Sociedade

Com solidariedade e união, comunidades cariocas lutam contra o coronavírus

Moradores de favelas cariocas sofrem, mas não esperam o Estado para agir contra a pandemia

A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Foto: Alexandre Macieira/Riotur
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“Não basta ser preto, pobre, favelado e viver com a liberdade cerceada por caveirão, tráfico e tiroteio, agora não consigo ir e vir por algo invisível que pode me matar”. É assim que Ricardo Fernandes, morador da Cidade de Deus, resume a diferença assumida pela pandemia de covid-19 nas comunidades cariocas em relação ao asfalto, onde o “estado chega” não só com a ponta do fuzil.

Colaborador da “Frente CDD”, Fernandes tem atuado há mais de um mês na linha de frente solidária que apoia os cidadãos mais frágeis na sua comunidade, em uma iniciativa semelhante a diversas ações que, juntas e independentes do governo, têm sido o principal meio de sobrevivência para essas pessoas nas favelas do Rio.

Com casas de um ou dois cômodos habitadas por famílias numerosas, em disposição espacial que não costuma privilegiar o espaço entre as construções, além de população especialmente vulnerável a deficiências econômicas, as favelas têm sido fonte de preocupação desde o início da quarentena no Rio, já que essas características são perigosas na luta contra o contágio.

Dos mais de 3.200 casos confirmados na cidade (e quase 350 óbitos), a prefeitura contabiliza oficialmente mais de 70 em comunidades, em números que subestimam a realidade e contam com o receio geral de um aumento explosivo nesses lugares, conforme o país se aproxima do ponto crítico projetado.

Reunindo ONGs, moradores e ativistas, a Frente CDD, assim como outras iniciativas semelhantes, tem se preocupado com a comunidade em duas frentes essenciais: informação e insumos básicos, os dois por meio de doações.

A primeira é feita com carros de som, cartazes e faixas pela Cidade de Deus, todos alertando para a necessidade de se cumprir o isolamento social à risca, higienizar-se e seguir os procedimentos básicos para a não contaminação quando for preciso sair de casa.

A segunda, com cestas básicas e kit’s de higiene, além da logística para arrecadação e distribuição, dificultada em tempos de pandemia. Segundo Fernandes, no entanto, até a hora de entregar os produtos é complicada: “As pessoas querem nos abraçar, mostrar sua gratidão de alguma maneira tradicionalmente física, mas não conseguem.”

Na Cidade de Deus, ainda segundo Fernandes, mesmo que alguns comércios teimem em abrir e pessoas se aglomerem em alguns lugares, o isolamento tem sido cumprido com maior empenho nos últimos dias, após a primeira morte: “tá todo mundo assustado, porque viram que enfim chegou perto”. A comunidade tem, segundo os dados da prefeitura, 7 casos confirmados e 1 óbito.

Sem pestanejar, o colaborador da Frente CDD elenca a falta de comida, potencializada pelo não pagamento dos salários, como principal preocupação das pessoas que tem auxiliado. É o mesmo ponto levantado por Monique Santana, moradora da Rocinha, maior favela do país, que viu o sustento acabar na figura de um policial.

Vendedora ambulante de doces em transporte público, há cerca de um mês, enquanto trabalhava em um ônibus, foi abordada por um agente na Gávea, bairro abastado vizinho à comunidade: “Ele disse que eu não podia mais fazer aquilo ali, que estava proibido, que eu tinha que ir pra casa”, lembra.

Impedida de ir trabalhar e morando sozinha com o afilhado, ainda criança, sem familiares na cidade e em uma das áreas mais longínquas da favela, ela tem tirado o sustento ao ajudar os vizinhos: “como são todos idosos e estão com medo de sair de casa, eu tenho feito as compras que eles precisam, e por isso costumam me dar algum trocado”.

Também moradora da Rocinha, Ana Rodrigues começou a ter problemas quando o salão de beleza em que trabalha no Jardim Botânico fechou as portas em março. Desde então, o pagamento do salário, auxílios e outras compensações só ficaram na promessa e fizeram que ela e os dois filhos tivesse que se apoiar exageradamente no marido, cujo trabalho em um hotel foi diminuído pela metade.

