Justiça

A letalidade policial volta a crescer e representa 12,8% das mortes violentas registradas em 2020

A cultura do ‘capitão do mato’ ainda está presente, em especial nas policias militares, lamenta o ex-ouvidor Benedito Mariano

Créditos: Rovena Rosa/EBC Créditos: Rovena Rosa/EBC
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O Brasil bateu um novo recorde de letalidade policial. Em 2020, as intervenções policiais causaram a morte de 6.416 civis, o equivalente 12,8% do total de mortes violentas registradas no País, revela a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho. Nesta estatística, está incluído Rogério Ferreira da Silva Junior, que na segunda-feira 9 completaria 20 anos de idade. Ao invés de festa, a comunidade do parque Bristol, na zona sul da capital paulista, vai se reunir para lembrar sua morte ocorrida exatamente há um ano, no dia de seu aniversário. “Não será um protesto. Quero apenas reunir os amigos para homenageá-lo”, diz sua mãe, a manicure Roseana da Silva Ribeiro. 

Na tarde do fatídico dia, um jovem emprestou a Rogério uma moto mais possante que a sua para um passeio. Na Avenida dos Pedrosos foi parado para uma abordagem. Câmeras de segurança mostram o momento em que dois policiais se dirigem até ele, no meio-fio. Em seguida, ele é atingido por um tiro e tomba com a moto. Desarmada, a vítima agonizou na calçada. Desde então, o processo se arrasta pelos tribunais. Em maio, aconteceu a primeira audiência para ouvir as partes, mas apenas Roseana e suas testemunhas puderam falar. O juiz alegou “cansaço” e transferiu para dezembro a oitiva dos PMs envolvidos no homicídio. “Tudo é muito lento. Só posso esperar em Deus”, desabafa a mãe traumatizada. “Quando vejo um policial ou uma viatura, meu coração dispara de medo”.  

Mas, afinal, por que as polícias brasileiras são tão violentas? Por que possuem um gatilho tão leve mesmo diante de suspeitos desarmados, em plena tarde de domingo? Segundo especialistas, em parte o problema se deve à leniência dos comandantes com os desvios praticados por seus subordinados. Mas nem todos os desvios, claro. Há situações não toleradas pelas corporações policiais, como a transgressão disciplinar cometida por Martel Alexandre Del Colle, aspirante a oficial da Polícia Militar do Paraná, compulsoriamente aposentado aos 29 anos. No processo administrativo, ele foi acusado “trazer a conhecimento público imputações graves contra a instituição Policia Militar do Paraná, bem como em favor de autoridades civis constituídas”. Por imputações a “autoridades civis constituídas”, leia-se comentários contrários à candidatura de Jair Messias em 2018 e críticas à postura do então juiz federal Sérgio Moro e do chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol.

 

Desde o Império, as polícias são treinadas para controlar a população, e não para protegê-la, afirma Del Colle. “O método de ensino nas escolas militares consiste em doutrinação e adestramento. O cadete assimila uma ideia pronta e repete. Apenas cumpre ordem, determinação. Não é permitido questionar”. A violência policial, diz ele, surge das entranhas de suas próprias estruturas. Os alunos são formados para a guerra, para o confronto. Não existe diálogo ou entendimento. Em qualquer operação de rotina, o objetivo é sempre efetuar a prisão, custe o que custar. 

A relação de “opressor e oprimido” nas academias e quartéis acaba por se refletir no dia a dia dos militares. Desde cedo, os cadetes aprendem que serão obrigados a aceitar humilhações, receber ordens aos gritos sem responder. “Quando um militar superior se dirige ao subalterno, não é permitido sequer gesticular. Fica obrigado a permanecer em posição de sentido”. Da mesma forma, são treinados para não sorrir em uma operação, nem manifestar qualquer emoção. Com o tempo, esse procedimento torna-se parte da vida e se reproduz no cotidiano. “Nas abordagens de rua, os policiais apenas reproduzem o que aprenderam nos quartéis. Tratam o cidadão comum da mesma forma como foram tratados”. 

Ex-ouvidor das Polícias de São Paulo atual secretário de Segurança Cidadã no município de Diadema, Benedito Mariano atribui a violência policial a um longo processo histórico que sempre cultuou a repressão. “Os mais de 350 anos de escravidão moldou um sistema que carrega um preconceito histórico contra pobres e negros. A cultura do ‘capitão do mato’ ainda está presente, em especial nas policias militares”, lamenta. Os índices de letalidade crescem porque a política de segurança pública vigente visa o confronto, a busca pelo flagrante delito. “Mas esta letalidade não é aleatória, ela atinge sistematicamente os jovens pobres e negros das periferias, que são tratados como suspeitos de antemão”. 

Em São Paulo, 97% dos inquéritos por mortes de civis são investigados pelos batalhões de origem dos próprios PMs envolvidos nas ocorrências

Na avaliação do sociólogo, o modelo de segurança pública brasileiro é anacrônico, autoritário e a transição democrática não priorizou a construção de outro modelo. Desde o período imperial, as polícias são militarizadas e a estrutura se manteve após a proclamação da República. “No currículo de formação dos PMs, é fundamental incluir a discussão sobre o racismo estrutural”, avalia Mariano. “Construir uma estrutura democrática e cidadã passa, necessariamente, por uma polícia antirracista”. 

A impunidade é outro fator que contribui para as epidêmicas taxas de letalidade policial.  Em São Paulo, 97% dos inquéritos por mortes de civis são investigados pelos batalhões de origem dos próprios PMs envolvidos nas ocorrências, diz o ex-ouvidor. A corregedoria da corporação só analisa 3% dos casos. Resultado: 95% dos inquéritos de homicídios cometidos por policias em serviço são arquivados. E o Ministério Público aceita a conclusão. “O ideal seria centralizar no órgão corregedor todas essas investigações. Para isso, basta um decreto do governador do Estado. Mas, em São Paulo, nenhum tomou esta iniciativa administrativa”.

O advogado Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, confirma que as policias brasileiras estão entre as mais violentas do planeta. As estatísticas mostram que 47,5% das vítimas por mortes violentas intencionais no Brasil têm entre 18 e 29 anos, sendo 75% delas negras. No caso de mortes “por intervenção policial” este índice cresce para 78,9%. “A questão, neste caso, não é despreparo. As polícias foram, sim, preparadas, mas para cometerem abusos, torturas e mortes”. 

Os treinamentos policiais por vezes usam fotos e desenhos de comunidades periféricas ou de jovens negros como alvos em estandes de tiros, observa Alves. O especialista defende uma reformulação total dos métodos. Na avaliação do advogado, os policiais deveriam frequentar universidades públicas e serem orientados por acadêmicos com formação em Direitos Humanos. Os atuais instrutores, prossegue Alves, por vezes são agentes que cometeram atrocidades no período da ditadura ou abusos e torturas nas próprias corporações. Ele também critica a omissão do Ministério Público no controle das atividades policiais e defende que os casos envolvendo civis jamais sejam encaminhados a tribunais militares.

A violência policial no Brasil se assimila àquilo que a filósofa alemã Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal”. Alves lembra que a convivência com o medo faz com que uma parcela dos moradores em comunidades pobres ainda defenda ações truculentas. “Mas a defesa só dura até algum familiar se tornar vítima”, alerta. Sem ter a quem recorrer, as populações periféricas acabam encurraladas entre criminosos comuns e maus policiais. “Polícia eficiente não é a que abusa, tortura e mata, mas aquela que, sem violência, oferece proteção, segurança e paz”. 

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