Entrevistas

‘A economia de dados deveria ser criminalizada’, diz professora da Universidade de Oxford

Autora do livro ‘Privacidade é Poder’, Carissa Véliz explica por que comércio de dados pessoais pelas big tech é uma ameaça à sociedade

(Foto: Divulgação)
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O brasileiro vive correndo perigo na era digital. Apontado como uma dos países mais preocupados com segurança em ambientes virtuais por empresas como a Unisys e F-Secure, o Brasil também possui, paradoxalmente, uma das populações menos afeitas a checar o que as empresas que coletam seus dados pessoais realmente estão fazendo com essas informações. Uma outra pesquisa levantou ainda que cerca de 80% dos brasileiros se dizem dispostos a trocar seus dados pessoais por algum benefício ou serviço.

Isso preocupa. A consultoria alemã Roland Berger lista o Brasil como o quinto alvo favorito de ataques hackers a empresas. Apenas no primeiro semestre de 2021, foram 9,1 milhões de incidentes de ransomware ataques que tornam os sistemas ou base de dados das empresas reféns, liberados mediante o pagamento de um “resgate”. Outro levantamento contabilizou cerca de 16 bilhões de tentativas de ciberataques no País neste mesmo mesmo período.

Entre 2020 e 2021, os dados de praticamente todos os brasileiros vivos (e de muitos dos falecidos) foram vazados e comercializados na dark web. Essas informações foram obtidas de bases do Ministério da Saúde, Serasa e Detran, que continham os números dos RGs, CPFs, CNHs, endereço, salário, número de telefone e data de nascimento de centenas de milhões de pessoas. Não à toa, o número de fraudes sofridas por cidadãos cresceu mais de 15% nos últimos dois anos, de acordo com a Serasa Experian. 

Até aqui, estamos falando de criminosos e empresas descuidadas. Os verdadeiros vilões da chamada economia de dados, porém, são as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício: Google, Microsoft, Twitter, Apple e Facebook praticamente vivem de coletar e vender informações pessoais de seus clientes/usuários. 

Pressionadas pelos governos e cada vez mais reguladas, as big techs anunciam aos quatro ventos investimentos monstruosos em segurança e garantias de preservação da privacidade de quem usa seus serviços.  O Facebook, um dos mais notórios coletores de dados pessoais, passa muito de seu tempo na mídia negando que comercialize a informação que coleta de seus usuários, mas vende uma capacidade quase sobrenatural de entregar conteúdo direcionado a clientes em potencial para empresas interessadas em comprar espaço de propaganda na sua rede social. O aplicativo monitora tudo que o usuário posta, sua localização, seus hábitos de consumo e até o que faz em outros aplicativos.

É em meio a isso que a editora Contracorrente traz às livrarias brasileiras o livro Privacidade é Poder, de Carissa Véliz, da Universidade de Oxford na Inglaterra, onde é professora adjunta na Faculdade de Filosofia e no Instituto para Ética em Inteligência Artificial

Na obra, a professora defende a ideia de que estas empresas, que criaram um aparato de vigilância que monitora seus usuários 24 horas por dia e em qualquer localidade, ameaçam os direitos humanos, a economia global e a própria estabilidade da democracia nos países onde ainda não são reguladas. “A Carissa tem uma posição muito clara e contundente no sentido de criticar o desenvolvimento da economia de dados, ou ao menos o vê com muitas reservas muito bem fundamentadas”, diz o professor Ricardo Campos, autor do prefácio da edição brasileira. 

Confira, a seguir, os destaques da entrevista.

CartaCapital: No prefácio da versão em português, Ricardo Campos diz que há uma mudança de paradigma imposto pela transição da vida offline para online e como isso tornou a privacidade um direito essencial da mesma forma que o direito à cidadania se tornou depois da Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade judaica alemã teve negada primeiro sua cidadania e, depois, sua humanidade. A nossa humanidade está em jogo agora?

