Sociedade

Como conciliar vozes dissonantes para o bem das cidades

As cidades crescem seguindo a orientação de grupos econômicos mediados pelo poder executivo, legislativo e, com sorte, pela sociedade civil

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A história do planejamento urbano se confunde com a história das cidades, afinal, desde os primórdios da sociedade a utilização da terra é uma questão central para os governos. À medida que as cidades cresceram e tornaram-se mais complexas, maior tem sido a necessidade de refinar o planejamento de oferta de transporte; obras de infraestrutura e saneamento básico; distribuição de equipamentos públicos de saúde, educação e cultura; e zoneamento do solo, com o objetivo de orientar as áreas residencial, comercial, serviços e industrial de uma cidade.

O Plano Diretor é o principal instrumento de planejamento urbano e, a partir de 2001, com a publicação do Estatuto das Cidades, a maioria das cidades do país se viu obrigada a disciplinar sua dinâmica urbana através de planos construídos coletivamente e que devem ser revisados periodicamente. Posteriormente, em 2003, com criação do Ministério das Cidades, o governo federal estimulou ainda mais o desenvolvimento de planos e programas que visavam melhorar a qualidade do espaço urbano das cidades brasileiras. É importante ressaltar, no entanto, que o PD é um instrumento essencialmente urbanístico, que pode auxiliar no processo de desenvolvimento econômico, porém essa não é sua principal função, tornando necessária uma discussão mais abrangente para a elaboração de planos setoriais que, com base no zoneamento, poderão trazer estímulos à economia.

Por seu tamanho econômico e nível de desenvolvimento social, as cidades do Grande ABC possuem um corpo político e social capaz de diagnosticar os problemas e propor em conjunto uma série de soluções para dar novo fôlego ao desenvolvimento da região, no entanto essa presença de fatores não tem impedido que as sete cidades tenham sofrido com mais intensidade os efeitos da crise econômica dos últimos anos.

A crise político-econômica iniciada em 2013 teve impacto na arrecadação local, refletindo principalmente nos repasses estaduais para a região. Em 2013, o governo de São Paulo repassou 2,37 bilhões de reais para os municípios da região, enquanto em 2018, a quantia foi de 2,31 bi, representando uma queda de 2,73%. São Bernardo do Campo e Diadema foram as cidades que mais sofreram, com uma queda no mesmo período de 17% e 4,73%, respectivamente. Se levarmos em conta apenas a transferência de ICMS, uma das principais fontes de renda dos municípios, a queda foi ainda mais acentuada, de 7,16% na região e 22,77% em São Bernardo e 9,31% em Diadema. É importante destacar que os demais municípios tiveram aumento nos repasses durante o período.

Mas nessa conta deve entrar outros fatores como o aumento do desemprego, queda no consumo e aumento na busca de serviços públicos, que tiveram crescimento muito aquém da nova demanda. Mas mesmo o ABC possuindo um histórico importante de cooperação intermunicipal e planejamento cooperativo para dar conta dos problemas conjuntos dos municípios, que resultou na criação do Consórcio Intermunicipal Grande ABC e Câmara Regional, e enfim na criação da Agência de Desenvolvimento na década de 1990, o último período marcou o enfraquecimento desses espaços de discussão e decisão.

Como a sociedade civil tem se posicionado?

Mas mesmo com a falta de protagonismo do Consórcio, o ABC segue com atores sociais fortes, que se envolvem na discussão de políticas públicas e sobre o futuro das cidades. Exemplos são a Acisa (Associação Comercial e Industrial de Santo André) e Acisbec (Associação Comercial e Industrial de São Bernardo do Campo), entidades que congregam empresários da região, e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que também pauta a discussão regional. Entidades entrevistadas para esse texto.

