Sociedade

100 mil mortes: O descaso de Bolsonaro e a dor de quem perdeu parentes para o coronavírus

Enquanto o presidente pede para tocar a vida, Rita Íris Pereira Silva perdeu a mãe e a irmã em um intervalo de quatro dias

Marieta comemorando o aniversário ao lado dos nove filhos. Sua filha Rosalina (à esquerda, de branco, encostada na parede), também foi vítima do coronavírus. Créditos: arquivo pessoal
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Ainda é muito difícil para Rita Íris Pereira Silva mexer em suas memórias recentes. Há três meses ela perdeu mãe e irmã para a covid-19, em um intervalo de quatro dias. Marieta Pereira da Silva, sua mãe, faleceu no dia das Mães, 10 de maio, aos 87 anos, após ser intubada e não resistir às complicações da doença. No dia 14 do mesmo mês, Rosalina Maria Pereira Chaves, sua irmã, veio a óbito aos 64 anos, também depois de ser intubada. As duas estavam internadas em uma unidade de pronto atendimento na cidade de Caxias, no Maranhão.

Rita ainda tenta elaborar o seu luto e enfrenta diariamente o fantasma da depressão com acompanhamento psicológico. “O mais difícil pra mim foi não poder vê-las e nem velá-las”, conta com a voz embargada. No dia em que Rita conversou com a reportagem de CartaCapital, 6 de agosto, seria o aniversário de sua mãe.

Ela conta que sua dor cresce à medida que aumentam as vítimas da pandemia. Neste sábado 8, o Brasil chegou ao total de 100 mil mortos, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa, formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S.Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, que reúne informações das secretarias estaduais de Saúde. O país alcança a marca quase cinco meses depois de confirmada a primeira vítima fatal pelo coronavírus.

O Brasil segue na vice-liderança dos rankings mundiais de mortes e de casos de covid-19, segundo contagem da Organização Mundial da Saúde (OMS). No topo, os Estados Unidos acumulam mais de 157 mil mortes e 4,7 milhões de infectados.

O estado de Rita, o Maranhão, na noite de sexta-feira 7 tinha mais de 128 mil casos de covid-19 confirmados. Ao todo, são mais de 3 mil óbitos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Fonte: Conass

Rita ao lado da mãe Marieta, vítima de coronavírus.

“É desesperador”, conta. “Eu tenho tentado evitar os noticiários. Porque só aumenta a minha sensação de descaso com os que sofrem dessa doença, até mesmo por parte da população. Parece que só quem passou por isso consegue dimensionar o tamanho do problema, a gravidade da situação que enfrentamos”.

Rita se refere à mãe como uma mulher séria, mas brincalhona e divertida entre a família. “Muito teimosa também”, acrescenta. “A lembrança que tenho mais viva dela foi há exato um ano atrás, no seu aniversário, a família inteira se reuniu, ela dançou, brincou, foi muito divertido”, relembra.

Já para a irmã, reserva o predicado “uma pessoa muito justa”. “Ela era alfabetizadora, amava o que fazia, sempre tinha uma história a contar das crianças que alfabetizava”, conta.

As histórias de Marieta e Rosalina também foram contadas pelo projeto Inumeráveis. A iniciativa criou um memorial para resgatar as histórias de cada vítima da covid-19 a partir das memórias de seus familiares e, assim, afastá-las da lógica estatística diária.

“Tocar a vida”

A dor de Rita e dos milhares de brasileiros que perderam parentes parece não sensibilizar o presidente Jair Bolsonaro. Na última quinta-feira 6, em uma live no Facebook, o presidente voltou a insinuar que o número de mortes por coronavírus no País pode ter sido inflado. Sem citar a fonte das informações, o presidente disse saber de casos em que médicos apontam o coronavírus como a causa de óbitos mesmo em casos não confirmados.

Na ocasião, Bolsonaro, que estava acompanhado do ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, reforçou que lamentava as mortes, “mas vamos tocar a vida e tentar achar uma maneira de se safar desse problema”.

No vídeo, o presidente também elogiou Pazuello. Questionado se as mortes no País em decorrência da pandemia poderiam ter sido evitadas, o ministro disse que vê como “piores práticas” pelo País “os tratamentos focados em UTI e a recomendação para que pacientes procurassem as unidades de saúde apenas quando ficassem mal”, declarou.

