Política

A francesa que tenta explicar o Brasil para os europeus

Criadora do espetáculo ‘Avril-Avril-Lettres à Lula’, a professora Maud Chirio fala a CartaCapital

O presidente Bolsonaro e os militares (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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Uma das mais ativas intelectuais na denúncia da destruição do Estado de Direito no Brasil, presente em todas as frentes, é a historiadora Maud Chirio, professora na Universidade de Paris-Est Marne-la-Vallée. Ela contribuiu para criar a RED-Br (Rede Europeia pela Democracia no Brasil) e foi a idealizadora do espetáculo Avril-Avril/Lettres à Lula, encenado dia 25 de junho, no Théâtre Monfort: artistas e intelectuais franceses e brasileiros leram cartas ao presidente Lula, o prisioneiro político mais famoso do mundo. Thomas Quillardet e Calixto Neto dirigiram o espetáculo, com Chico Buarque, Cecília Boal, Juliana Carneiro da Cunha, Maria de Medeiros, Ariane Mnouchkine, Anna Mouglalis, Camila Pitanga, Audrey Pulvar, Renata Sorrah, Marieta Severo, Marcia Tiburi e Jean Wyllys, entre muitos outros. Nesta entrevista a CartaCapital, Maud Chirio, autora do livro A Política nos Quartéis (La Politique en Uniforme), fala sobre o projeto político de Jair Bolsonaro.

CartaCapital: O que mudou no espetáculo Avril-Avril-Lettres à Lula, em função das revelações feitas por Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil? O espetáculo ganhou novo peso?

Maud Chirio: Pensávamos em mudar, se Lula tivesse sido solto, se o STF tivesse dado o habeas corpus. Não seria o mesmo espetáculo concebido a partir de cartas a um preso político, sobre uma prisão política.

CC: Como foi seu encontro com Lula? Ele é um personagem controvertido. Nem falemos da direita e da extrema-direita europeias, sabemos como elas o tratam. Mesmo no Brasil há quem tenha uma visão bastante crítica. O PSOL é resultado de uma cisão do PT e tem críticas radicais a Lula. Como você analisa o ex-presidente?

MC: Fui apresentada por alguém próximo dele. Encontrei uma pessoa intermediária entre o homem público e o ser humano. Eu não acho que o lulismo foi um atraso para a esquerda brasileira, como alguns pensam, mas a esquerda do Brasil não está de jeito algum reconstruída e em particular não soube estabelecer uma conexão com as classes populares. Lula é uma figura importante, que tem uma relação carismática e pessoal com seus apoiadores. A Presidência de Lula acelerou diversas dinâmicas da história brasileira e em parte por causa da identificação que ele conseguiu criar com segmentos da sociedade que nunca tinham sido considerados pela política. E isso, por causa de sua origem, pelo jeito que ele tem de se expressar, pela atenção que ele dedica àqueles geralmente considerados cidadãos de segunda classe. Lula não é um político comum e não corresponde aos critérios da luta igual e coletiva de pessoas conscientizadas habilitadas a debater projetos que a esquerda ocidental promoveu no último século. Por isso é saudável que outras correntes da esquerda tentem propor outras maneiras de lutar, pensar e se relacionar com as classes populares.

A professora Chirio é autora de um livro entitulado La Politique en Uniforme./Foto: Reprodução

CC: Lacunas. A reforma agrária, reforma fiscal, reforma política, reforma da mídia…

MC: Claro. Mas eu não acho que a esquerda que vai surgir necessita “matar o pai”. Particularmente, neste momento preciso da história do Brasil, com essa herança não apenas de Lula, mas do PT, dos sindicatos, da política. Olhando o Brasil de longe, os problemas e os ataques ao patrimônio da esquerda não foram só ao lulismo, ao carisma político, à relação que Lula construiu com o povo. Os ataques são mais amplos. É a ideia de luta coletiva, a ideia de trabalhadores, a ideia de interesses do trabalho em contradição com os interesses do capital. Os ataques são à ideia de soberania. Lula, o PT e o lulismo foram um elemento que criou não somente benefícios concretos para as classes populares. E disso as cartas falam. Elas não frisam apenas o fim da fome. Elas falam de perspectivas, de esperança, da possibilidade de a filha ir à universidade, da possibilidade de a família ter horizontes.

Lula não criou somente benefícios concretos para o povo, mas também esperanças no futuro

CC: Você é uma especialista da ditadura brasileira, escreveu livros sobre ela, trabalha com essa época. Como você vê o Brasil governado por um capitão, cercado de generais em todos os níveis do governo, inclusive no STF. Quem manda no Brasil hoje são os militares?

MC: Bem, o Brasil está muito mais desmandado do que mandado. Não são só os militares que mandam hoje. Há uma coligação de forças envolvidas em um conflito artificial. Mas a presença militar no poder hoje deve ser vista sob o ângulo da história da República brasileira. Desde a Proclamação da República, sempre houve um protagonismo militar muito forte. O Brasil teve uma história republicana caótica e militarizada. A presença fardada atual não é novidade, é mais a norma do que a exceção. E isso explica a naturalidade com que o processo está acontecendo para a opinião pública, para as instituições da República. O fato de dar a direção da Funai a um militar é visto como natural.