Carissa Véliz: Essa é uma forma de expressar a questão. Nossos direitos humanos estão certamente em risco, o que por sua vez põe em perigo muitas outras áreas da nossa vida. Quando nossas informações pessoais se tornam commodities, ou seja, quando elas se tornam coisas que qualquer um pode comprar e vender, seres humanos se tornam o produto, o recurso a ser explorado. Podemos argumentar que a história dos direitos é a história do reconhecimento de que as pessoas não são recursos a serem explorados, mas indivíduos merecedores do nosso respeito. A dificuldade em proteger nossa privacidade expõe um número de riscos e danos: da discriminação à humilhação pública, extorsão, riscos à segurança nacional e perigos à integridade da nossa democracia.

Assim como o seu médico e advogado têm o dever de tomar conta de você em seus respectivos campos, qualquer pessoa coletando ou administrando informações privadas tem que ter o dever de zelar pelos dados individuais

CC: O conceito de privacidade nas nossas leis precisa ser revisado e atualizado? 

CV: Sim. Isso é, parcialmente, o porquê de ter escrito o meu livro e o porquê incluí todo um capítulo destinado a legisladores. O passo mais importante a ser tomado é parar de ver dados pessoais como uma forma de propriedade, porque eles não são isso e porque isso imediatamente degrada o nosso direito à privacidade. Dados pessoais não deveriam ser comercializados por muitos dos mesmos motivos pelos quais nós não permitimos que as pessoas comprem e vendam votos. 

Outro passo importante é começar a olhar com seriedade para a captação de dados pessoais e não apenas para o seu uso. Capturar informações pessoais é um negócio arriscado. Não é neutro. Informações pessoais são incrivelmente sensíveis, difíceis de manter seguras e cobiçadas por muita gente, desde companhias de seguros até governos ou criminosos. Nós temos que deixar de coletar tanta informação privada. 

Também precisam ser implementados deveres fiduciários. Assim como o seu médico e advogado têm o dever de tomar conta de você em seus respectivos campos, qualquer pessoa coletando ou administrando informações privadas tem que ter o dever de zelar pelos dados individuais de tal forma que nossas informações só possam ser usadas em nosso benefício, nunca contra nós. 

Eu tenho mais ou menos 15 outras políticas que eu descrevo no livro, mas outra bastante importante é melhorar os padrões da cibersegurança. De forma mais genérica, leis baseadas em ideias sobre ética, sobre o tipo de sociedade na qual gostaríamos de viver.

CC: Quais as ideias base para criarmos o tipo certo de lei?

CV: Primeiro, o monitoramento, a vigilância, não é moralmente neutro. Tecnologia de vigilância levam a sociedade de controle, que levam à diminuição da liberdade e a erosão da democracia. Segundo, dados pessoais são um ativo tóxico e deveriam ser tratados com este entendimento: eles envenenam indivíduos e sociedades ao nos exporem ao risco. Terceiro, privacidade é um empreendimento coletivo, não uma preferência individual. Sua informação pessoal contém dados sobre outras pessoas e pode ser usada contra outras pessoas, então privacidade não é apenas sobre você. Quarto, dados não são só uma forma de conseguir dinheiro, eles concedem poder. Quem quer que esteja de posse dos dados na era digital também terá o poder, então não podemos permitir que as grandes corporações ou que o governo tenha tudo, ou vamos perder poderes como cidadãos.

CC: Qual deveria ser a resposta no campo legislativo, para limitar o potencial destrutivo de redes como o Facebook? 

CV: Da mesma forma que nós regulamos grandes indústrias no passado. Das ferrovias ao petróleo, carros, aeronaves, alimentos, finanças e drogas. Big tech não é diferente. Certamente não é mais complexa do que o sistema financeiro. Nós temos que nos certificar que não estamos incentivando e permitindo modelos de negócios que causem danos à sociedade. A economia das informações privadas tem um modelo de negócios que depende da violação massiva e sistemática dos direitos à privacidade, e ele deveria ser criminalizado, tornado ilegal. Uma vantagem que nós temos é não estarmos sozinhos. Os Estados Unidos tiveram que regular os negócios dos Rockefeller por conta própria. Hoje, existem muitos países que querem regular as grandes empresas de tecnologia. Nós podemos unir forças. 

