Sociedade

Argentina colocou seus torturadores na cadeia. Já o Brasil…

Nossos vizinhos, quando erram, saem a reparar o erro. Nós optamos por afundar na lama

Ronaldo Schemidt/AFP
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A Argentina, país que o Brasil adora odiar, terá cruzado duas vezes com o eterno rival nestes últimos dias no terreno em que os rancores costumam ser mais exacerbados: o futebol. Num amistoso pouco amistoso em Riad, na Arábia Saudita, a burocrática seleção do Tite perdeu do conjunto de Messi numa partida que, pontapés à parte, foi um convite à narcolepsia. 

O encontro seguinte haveria de ser mais excitante: Flamengo vs. River Plate na final da Libertadores da América, transferida de Santiago para Lima depois que os anfitriões chilenos entenderam que há coisas mais cruciais e urgentes a tratar do que promover um festival de rapagões invariavelmente tatuados em disputa por uma mesma bola.

Na seara da geopolítica, o confronto também se acirrou, com los hermanos impondo uma salgada goleada em nosotros. Em 2015, o eleitorado argentino deixou-se seduzir pelas doces e ilusórias palavras de Mauricio Macri, um empresário que simulava ser “o novo” na política a bordo de um discurso ultraliberal que fascinou a resistente oligarquia estancieira e os jornalistas a soldo da mentira. A bem da verdade, Macri é uma dessas contrafações que fariam igual sucesso no Brasil.

 

O que diferencia radicalmente argentinos e brasileiros, com escandalosa vantagem em favor de ellos, é que os nossos vizinhos, quando erram, saem a reparar o erro, enquanto os brasileiros, por velhacaria, covardia e ignorância, preferem ficar alegremente chafurdando no esgoto que abriram a seus pés. Os eleitores do Plata fizeram uso do voto para evitar o bis da direita, mas antes promoveram nas ruas um corajoso esquentamento contra o corte dos programas sociais em nome da “austeridade”. Protestos magníficos não se intimidaram ante as bombas e os cassetetes da polícia; no Brasil, os manifestantes, quando os há, tiram sorridentes selfies com os brucutus. 

Os compatriotas de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, não se dão o trabalho de corrigir os inúmeros e catastróficos equívocos por eles perpetrados na esfera da política. Em reação pueril, eximem-se de qualquer responsabilidade, quando não passam acaloradamente a ignorar o desastre como se resultasse de erro alheio. Atitude típica de uma nação omissa e indolente forjada à sombra de séculos de escravidão. Logo se desobriga de qualquer culpa para se acomodar no ninho do esporte mais popular da tigrada: a queixa. Inócua, hipócrita, cafajeste. 

Don Diego.

O que a maioria dos brasileiros fez com o Brasil na última eleição foi um crime abjeto contra si mesma. Insistem nele. Macri perto de Bolsonaro é um inglês do Eton College. Comparar o eleitor argentino com o brasileiro é maldade; seria como, fora de campo, comparar o combativo Diego Armando Maradona com o ausente Edson Arantes do Nascimento.

A posse da dupla Alberto Fernández-Cristina Kirchner será no dia 10 próximo. O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina, e a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Era de se esperar que o presidente do Brasil comparecesse, em prol da realpolitik, na tentativa de corrigir os desastrosos comentários feitos por ele em favor do candidato derrotado. Não, o miliciano preferiu agarrar-se à sua birra infantil do que defender os interesses da pátria. Os argentinos saem ganhando: livram-se da ameaça tóxica de um visitante eleito pela fraude e recepcionam, em lugar dele, o carismático Lula – se é que as juízas oxigenadas de Curitiba não vão criar caso em troca de uns minutinhos no Jornal Nacional.