CC: Eles detêm um poder de moderação?

MC: Acho que não. Eles se consideram árbitros e querem ser reconhecidos assim, mas até agora não conseguiram. Há muito amadorismo e enlouquecimento político em setores-chave do poder que incomodam muita gente desejosa de um Estado ultraconservador, coeso, organizado, que possa durar.

CC: Como você define este governo?

MC: Um governo de guerra ideológica e social sem limites. Este projeto de Bolsonaro não é muito bem definido nem totalmente consensual, mas tem elementos claros: a revolução neoliberal e a brutalização da sociedade contra todo mundo que está fora de um padrão religioso, moral e ideológico.

CC: A Europa já abriga pelo menos dois exilados políticos muito conhecidos: Marcia Tiburi e Jean Wyllys, que participaram do espetáculo Lettres à Lula. Como a RED-Br, fundada por brasileiros e franceses, vai continuar a defender a democracia no Brasil no plano internacional?

MC: A RED-Br é um dos diversos coletivos nos Estados Unidos, na Europa, na América do Sul. Somos intelectuais, professores universitários e artistas. Não somos ativistas profissionais. A gente vem de uma tentativa de compreensão do país no nosso trabalho de intelectuais e artistas. Vamos ter de dar prova de imaginação para continuar criando eventos e atrair um público que muitas vezes desconhece o que se passa no Brasil. A comunidade franco-brasileira já está mobilizada. Temos de informar o público francês.

CC: A França reconheceu o autoproclamado presidente Juan Guaidó, fantoche de Washington, como presidente da Venezuela. Como você explica que o Quai d’Orsay não se manifestou para condenar o impeachment como um golpe jurídico-parlamentar, e a prisão do ex-presidente Lula como um processo político?

MC: O golpe deu-se durante o governo Hollande e a prisão do Lula no governo Macron. A posição foi a mesma, de neutralidade. Há três razões: a primeira é a covardia da diplomacia no seu conjunto. A diplomacia é uma prática cercada por muitas limitações e ter alguma opinião sobre um processo judiciário que envolve diversas instituições num país considerado republicano não se faz, salvo em raras exceções. O segundo elemento é que durante muito tempo houve uma visibilidade muito ruim sobre o que estava acontecendo no Brasil. O que mudou a leitura foi a eleição de Bolsonaro. Até agora, a narrativa dominante no exterior era a da mídia brasileira, que naturalizava todo o processo em curso como realizado dentro dos padrões institucionais. O terceiro elemento: o que desencadeia uma reação de condenação num país estrangeiro em relação a um parceiro comercial importante são os interesses claramente ameaçados. Aí vai haver reação sobre a legitimidade das mudanças políticas. Mas os interesses não estão ameaçados. Também quanto às violações graves de direitos humanos. Infelizmente, o Brasil é um país que viola direitos humanos há tempos. Então, não houve o que pode provocar eficazes condenações internacionais.

A RED-Br reúne intelectuais, professores e artistas para analisar o Brasil de hoje e acompanhar o cativeiro do líder./Foto: Ricardo Stuckert

CC: Qual o critério na escolha das cartas? Quem as escolheu?

MC: Foi um grupo que trabalha com as cartas há mais tempo, o Linhas de Luta, que criou um site com o mesmo nome (www.linhasdeluta.org), que já disponibilizou cartas traduzidas para francês, inglês e espanhol. É um grupo de historiadores: uma francesa, um argentino e brasileiros. Alguns deles quiseram ficar anônimos para não sofrer problemas, pois, infelizmente, a universidade é um lugar onde afirmar uma identidade política virou coisa complicada. Isso é o resultado da colaboração de um grupo de historiadores com o Instituto Lula para preservar as cartas, digitalizá-las e dar visibilidade a essa fala no contexto atual do Brasil. Às vezes são frases curtas, pessoas mandando um poema. Um senhor analfabeto de mais de 80 anos ditou um poema para a filha enviar a Lula, para lhe dar força e energia. Há diversos tons e a gente espera que seja equilibrado entre algo forte, o testemunho do povo brasileiro neste momento da história, e uma coisa que possa empolgar o público estrangeiro.

CC: O que a RED-Br está programando para o futuro?

MC: Queremos alimentar a mídia europeia com outras narrativas sobre o Brasil. Mantemos também uma vigília sobre ataques a grupos minoritários no Brasil. No nosso caso, no mundo da cultura e da educação, que não são minoritários, mas estão sendo atacados. Mas também quilombolas, indígenas, gays, militantes políticos, militantes do movimento dos Sem-Terra etc. Nossa prioridade é a defesa dos direitos humanos e das populações atacadas. Nossa estratégia é promover ações muito visíveis. Vamos focar em grandes eventos com muita visibilidade para existir, obrigar a mídia a aceitar a nossa existência e a realidade do Brasil. Por causa disso, nossa primeira ação foi a luta pela Rua Marielle Franco que virou Jardim Marielle Franco, em Paris, a ser inaugurado em setembro próximo. O outro grande projeto é o espetáculo Avril-Avril, Lettres à Lula.

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