Sociedade

Daniela, a colombiana que ajuda a dar voz aos imigrantes

Refugiada desde os 12 anos de idade, ela hoje tem um projeto para dar visibilidade a artistas de outras nacionalidades que vivem em São Paulo

A família de Daniela Solano fugiu da Colômbia depois receber ameaças de um grupo paramilitar
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Após anos de trabalho com indígenas no parque Tierradentro, localizado em uma região dominada pelo conflito armado na Colômbia, os pais de Daniela Hernandez Solano foram ameaçados e tiveram que deixar o país às pressas.

“Por questões de segurança, nós não pudemos nos despedir dos nossos amigos. Foi triste, a gente sabia que estava indo embora para sempre”, conta Daniela, hoje com 27 anos de idade, refugiada há 15 anos no Brasil.

A guerra entre o governo colombiano, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e os grupos paramilitares estava em seu auge naquele início de 2002.

A família, formada pelos pais e quatro filhas, vivia entre o povoado de Silvia, no departamento de Cauca, e a reserva de indígenas paeces, nas montanhas próximas dali. Um terremoto havia atingido a região em meados dos anos 1990, e os pais de Daniela saíram de Bogotá para ajudar na reconstrução da comunidade.

“Eles se envolveram com os indígenas e começaram a desenvolver um trabalho social e pedagógico, até que decidiram que a gente ficaria por lá, mesmo a contragosto de todos, porque era uma ‘zona vermelha’. Eles estavam fascinados”, diz ela sobre o pai, jornalista, e a mãe, socióloga. Para Daniela, o trabalho realizado pelos pais e outros ativistas de direitos humanos incomodou. “Quem gosta de alguém que, junto aos líderes locais, está despertando a consciência de um povo?”, questiona.

O enredo que a jovem construiu para a própria história é baseado em suas lembranças e nos relatos que ouviu ao longo dos anos. “Nós fomos ameaçados pelos paramilitares, que são os grandes latifundiários, os donos das terras. Não houve negociação. Já tinham dado três avisos, e lá não existe quarto aviso”, conta.

“Acho que a postura ideológica dos meus pais também influenciou. Eles não defendiam nenhum bando, mas tinham um posicionamento mais libertário, mais à esquerda.”

O discurso original das Farc, que surgiram em 1964, era centrado no combate às desigualdades sociais por meio da distribuição de renda e da reforma agrária. O contraponto foi a criação das forças paramilitares, grupos armados pela direita para combater a guerrilha ao lado do Estado e que depois envolveram políticos e latifundiários, por exemplo.

A fuga

Após a terceira ameaça, o pai e as crianças tiveram que deixar o povoado e iniciaram uma peregrinação de carro pela Colômbia, parando na casa de amigos e parentes. A mãe de Daniela já estava no Brasil, onde visitava a irmã que havia se casado com um brasileiro e morava em Barueri, na Grande São Paulo.

“A gente ficou rodando, e minha mãe não chegava. Um dia meu pai finalmente disse: a gente tem que sair. Voltamos para o povoado só para pegar roupas e mais alguma coisa”, diz. “Quem trabalha com direitos humanos nunca tem dinheiro, então nós tivemos ajuda e viemos todos separados. Lembro que a passagem da minha irmã mais velha, a última a viajar antes do meu pai, foi comprada com o dinheiro da rifa de um anel de ouro. Uma amiga da família fazia joias e nos deu esse anel.”

Após alguns anos de Brasil, os pais se separaram. O processo de adaptação foi difícil e, embora o idioma tenha sido o primeiro obstáculo para uma integração de fato, foi também uma “ferramenta de sobrevivência”. “Minha mãe se dedicou muito para criar as quatro filhas, e fez isso dando aulas de espanhol. O idioma salvou”, conta.

Fotos Deixadas para trás, as fotos da infância na Colômbia foram recuperadas no ano passado

O choque cultural também foi grande. Na Colômbia, Daniela vivia entre o povoado de Silvia, onde fazia parte de um grupo de jovens, e a comunidade indígena, onde a família passava meses em contato com a terra. “Os indígenas até construíram uma casa para nós”, conta. Se ela gostava? “Gostava, amava, adorava. São as minhas memórias mais fortes.”

Em São Paulo, Daniela e as irmãs estudaram em um colégio particular graças às bolsas que conseguiram com o apoio do centro de acolhida da Caritas Arquidiocesana. Na escola, porém, a então adolescente foi alvo de bullying. “As crianças são muito más. Meus colegas foram terríveis comigo”, conta. “Por eu ser colombiana, alguém sempre vai fazer uma ‘piada’: ‘Vai chamar a guerrilha? Cadê a coca? Você é parente do Pablo Escobar?’ E ainda rola. Por incrível que pareça, ainda rola.”

Daniela tinha apenas 12 anos, mas diz que sabia que a Colômbia não se resumia a isso. Além do preconceito contra suas origens, lhe incomodava o fato de ser vista como “coitadinha”. “Quando eu era criança eu não lidava bem com o fato de ser refugiada, de sempre me olharem como coitadinha. Eu sabia que eu tinha uma história e não queria me sentir assim”, conta.

Com o passar dos anos e o “amadurecimento”, Daniela começou a questionar a própria identidade. “Eu sou mais colombiana ou mais brasileira? O que eu sou? E assim nasceu um desejo de compartilhar esse sentimento e de entender como as pessoas se sentem quando chegam aqui.”

Esse processo se iniciou quando ela tinha 20 anos de idade, e foi assim que Daniela passou a se envolver com refugiados e imigrantes que vivem em São Paulo. Atriz, ela hoje divide os palcos do teatro – e as aulas particulares de espanhol, assim como sua mãe – com o projeto Visto Permanente, do qual é uma das idealizadoras. Com o objetivo de dar voz e visibilidade aos imigrantes que vivem na capital paulista, o Visto Permanente é um acervo audiovisual disponível na internet que reúne registros de projetos culturais conduzidos por artistas de diversas nacionalidades.

“Eu sou muito grata a São Paulo pelo acolhimento que eu recebi, a cidade é realmente muito plural, mas, ao mesmo tempo, ainda há muita xenofobia. A cultura paulista é feita de imigrantes desde a sua formação, mas apenas a cultura esbranquiçada é aceita, ou seja, aquela que é formada por alemães, italianos, japoneses. Os fluxos migratórios mais recentes, como o dos bolivianos, não são aceitos como parte da cultura paulista.”

Para Daniela, o refugiado precisa ocupar um lugar de “sujeito ativo” na sociedade. “Existem vários projetos para os refugiados, e isso é muito importante, mas essas questões que estão sendo colocadas de fato nos representam? Ou é uma visão de um brasileiro, sobre o que ele pensa que é ser refugiado? Não acho que seja por mal, mas acho que está na hora de o refugiado deixar de ser sujeito passivo para ser sujeito ativo.”

Conheça o trio de mc’s bolivianas Santa Mala, em vídeo para o projeto Visto Permanente:

Santa Mala from Visto Permanente on Vimeo.

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