Sociedade

Em cima da hora

Será que o relógio de pulso também vai desaparecer um dia? Por Alberto Villas

"Todo mundo hoje olha as horas no celular"
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Andei procurando feito um louco uma correntinha de couro para o meu relógio dos cosmonautas soviéticos. A minha puiu, fui de shopping em shopping e nada. Já tinha desistido, resolvido a andar com o relógio no bolso, já que não tinha correntinha de couro para ficar no meu pulso.

Andando por uma ruela da Lapa vi, de longe, uma placa esmaltada com os dizeres: “Trocamos bateria de todos os tipos de relógio”. Pensei com os meus botões: Se trocam bateria de todos os tipos de relógio, quem sabe não trabalham também com correntinhas de couro para todo tipo de relógio, inclusive o dos cosmonautas soviéticos?

Atravessei a rua, entrei na lojinha, uma lojinha bem simples. Tinha apenas um balcão meio vitrine, de madeira maciça e vidro, quatro relógios cuco dependurados na parede, todos funcionando, mas cada um marcando uma hora diferente.

Atrás do balcão, Seu Odair, 82 anos, o relojoeiro. Tirei meu relógio do bolso e mostrei a ele. Pegou, olhou de um lado, do outro, examinou bem e comentou:

– Relógio de qualidade.

Quando comecei a perguntar se tinha a correntinha de couro, ele já estava abrindo uma enorme gaveta embutida no balcão. Um espanto! Naquela gaveta tinha todo tipo de correntinha, inclusive a de couro que tanto procurava. Ele ainda perguntou de que cor eu queria. Tinha marrom e azul. Preferi a marrom, um marrom bem escuro.

Seu Odair buscou um monóculo meio lupa que só relojoeiro tem e começou a examinar o maquinário. Foi assim que ele chamou aquelas pecinhas minúsculas no interior do meu relógio. Limpou, trocou a bateria, fechou e colocou a correntinha de couro. Ainda pegou uma flanelinha e fez uma limpeza, deixando o danado novinho em folha.

Por tudo isso paguei 30 reais. Perguntei quanto tempo tinha aquela lojinha ali na Lapa e ele foi logo respondendo:

– Quarenta e cinco anos!

E completou:

– Mas estou fechando.

Perguntei porque estava fechando aquela simpática lojinha de relógios que tinha, inclusive, uma correntinha do tamanho certinho para o relógio dos cosmonautas soviéticos. Ele brincou:

– Devido ao adiantado da idade.

Foi aí que ele me confessou seus 82 anos de idade que carregava nas costas. Disse que já estava na hora de se aposentar, não sei se fazendo um trocadilho. E disse que estava fechando o comércio, principalmente porque ninguém mais quer usar relógio de pulso.

– Todo mundo hoje olha as horas no celular.

Brinquei com ele que eu era um especialista em coisas do tipo o mundo acabou e comecei a enumerar o que me veio na cabeça e que tinha desaparecido do mapa.

O lenço de pano, a TV  em preto e branco, a caneta tinteiro, o mata-borrão, a máquina de escrever, o telefone de disco, a radiola, o bambolê, o pega-varetas, o baralho do Mico Preto, a ficha da Telesp, o envelope verde e amarelo e por ai fui.

Seu Odair arregalou os olhos azuis e o papo foi longe, nem preciso dizer aqui. Perguntei a ele o que iria fazer com aqueles quatro relógios cuco na parede e ele me confessou que já tinha vendido para um antiquário. Não só os quatro cucos mas tudo que ainda restava na loja, inclusive um relógio de bolso que foi do seu pai e que ele guardava numa caixinha, não no bolso.

– Tenho medo de sair com ele na rua e ser assaltado.

Confessei a ele que se soubesse, e se ele ainda não tivesse vendido os cucos, juntaria todas as minha economias para arrematar um daqueles que estava na parede, talvez aquele que quando fui me despedir do Seu Odair, abriu a portinha e o passarinho cantou como se fosse uma hora.

– Cuco!

Na verdade, já eram mais de cinco horas da tarde.

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