.

O Tribunal de Justiça de São Paulo julgará, nesta quinta-feira 16, um recurso da Fundação Florestal, que pede a cassação de uma liminar obtida pelos caiçaras em julho de 2019, quando duas casas construídas por membros da família foram demolidas pela guarda ambiental da reserva.

O caso é complexo e envolve o fato das populações tradicionais ocuparem áreas que, a partir da consolidação da Constituição de 1988, puderam ser consideradas Unidades de Conservação Integral – ou seja, sem atividade humana predatória permitida para melhor preservar o local. No caso da Reserva Jureia-Itatins, a área, de extrema importância para pesquisa em biodiversidade, possui os últimos 5% de cobertura vegetal primitiva que ainda resta da floresta em São Paulo.

No entanto, as famílias argumentam, com a ajuda de antropólogos, biólogos e defensores dos direitos humanos, que a preservação das tradições caiçaras foi o que manteve a região preservada ao longo da história, ao passo que criminalizar a permanência desses povos na região vai de encontro a leis e tratados internacionais assinados pelo Brasil sobre povos indígenas e tradicionais.

A liminar analisada diz respeito à família de Karina Ferro, companheira há quatro anos de Edmilson Prado, com quem tem um filho, Martin, de seis meses de idade.

Em julho do ano passado, a casa de Karina e Edmilson foi a única entre três que conseguiu ficar de pé após a Fundação Florestal decidir derrubar as estruturas que, para o Estado, eram ilegais devido à falta de autorização do órgão para a construção no coração da reserva ambiental.

Na época, a gravidez de Karina foi um dos motivos que fez os agentes do órgão não darem prosseguimento à demolição, segundo aponta o juiz que concedeu a liminar favorável ao casal e ao reconhecimento de Edmilson – e, consequentemente, de sua família – como membro dos povos tradicionais da região.

Já os irmãos Heber do Prado Carneiro e Marcos Venícios Prado, com suas respectivas esposas Vanessa Muniz e Daiane Neves, não tiveram a mesma sorte.

Para Karina, a justificativa de que os Prado prejudicariam a mata apenas com os tradições mantidas pela família é incabível. “É uma comunidade que está aqui há oito gerações, você precisa cuidar para viver. O termo ‘meio ambiente’ chegou aqui, segundo dizem os mais velhos, como forma de repressão e proibições do modo de vida caiçara – como fazer uma roça, pescar para comer, de virar um palmito. Sabendo fazer direito, você não destrói”, explica.

Entenda o caso

Registros de terra de 1856, organizados para justificar na Justiça a presença histórica da família, mostra a ocupação dos Prado na região do Grajaúna e do Rio Verde desde então. Com o tempo, as famílias foram estabelecendo as chamadas taperas, que são locais previamente habitados por familiares mais velhos ou antepassados.

Por serem lugares seguros, de fácil acesso, com terrenos produtivos e com remanescência de cultivos – como árvores frutíferas e plantas ornamentais e medicinais colocadas ali pelos caiçara -, a região foi a escolhida por três netos de Dona Nancy Prado, de 85 anos, e Seu Onésio Prado, de 90 anos, para o estabelecimento das novas gerações. É nesse ponto que começa o maior dos problemas.

Trechos do título de terra de Maria Euzébia do Prado, datados 1856, que encontrados na Paróquia de Iguape. (Fonte: “O Sistema Sócio-Ecológico da Juréia-Itatins – Histórico de Ocupação da Região do Rio Verde”, documento de pesquisadores da Unicamp)

Em 1990, após a criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins, a Fundação Florestal realizou um cadastro geral de identificação dos moradores, tendo identificado 119 famílias com direito de permanência – a dos Prado incluída.

A Fundação Florestal argumenta, porém, que no local onde as casas foram construídas “não havia qualquer comunidade caiçara instalada na região desde 1980”, e que, pela área do Rio Verde ser patrimônio mundial da humanidade declarado pela UNESCO, não é adequada para moradias.