Quando se trata de desenvolvimento econômico, ponto que permeia toda a discussão sobre desenvolvimento regional urbano, o presidente da Acisa, Pedro Cia Junior, defende que um dos entraves ao crescimento é a mobilidade urbana: “A região não é contemplada com políticas públicas adequadas, como por exemplo modais modernos (Metrô)”. Vale lembrar que as cidades do ABC, com exceção de São Bernardo do Campo, contam com a linha 10 da CPTM (uma das que mais apresentam problemas de toda a malha ferroviária de São Paulo), mas nenhuma conta com metrô. A interligação mais próxima é no Tamanduateí, próximo a São Caetano do Sul.

Por outro lado, enquanto a falta de transporte público de qualidade é um entrave ao crescimento econômico, a localização geográfica da região, de fácil acesso a São Paulo, a Santos e ao Aeroporto de Guarulhos, faz crescer o preço da terra, o que gera, de imediato, algumas consequências: uma disputa entre o setor industrial e habitacional pela terra, como destacou Wagner Santana, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a gentrificação e afastamento sistemático de famílias de regiões centrais e instalações nas franjas da cidade, e, como última consequência desse processo, a saída de importantes empresas. O ciclo respeita uma lógica conhecida: instalação de empresas em determinada região por facilidade de escoamento e baixos preços da terra, isso atrai mão de obra que ocupam essas regiões, a médio e longo prazo isso demanda mais infraestrutura e consequente aumento do preço da terra, o que faz com as empresas busquem novos lugares para sua planta. Tratamos sobre isso no primeiro texto da série.

Esse cenário coloca a região sob outro desafio: qualificar sua mão de obra frente as transformações da indústria. Valter Moura, presidente da Acisbec, aponta que apesar da boa infraestrutura existente na região, “estamos carente de mão de obra especializada e qualificação profissional frente à modernização da indústria”. Uma saída possível é desenvolver parcerias com as instituições de ensino da região, que hoje conta, além de importantes universidades particulares, com a Universidade Federal do ABC. “O desemprego estrutural vem sendo trabalhado pela Acisa por meio de promoção constante de cursos e palestras de capacitação, em parceria com Sebrae e instituições locais de ensino. Essas qualificações são direcionadas tanto para os empresários quanto para seus colaboradores. Além disso, também incentiva o associativismo – reunindo empresas do mesmo segmento em núcleos específicos para discussão de problemas e busca de soluções conjuntas”, explica Pedro Cia. Moura também ressalta o papel das universidades locais nesse processo: “estamos sempre em busca de parcerias. Temos ótimo diálogo com a Universidade Metodista e com a Universidade São Judas, esta recentemente instalada em São Bernardo do Campo. Elas têm um papel fundamental. ‘A competitividade de um País não começa nas indústrias ou nos laboratórios de Engenharia. Ela começa na sala de aula’ afirmou o célebre empresário Lee Iacocca”. A mesma importância dada à parceria com as universidades é ressaltada por Wagner Santana, presidente do SMABC, porém, Santana lembra que as questões ideológicas também têm afetado esse setor: “já tivemos um relacionamento mais estreito com as universidades, no entanto, por conta dessa polarização política, elas estão cada vez mais ensimesmadas. O ataque à educação é um dos maiores problemas atualmente”, pontua o sindicalista.

O que os municípios do ABC têm feito?

Todas essas ações têm, ou deveriam ter, no poder público seu maior mediador. Mais o que as prefeituras têm feito a esse respeito? Os representantes das entidades entendem a importância de conversar com o poder público para atender o interesse de seus representados. No entanto, reconhecem que apesar do espaço de diálogo, pouco tem acontecido. “Via de regra, o poder público não teve um planejamento adequado para contribuir com o desenvolvimento econômico da Região, sempre foi pontual e premente. Atualmente, a entidade tem um bom relacionamento com a gestão pública a nível municipal, estadual e federal”, afirma Moura da Acisbec.

Já Wagner Santana enfatiza o papel do sindicato no debate de questões de interesse dos trabalhadores da região: “temos de buscar todos os agentes públicos e privados que têm impacto na vida do trabalhador. Cabe ao sindicato propor ações que protejam os empregos, porém estamos em um momento difícil para criar pontes e abrir portas devido as diferenças ideológicas. Porém estamos preparados para negociar com um governo refratário”.

