Sociedade

Ao culpar venezuelanos, autoridades estimulam xenofobia, diz pesquisador

Para especialista, discurso das oligarquias políticas locais colabora para o sentimento da população local contra os imigrantes

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Pela segunda vez, a governadora de Roraima e candidata a reeleição pelo PP, Suely Campos, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o fechamento das fronteiras entre o Brasil e a Venezuela, e que os imigrantes residentes no estado sejam enviados a outros estados.

Na sequência do pedido, o ministro Sergio Etchegoyen, do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), repetiu nesta segunda-feira 20 que o governo considera impensável a possibilidade de fechar a fronteira.

A reedição dos desentendimentos entre o governo estadual e o governo federal a respeito da crise humanitária dos imigrantes venezuelanos retornam na medida em que os casos de xenofobia contra os refugiados se tornam cada vez mais violentos.

No fim de semana, Pacaraima foi palco de cenas agressão entre venezuelanos e brasileiros depois de um comerciante local ter sido agredido durante um assalto. Em resposta, grupos de brasileiros passaram a perseguir refugiados que vivem na cidade, queimando seus pertences.

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Agredidos com pedaços de pau, os refugiados foram expulsos das tendas que ocupavam na região na fronteira do Brasil com o país vizinho. Com medo, ao menos 1,2 mil venezuelanos voltaram para o país de origem.

Esta não é primeira ocorrência de xenofobia praticada em massa no estado. Em março deste ano, moradores do município de Mucajaí entraram em um abrigo de refugiados, expulsaram os venezuelanos e depois atearam fogo nos objetos pessoais das famílias.

A manifestação xenofóbica foi convocada via redes sociais depois de uma brigada generalizada entre venezuelanos e brasileiros, e que levou a morte um morador de Mucajaí e de um imigrante. O Ministério Público de Roraima indiciou cinco pessoas por prática de xenofobia e incitação ao crime.

Entre 2015 e 2016, quando a crise na Venezuela começou a ficar mais grave, o posto da Polícia Federal no município de Pacaraima, atendia, em média, 200 venezuelanos pedindo abrigo no Brasil todos os dias. Hoje, passam diariamente pelo local ao menos mil refugiados do país vizinho.

Entre 2017 e 2018, mais de 120 mil venezuelanos entraram em Roraima. Mais da metade deles já deixou o Brasil. Em julho, o governo brasileiro informou que 4 mil venezuelanos permaneciam em abrigos em Roraima.

Pacaraima é um município predominantemente indígena, e a população local não ultrapassa os 12 mil habitantes. De lá, uma boa parte dos imigrantes segue para Boa Vista, a menor capital em número populacional do Brasil, com 330 mil habitantes, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística.

Para João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e especialista em imigração, as oligarquias políticas locais usam o preconceito para se livrar de críticas a respeito da precariedade dos serviços de saúde e segurança no estado, inflando a população, que já vive em cidades pobres e precárias, contra os refugiados

CartaCapital: Na sua avaliação, por que a imigração em massa de venezuelanos está irrompendo em casos cada vez mais graves de xenofobia?
João Carlos Jarochinski: Essa foi a quarta vez que se tenta articular uma manifestação anti-imigrante. Essa de agora foi inflamada pelo caso de violência contra o comerciante, assim como aconteceu em Mucajaí. Essas cidades são muito pequenas, pacatas, e não era comum esse grau de violência que está acontecendo com cada vez mais frequência, e que é fruto, em grande medida, de uma vulnerabilidade muito grande desses refugiados. Algumas figuras políticas tem um poder de intervenção maior nesses municípios menores, e tem se apropriado oportunamente do discurso contra os venezuelanos.

CC: De que maneira os políticos têm feito isso?
JCJ: A governadora do estado (Suely Campos), que concorre à reeleição, tem índices de popularidade muito baixos. O primeiro acolhimento aos imigrantes foi feito pelo estado, ainda que de maneira muito deficitária. O senador Romero Jucá – opositor político da família Campos e um dos principais aliados do presidente Michel Temer  – foi o primeiro a falar no fechamento das fronteiras. Por outro lado o governo do estado alega que tenta resolver o problema mais não consegue porque o governo federal abandonou Roraima. Quando puderam, todos tentaram se afastar da questão. O governo do estado canaliza suas críticas ao senador Romero Jucá culpando o governo federal.

CC: Esse comportamento das autoridades locais pode incitar de alguma maneira a xenofobia?
JCJ: De modo geral eles têm se apropriado do problema jogando a culpa das deficiências do estado nos venezuelanos, o que estimula na população esse sentimento xenófobo. No caso de Pacaraima, a revolta começou quando a população pediu uma ambulância para atender o comerciante que havia sido feriado durante um assalto por um venezuelano, e chegou a informação de que não havia ambulância disponível.

Os equipamentos públicos são muito deficitários em todo o estado e no interior isso é pior, e a população começa a nutrir um sentimento de que o Estado está cuidando da fragilidade dos imigrantes, mas não cuida da sua própria população. A partir daí começa o jogo de empurra dos políticos entre eles e para os próprios refugiados, que estariam superlotando um sistema que já é muito ruim. É um discurso de ódio onde se transfere responsabilidade para o outro o tempo todo. O imigrante não é eleitor, então não há o menor compromisso em lidar com essas pessoas com políticas públicas consistentes.

CC: Na opinião do senhor, então, faltam iniciativas concretas para lidar com essa onda imigratória? 

JCJ: Não há gestão da crise humanitária porque não há diálogo entre os governos. O senador Romero Jucá estava fazendo campanha em Roraima tentando ignorar a imigração de venezuelanos. Com os acontecimentos mais recentes, ele não teve alternativa, e propôs um sistema de cotas para a entrada no Brasil.

Já o governo do estado pediu R$ 190 milhões para investir em medidas emergenciais, e Palácio do Planalto respondeu afirmando que já gastou R$ 250 milhões, mas não em repasses para a administração local. Sem diálogo e sem gestão as principais questões estão sendo definidas pelo Supremo Tribunal Federal, como nos pedidos de fechamento da fronteira.

CC: A governadora pediu mais uma vez o fechamento das fronteiras. O que o senhor pensa sobre essa medida? 

JCJ: O fechamento das fronteiras não é uma boa alternativa. Não só pelos pactos internacionais que o Brasil é signatário mas porque é impraticável fazer a vigilância de toda a fronteira. Isso sem falar que hoje existe um controle de quem entra, quem sai, em que condições, com o fechamento das fronteiras perderíamos totalmente esse controle.

Os abrigos e a alimentação, que estão sendo gerenciados pelas Forças Armadas, estão funcionando. Mas o governo federal demorou muito para dar uma resposta. Hoje, entre 4 e 5 mil venezuelanos estão nos abrigos. A vinda das Forças Armadas apaziguou um pouco os ânimos da população, porque se faz um patrulhamento ostensivo e evita-se um cenário de conflito maior. Mas é extremamente problemático tratar uma crise humanitária como essa como uma questão de segurança pública.

O governo federal ofereceu como um das soluções construir um abrigo fora da zona urbana de Pacaraima, o que eu vejo com muita preocupação. Tirá-las do convívio com outras pessoas, da cidade, é impedi-las de se refazer. A crise humanitária em Roraima está completamente sem gestão.

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