O órgão alega, também, que criou em 2013 duas reservas dentro no Mosaico da Juréia – como é chamado o conjunto de quatro unidades de conservação integral – para abrigar as comunidades tradicionais da região, onde as famílias poderiam, se desejassem, estabelecer moradia caso comprovada a ligação histórica com o terreno. O local, porém, não corresponde às regiões de tapera da família Prado.

“Edmilson seguiu a tradição caiçara ao reconstruir uma moradia caiçara em local que foi habitado pelos avós Nancy Prado e Onésio do Prado. Lá eles viveram por quase dez anos, entre 1956 e 1964. Com o aumento da grilagem de terra e das pressões sofridas pelas comunidades da Jureia, Nancy, Onésio e seus filhos migraram para região conhecida como sítio Brasília, para onde grande parte de seus parentes também se deslocou.”, explicam os antropólogos Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, Mauro William Barbosa de Almeida e Rodrigo Ribeiro de Castro em um laudo oferecido à Justiça, após pedido da Defensoria Pública, como prova de que a região tinha ligações com a ancestralidade caiçara.

Os antropólogos alegam também que a Lei do Mosaico de Unidades de Conservação Jureia-Itatins considera, em seu “Termo de Permissão de Uso”, que comunidades tradicionais que vivem “em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental”, têm o direito de permanecer no local.

Além de exercerem atividades de subsistência, como pesca e plantação de mandioca, as família de Edmilson e dos irmãos ajudam a cuidar dos avós Onésio e Nancy, e também denunciam que famílias da região foram sendo “expulsas pelo cansaço” ao longo dos anos.

O termo baseia-se na falta de acesso facilitado pelo Estado ao sistema de saúde pública e à educação, o que fez com que as 22 famílias registradas pela Fundação Florestal, em 1991, na região do Rio Verde, fossem resumidas a apenas 7 famílias em 2011, mostram estudos do antropólogo Rodrigo Ribeiro Castro, que ajudou no laudo feito à Defensoria.

Para Karina, tal cenário demonstra um projeto de “racismo ambiental” que vem sendo costurado pelo Estado para tirar, aos poucos, os caiçaras da região.

“Isso vem de uma parcela desatualizada dos ambientalistas que não tem diálogo com a academia, não vê as pesquisas sobre florestas culturais ou ambiente socioecológicos. Eles [Fundação Florestal] falam que aqui é um território de “mata virgem” da Mata Atlântica, mas desconsideram não só a população caiçara que vive aqui desde pelo menos 1850, quando começam a ter registros de terras, mas também todos os povos guaranis e outras populações indígenas. Ou é uma desatualização, ou é um projeto de racismo ambiental que quer concretizar essa expulsão das comunidades desses territórios.”, argumenta.

Como proteger o modo de vida dos povos tradicionais?

Na visão da ex vice-procuradora-geral da República Deborah Duprat, que também atuou na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão até o fim de 2019, há “hipocrisia” ao não se considerar o modo sustentável de vida das comunidades tradicionais nas unidades de conservação.

“A criação dessas unidades que não permitem a presença de pessoas têm que ser revistas, porque em todo lugar há pessoas que mantiveram aquele ecossistema. Se há registro da presença dessas famílias há quase 200 anos, que mal essas comunidades fizeram a esse espaço? Ele foi criado porque estava preservado.”, argumenta Duprat, que ficou conhecida por trabalhar junto à causa indígena em seus 30 anos de Ministério Público Federal.

Além disso, Duprat aponta resquícios de poderes que permitiram à Fundação Florestal derrubar as casas sem um mandado judicial – o chamado mecanismo de “autotutela possessória administrativa”. Essa prerrogativa permite a execução de atos administrativos “necessários à manutenção ou retomada da posse, a qualquer tempo, de bens públicos de uso comum e especial”.