Ponto comum entre Acisa, Acisbec e sindicato é a crença no Consórcio como um agente fundamental para o desenvolvimento econômico e social da região, porém reconhecem que o instrumento perdeu o foco. “A Câmara Regional passou por momentos de grande evidência, mas nos últimos governos tem se mantido estagnada”, afirma o presidente da Acisa. Santana é mais enfático ao falar do planejamento regional: “o sindicato defende um instrumento de planejamento regional, mas no atual momento essa conversa não está no foco das administrações municipais. A região não pode ser vista como sete cidades isoladas e não é cada um cuidando do seu quadradinho que vamos resolver o mosaico de problemas do ABC”.

De maneira geral, os municípios dispõem de pouco recursos para estimular a produção industrial além de desonerações de impostos e descontos em contas de consumo, dependendo mais de incentivos das esferas estadual e nacional para ativar a economia. Em São Paulo, após os anúncios de saída da Ford de São Bernardo de Campo e da GM de São Caetano do Sul, o governo estadual correu para lançar programas de incentivos para o setor automotivo. O primeiro foi o IncentivAuto que prevê desconto de 25% no ICMS para empresas que investirem mais de R$ 1 bilhão e gerarem no mínimo 400 novos postos de trabalho. Outra medida foi o Pró-Ferramentaria que libera créditos do ICMS para aquisição de ferramentas para produção.

(Foto: Adonis Guerra/SMABC)

Os governos destes dois municípios, cujo dependência da indústria automobilística é maior, estão otimistas com as ações lançadas pelo governo estadual. No entanto, enquanto a administração de São Caetano conta com uma promessa de a General Motors investir de R$ 5 bilhões nos próximos anos na planta da cidade, a de São Bernardo apenas supõe que o programa poderá servir de estímulo para as montadoras que abriga, o que obriga a cidade lançar mão de outras estratégias para fomentar o desenvolvimento. De acordo com nota da Secretaria de Comunicação da cidade, a atual administração tem uma política que visa aproximar o poder público com o setor industrial, instituindo a Lei de Incentivo de Fiscal – que dá desconto no IPTU para quem gerar emprego na cidade. Trata-se de um incentivo progressivo, a partir de 50 vagas abertas, e pode chegar a até 30% de desconto.

Ambas prefeituras afirmam apostar em parcerias com a iniciativa privada para alavancar as economias locais, mas sem citar nenhum programa específico ou resultado esperado ao longo do tempo. Para Fernando Trincado Simon, secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho, Turismo e Inovação de São Caetano do Sul, “a aproximação das universidades com outros setores da sociedade é fundamental para evolução econômica e social da cidade. Neste sentido temos atuado fortemente, com um elo de ligação (Hub). Fato que contribuí para um ambiente inovador dentro e fora da administração municipal”, que ainda completa: “As parcerias do setor público com a iniciativa privada (PPPs), mais que uma tendência, já são realidade e muito importantes para a sustentabilidade econômico-financeira dos municípios”.

A nota da Prefeitura de São Bernardo destaca a realização do 1º Congresso Latino-Americano da Indústria Automotiva, que reuniu representantes de grandes multinacionais e políticos para debater o futuro da indústria automobilística. Também destacou a criação do Centro de Empreendedorismo e Inovação Tecnológica – Ceitec, além de manter um relacionamento estreito com universidades e empresas no desenvolvimento de novas tecnologias, bem como startups com base tecnológica.

Ambas administrações se mostraram preocupadas com o impacto que a indústria 4.0 pode ter no mercado de trabalho. “Talvez esse seja o maior desafio dos próximos anos. É um tema para ser tratado de forma nacional, porém, dentre as possibilidades no âmbito municipal, destacamos: a ampliação da oferta de formações com viés tecnológico e o incentivo da atividade empreendedora”, afirma Simon.