CC: É possível imaginar que ações individuais possam impactar o comportamento antiético de corporações, predadores digitais e governos mal-intencionados?

CV: Sim e não. A ação individual vai brecar o comportamento antiético dos governos e das Big Techs? Claro que não. Nós precisamos de regulação e não há nenhuma solução que não passe por isso. Ação individual pode ajudar e é imprescindível para pressionar governos a regular as Gigantes do Vale do Silício? Sim. Da mesma forma, a ação de indivíduos pode rapidamente se tornar uma ação coletiva quando há bilhões de pessoas por todo o mundo que estão cansadas de serem abusadas por estas grandes empresas. Por meio da resistência à vigilância, você pode proteger sua própria privacidade, a dos seus vizinhos, você pode mandar uma mensagem à empresas de que privacidade pode ser uma vantagem competitiva, dando ferramentas e razões para que os reguladores façam o seu trabalho. Não é a solução definitiva, mas é um passo importante para chegar à solução.

CC: Você e a professora Shoshana Zuboff, de Harvard, se tornaram as mais visíveis defensoras da ideia de banir a comercialização de dados pessoais coletados na internet. É um objetivo possível? 

CV: Sem dúvida é um objetivo possível. Tão possível quanto, digamos, acabar com o trabalho infantil ou atingir o sufrágio universal. Eu creio que a economia de dados, como ela é hoje, é absolutamente insustentável, parcialmente porque há um risco à segurança nacional que ela representa, parcialmente pelo risco econômico relacionado à crise financeira que ela causará, porque ela é uma bolha, e parcialmente porque ela fere valores sociais fundamentais como a igualdade. Quanto tempo vai levar para chegarmos lá? Eu não sei, mas depende até certo ponto do que acontecerá nos próximos anos.

Se a China for bem sucedida em proteger os dados pessoais de seus cidadãos, por exemplo, e o Ocidente perceber quão vulnerável nossa economia de dados nos torna em comparação, nós talvez possamos chegar lá mais rápido do que o esperado. Eu me mantenho otimista de que chegaremos lá. Eu só espero que nós sejamos espertos o suficiente para chegar lá antes de permitirmos que algo realmente ruim aconteça, como estes dados sendo usados para causar genocídios, por exemplo. Mas chegaremos lá, mais cedo ou mais tarde, exatamente como nós chegamos a esse ponto com outros setores da indústria no mundo offline.

CC: Em 2013, depois das revelações de Edward Snowden, a ideia de vigilância irrestrita estava limitada à tecnologia e recursos de países como os EUA e agências como a NSA. Hoje, temos empresas privadas vendendo tecnologia para governos radicais e instituições das mais diversas. Como voltar a cobrar a privacidade neste cenário?  Como você vê o nosso futuro?

CV: Nós resgatamos a nossa privacidade através da implementação de medidas como as que eu recomendo em Privacidade é Poder, tanto como indivíduos quanto como sociedade. O futuro próximo não é uma certeza. Como queremos que ele seja? Queremos uma democracia saudável ou nós queremos um estado de vigilância totalitário? Se quisermos o primeiro e não o segundo, nós temos que trabalhar por isso, lutar por isso, e estarmos dispostos a abrir mão de um pouco de conveniência para conseguir um futuro melhor. Nós temos que endireitar nossos valores. Democracia não é algo fácil e certo. É algo que deve ser construído e continuamente protegido. Nossos antecessores lutaram por seus direitos e pelos nossos direitos. É a tarefa do nosso tempo, da nossa geração, regular a economia de dados para preservarmos o nosso direito à privacidade. Privacidade realmente é poder.

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