“É um dispositivo anterior à Constituição de 1988, em que se tinha um mandamento do direito administrativo que a superioridade do interesse público justificava essas medidas meio autoritárias. Isso não existe na atualidade. Restrições desse tipo têm que ser impostas ao grupo por via judicial.”, opina.

Guardas da Fundação Florestal demolindo uma das casas em 2019 (Foto: Arquivo pessoal/Comunidade Caiçara Rio Verde e Grajaúna)

A favor dos caiçaras, há também a assinatura vinculante – ou seja, de efeito obrigatório – do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, e o Decreto 6040/07, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Os dois dispositivos garantem que grupos reconheçam-se enquanto “culturalmente diferenciados” a fim de obterem a proteção de suas formas de organização. Edmilson também participou, entre 2015 e 2016, de um painel da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a colaboração tradicional caiçara à biodiversidade na Jureia.

Contra eles, está a regulamentação da unidade de preservação integral que, neste caso, abriga um raro pedaço protegido da Mata Atlântica brasileira – que possui apenas 12,4% de seu território original preservado, segundo a organização SOS Mata Atlântica.

A ONG também posicionou-se, na época, a favor do órgão ambiental do Estado de São Paulo, argumentando que “a construção de casas sem passar pelo escrutínio da Fundação Florestal representa um precedente que estimula ocupações nas Unidades de Conservação do Estado de São Paulo, configurando ameaça concreta ao patrimônio dos paulistas e do Brasil.”

Ressaltam, porém, a necessidade de “se ampliar as ações de diálogo com as comunidades tradicionais”, mesmo negando que as áreas ocupadas pelos Prado sejam associadas historicamente aos caiçara.

“É mentalidade de quem não vive na floresta”

Karina tem a voz vacilante ao falar de “esperança” na Justiça, mas afirma, de antemão, que perdeu a confiança no Estado. Nas histórias da família, são anos de intimidação às formas de se viver da comunidade caiçara da Jureia – preservada, principalmente, pela memória dos avós do marido.

Em relação à pandemia de coronavírus e aos impactos que ficar sem uma residência nesse momento teria em sua vida, ela destaca que, naturalmente, eles já vivem um “isolamento geográfico e social” na mata, mas que a falta de apoio para a sobrevivência digna da família não vem só da decisão da liminar.

Dona Nancy Prado, matriarca dos caiçaras, forneando farinha de mandioca plantada pelos Prado em suas roças (Foto: Arquivo pessoal/Comunidade Caiçara Rio Verde e Grajaúna)

Os vetos do presidente Jair Bolsonaro em relação à PL 1442/2020, que determinava medidas emergenciais para povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais na pandemia, são outro reflexo do que Karina define como “projeto de negligência”.

“O Edmilson é pescador e agora eles não estão pescando muito pelo contato que teriam com outras pessoas. A gente se vê na obrigação de minimizar o contato com outras pessoas para protegê-los [os avós de Edmilson], porque, fora a relação afetiva, eles são os grandes guardiões da memória, nossa matriarca e nosso patriarca”, diz.

A primeira decisão do juiz em conceder a liminar iniciou um diálogo entre a Defensoria Pública de São Paulo – que representa os caiçaras – e a Fundação Florestal. Em uma audiência, o estado e o órgão chegaram a reconhecer a tradicionalidade de Edmilson. No entanto, além da imprevisibilidade do novo julgamento, nada garante que os outros irmãos irão conseguir ter assegurado o direito a viver na região.

Para Karina, a situação vai além de criar o pequeno Martin nas terras em que seus antepassados aprenderam a viver da natureza. A intenção é garantir que ele tenha, no futuro, a certeza de que suas raízes permanecerão legítimas perante a sociedade.

“É uma mentalidade de quem não vive nela [na floresta]. A gente vai continuar lutando não só pela nossa casa, porque a situação dos nossos familiares ainda não foi resolvida.”, diz. “Ver três famílias jovens ficando e lutando pra continuar no território pode ter sido determinante para que o processo fosse tão violento.”

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