Com exceção da Lei de Incentivo Fiscal adotada pela prefeitura de São Bernardo, os governos municipais não apresentaram nenhum plano concreto, citando apenas parcerias com a iniciativa privada e universidades como principais caminhos para a diversificação e aprimoramento do ambiente econômico das cidades. Esse posicionamento corrobora a impressão de Moura e Santana que, apesar de se encontrarem em lados opostos da mesa de negociação, concordam que o poder público municipal deveria ser mais efetivo na condução de um projeto de desenvolvimento.

O que outras cidades têm feito?

As cidades crescem seguindo a orientação de grupos econômicos mediados pelo poder executivo, legislativo e, com sorte, pela sociedade civil. Quanto mais a sociedade participa, mais democrático é esse crescimento.

Em um mundo de trocas cada vez mais rápidas e concorrência em todos os níveis, é natural que as cidades sintam cada vez mais, e em menores intervalos, essas transformações. Uma das características do capital é a velocidade com que se movimenta pelo mundo. Ao contrário do mundo murado aos imigrantes que desejam alguns líderes mundiais, a elite econômica não respeita fronteira e movimenta seus investimentos às custas de cidades inteiras.

Uma saída possível é investir em tecnologia, mão de obra qualificada e parcerias público privadas, como os entrevistados afirmaram, mas isso é insuficiente se não for combinado com um planejamento regional de médio e longo prazo a partir de discussões amplas e mecanismos constantes de correção de curso. Fóruns que ultrapassem as administrações regionais e grupos políticos, e que deem peso igual a todos os atores sociais.

Incentivos fiscais são eficientes a curto prazo, mas a exemplo do remédio orwelliano, o remédio não cura a doença, mas adia o sofrimento do paciente. É preciso mais. Alguns exemplos apontam para novos possíveis, como é o caso da cidade de Melbourne na Austrália, que criou a Autoridade de Planejamento de Victoria, que a partir de uma gestão técnica tem, na prática, mais autoridade que os gestores da cidade na condução do planejamento urbano.

Outro exemplo foi a construção do Plano Diretor de São Paulo, criado a partir de um amplo processo de discussão que elaborou, de forma coletiva, um novo jeito de pensar a cidade, instituindo uma série de diretrizes para orientar o desenvolvimento e o crescimento de São Paulo pelos próximos 16 anos. Não por acaso o Plano foi premiado pela ONU-Habitat como uma das quatro melhores práticas inovadoras de agenda urbana. Em linhas gerais, o Plano Diretor iniciou uma transformação na lógica da cidade, aproximando moradia e emprego, e orientando um crescimento mais igualitário e justo da cidade.O plano trata, dentre outros temas, da criação de “polos estratégicos de desenvolvimento econômico”, ampliação de ZEIS, Zonas Especiais de Interesse Social e planos de mobilidade pública.

Entre os entrevistados para esse texto, é consenso a importância da elaboração de um plano de médio e longo prazo, que leve em conta principalmente questões como qualificação da mão de obra e incentivo à inovação tecnológica. Ao poder público, mais do que ser apenas uma arena de debates de diferentes propostas, é preciso articular uma pactuação social para que esses planos sejam construídos democraticamente envolvendo interessados e, o mais importante, que saiam do papel. É preciso conciliar vozes dissonantes e coloca-las em uma mesma frequência, a exemplo do que foi a construção do Plano Diretor de São Paulo.

É claro que cada região apresenta suas características, mas não são poucos os movimentos que surgiram, sobretudo a partir de 2013, com o intuito de intensificar a participação da sociedade na política. No Brasil e no mundo há um sentimento latente de falta de representativa e de espaço para troca de ideias. Ainda que algo reste dos conselhos e fóruns de discussões, esses são insuficientes e muitos carregam o vício das hierarquia e nada mais fazem do que reproduzir o que já reconhecemos na sociedade. Se pensarmos na cidade como uma obra coletiva, é razoável exigir que o poder público se engaje como espaço democrático na construção de soluções.

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