Bolsonaro, aliás, só existe e sobrevive porque o Brasil não teve a coragem dos argentinos de não se esconder do passado, ainda que brutal, duro de encarar. Também por lá as primeiras tentativas foram, como se fez no vizinho ao Norte, de acovardado esquecimento, primeiro pela “Lei da Obediência Devida”, editada pelo governo Alfonsín como concessão a milicos amotinados, e depois pela “Lei do Ponto Final”, eufemismo para uma anistia ampla para os carrascos de farda. Sensibilizado pela mobilização da sociedade e pela infatigável vigilância das Madres de Mayo, o Judiciário argentino decidiu fazer justiça. As chagas do genocídio foram abertas, figurões fardados foram condenados e encarcerados, e um presidente da República, o general Jorge Videla, teve a morte merecida: na cadeia.

O nosso Capitão Zero foi dispensado da corporação porque nutria fantasias terroristas. 

O “Papa do fim do mundo”.

Sempre foi um celerado, acobertado ora pelos camaradas de farda, ora pelo Judiciário de um olho só, e sempre protegido pelo jornalismo camaroti. Nega que tenha havido a tortura que dizimou tantos inocentes nos porões do arbítrio. Não chama a ditadura de ditadura. No Brasil do silêncio imperativo e amedrontado, o herói do momento é o facínora das catacumbas, um Ustra que na Argentina pegaria prisão perpétua num presídio da Patagônia. 

A Argentina tem cinco prêmios Nobel, quatro em áreas cientifícas e o da Paz de 1980 para Adolfo Pérez Esquivel, militante dos Direitos Humanos; o Brasil não tem nenhum. Eles são melhores que nós na educação básica, no conhecimento geral, na literatura, no cinema, nas livrarias, no vinho, no tênis, no rugby e na infinita capacidade de rir de si mesmos. Um dos inúmeros livros que auscultam a alma dos hermanos – mania esta que consagrou o país como campeão mundial da psicanálise – fala no “atroz encanto” de ser argentino. A ambiguidade junta tipicamente prazer e tragédia.

A primeira vez que o aqui subscrito esteve em Buenos Aires viu Jorge Luis Borges caminhando na Calle Florida, de braço dado com Maria Kodama, Edmundo Rivero cantando num cabaré e Juan Manuel Fangio tomando uísque com amigos. Estava lá para celebrar, com todos os argentinos – e repito: todos –, os 40 anos da morte de um ídolo que se dizia não ter morrido: el Zorzal Criollo, Carlos Gardel. As bancas de revistas se vestiram de pôsteres gigantes que insinuavam a propensão necrófila de uma nação que preferia cultuar os vivos – Evita Perón e o Che – de preferência depois da morte deles. E Gardel nem argentino era. Che, Evita, Gardel – até no quesito necrofilia eles são mais requintados que los brasileños.

Deu para ouvir soar os bumbos da esquerda peronista na Plaza de Mayo clamando que Isabelita Perón, ungida na Presidência depois da morte do patriarca, viesse ao lendário balcão para anunciar a improvável demissão de quem era seu mentor, el brujo López Rega. “Isabel al balcón, López Rega al paredón”, gritavam. Muitos daqueles devem ter perecido no genocídio fascista desencadeado um par de anos à frente. Isabel e o Bruxo tinham chocado o ovo da serpente. Milhares de democratas foram trucidados. Milhares e milhares escaparam – figuras destemidas que aqui chegaram no desconsolo do exílio, escapulindo de um daqueles surtos de barbárie castrense que se abatiam, vira e mexe, contra o politizado país, pisoteando com botas belicosas sua fachada de civilização.  

A redemocratização, após a catástrofe das Malvinas, andou passando pelo sobressalto de milicos inconformados com a democracia – espécie bastante comum na fauna da Latino-América. Cobri as rebeliões, uma atrás da outra, mas a trabalheira trazia aquela recompensa prazerosamente banal das caminhadas por Buenos Aires, as medias lunas, os sanduíches de miga, os Malbecs da Norton, os cotidianos de qualidade (foi quando surgiu o endiabrado Página 12). Um acolhimento singelo, sem afetação, se bem que intelectualmente muito estimulante. Superou a fase pizza con champán do cafona Carlito Menem. País sofrido, voltou a ser uma nação que se respeita. Em caso de recaída, é só acionar o papa Francisco.

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