Sem direito ao auxílio emergencial do governo, o isolamento, que segundo ela não é seguido em vários pontos da comunidade, se intensificou em casa quando “ouvi falar de pacientes suspeitos, confirmados e até óbitos por aqui, aí começou medo de sair na rua, ainda mais eu que tenho diabetes e estou no grupo de risco”. Nos dados da prefeitura, a Rocinha aparece como a favela com maior número de casos confirmados (43) além de mortes (3).

Com recursos insuficientes, tanto Monique, quanto Ana foram apoiadas por Grécia Valente e membros do grupo “Ai que vergonha solidário”, batizado em referência ao bloco de rua de mesmo nome: “O carnaval tinha acabado quando a pandemia começou e estávamos no pique de nos unir”, diz ela, que conta com “vaquinhas” semanais para montar kit’s de higiene e “o que mais der para colocar de comida”.

“É muita gente pedindo e o que entregamos dá para dois ou três dias, isso sem falar nas máscaras e outras coisas”, pontua. Decoradora, Grécia se viu envolvida cada vez mais em ações solidárias desde o início da pandemia e agora passa os dias em função disso: “Ontem fui atrás de fraldas para uma família e só fui conseguir um doador já no fim do dia”.

Para elencar essas iniciativas em um só lugar, o site “Favela em Pauta”, em parceria com o Instituto Marielle Franco, lançou o #MapaCoronaNasPeriferias nessa segunda-feira. Em um mapa online de todo o país, pessoas podem cadastrar ações de solidariedade, suas características e contato para doações.

O objetivo, segundo Daiene Mendes, à frente do projeto, é que se possa identificar e ajudar grupos em localidades próximas, tanto para doar, quanto para receber. Diretora do instituto e irmã de Marielle, Anielle Franco afirma que “consideramos correto que essa ajuda venha do governo, mas entendemos a urgência de todo tipo de apoio nesse momento”.

As duas consideram que os pronunciamentos e atitudes do presidente tem especial repercussão no relaxamento progressivo da quarentena, uma vez que isso confunde a população e é visível nas comunidades cariocas, onde o isolamento teria diminuído após anúncios de Jair Bolsonaro.

Mendes, ela mesma moradora do Complexo do Alemão, também chama a atenção para o fator de mudança que a pandemia trouxe para características intrínsecas das favelas, lugares já atingidos por diferentes problemas, o que impôs “uma nova ordem”.

“A ordem de resistência da favela contra seus problemas sempre foi permanecer em movimento, mas o vírus impõe ficar em casa, então ainda é difícil fazer as pessoas compreenderem essa mudança, porque o que sempre fez a gente estar em movimento é a pressão de fora”, diz ela.

Somente em uma das unidades de saúde do Alemão, a Clínica da Família Zilda Arns, são 4 casos confirmados, 2 óbitos e 877 casos suspeitos, o que aponta para a provável subnotificação de pacientes que realmente tenham desenvolvido a covid-19.

Percepção parecida tem Fernandes que, falando da realidade na Cidade de Deus, diz que a vivência continuada de mazelas pode levar a uma “normalização da dor” que não faz sentido, ainda mais na luta contra um vírus que “desconstrói nosso maior símbolo de resistência, o senso comunitário”.

Na sua avaliação, uma vez impedidos de se aglomerar, os moradores estariam passando por um “esfriamento” das relações que só é retomada, em parte, pelas ações de solidariedade, que mesmo assim devem ser feitas rapidamente, evitando o contato e a possibilidade de que as pessoas interajam como antes.

Sem saber o quanto a pandemia ainda durará e com a aproximação do ponto crítico, tanto os responsáveis pelas ações solidárias quanto os auxiliados por eles, como Santana e Rodrigues, não têm dúvidas de que a pior fase ainda está por vir, além de não fazerem ideia da situação em que estarão as comunidades até lá.

Sobre o ineditismo brutal da situação, Fernandes faz a comparação: “Antes, sabíamos ao menos que o tiroteio ia acabar dali um tempo e poderíamos sair de casa em seguida, mas agora nem isso.”

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