O ministro defendeu o “atendimento imediato”e a ampliação da pasta para o uso de medicamentos como a cloroquina e hidroxicloroquina, que passaram a ser indicadas para casos leves, moderados e graves. Em julho, a Organização Mundial da Saúde anunciou o fim definitivo dos estudos com as substâncias para tratamento do coronavírus por falta de comprovação científica.

Já o presidente reforçou que as mortes poderiam ter sido evitadas com o uso da cloroquina, ivermectina e anita, um tipo de vermífugo

Morte e luto na pandemia

Para o doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Thiago Nagafuchi, a pandemia e seu elevado número de vítimas têm potencial de se tornar um trauma social com reflexos nas próximas gerações.

“A morte é um evento caótico da vida. Já um evento crítico da escala da pandemia tem potencial de se tornar um trauma social até para as próximas  gerações. São mais pessoas enlutadas, adoecidas e com medo. A pandemia tem mudado, de formas imperceptíveis ou não, a relação que temos com a tecnologia, a ciência, a divulgação de informações, nossas visões políticas e, certamente, nossa relação com a morte. Devemos lembrar que a morte é um evento violento, que nos subtrai do mundo. Por mais que seja natural, bagunça nossos afetos porque somos seres de afetos”, explica.

O pesquisador ainda explica como o número excessivo de mortes traz desafios de várias naturezas para o País. “Também podemos falar de mudanças materiais. Vale lembrar que alguns cemitérios surgiram por conta de epidemias diversas, a morte também altera a paisagem visível e demanda políticas públicas específicas, à medida que, por exemplo, pode gerar contaminação em lençóis freáticos ou, ainda, aumentar a proliferação de outras doenças, por conta de insetos e bactérias. Portanto, um evento com número de mortes expressivo traz mudanças de diversas naturezas”, avalia.

“Devemos lidar com as questões psicológicas e individuais (por exemplo, é provável que o número de tentativas de suicídios – e outras mortes relacionadas ao excesso de mortalidade – aumente), mas também devemos lidar com as questões sanitárias, como novos cemitérios, novas valas, necrotérios lotados, corpos espalhados pelas ruas (como aconteceu em alguns lugares), que vêm a reboque da falta de infraestrutura hospitalar e de serviços funerários em um evento de tão grande porte. Enfim, a pandemia mudará, certamente, a forma como lidamos com a morte, mas só teremos uma imagem menos borrada de quanto e como será essa mudança conforme o tempo for passando”, completa.

 

Ele também reconhece que as pessoas que sofreram perdas em meio à pandemia terão mais dificuldades de elaborarem seus lutos, ainda mais pelo distanciamento com os rituais simbólicos de despedida, dados os riscos de contaminação.

“A pandemia tirou boa parte dos ritos fúnebres, impedindo velórios, o caixão aberto, e permitindo somente enterros rigorosamente cronometrados – e é importante frisar que não só pelos mortos da covid-19, as pessoas continuam morrendo por outros motivos, e isso impacta praticamente todas as mortes desse período. E, mais que isso, com um ente querido internado perto do fim da vida, as pessoas iniciam seu processo de despedida no hospital, nas rápidas visitas nas UTIs. A pandemia também tirou isso. Sem essa demarcação por meio do ritual, como fica o processo de luto?”, questiona.

“Embora as reações sejam individuais e dependam de diversos fatores, ouvi relatos de pessoas que duvidavam que seu familiar estivesse dentro do caixão, ou ainda, que suspeitavam que tivessem enterrado uma pessoa estranha no lugar. A visão de uma pessoa querida, morta, dentro de um caixão, é sem dúvida devastadora, mas é parte inerente dos processos de luto e despedida em relação ao nosso entendimento ocidental da morte. Ainda serão necessárias pesquisas para entender como se dará o luto das pessoas que perderam entes queridos pela covid-19. Porém, de imediato, é possível dizer que serão lutos mais difíceis e demorados, com processos mais complexos, fortemente marcados no cotidiano, justamente por conta da perda desses rituais que são importantes”, esclarece.

Nagafuchi ainda comenta outro potencial da pandemia que é o de fazer com que as pessoas acabem naturalizando o expressivo número diário de mortes. “Muitas vezes, estamos lidando com a morte do Outro. Os números que são divulgados todos os dias não têm rostos e, numa análise cada vez mais fria, para muita gente, acabam se tornando apenas valores. Vemos que morrem mais de mil pessoas todos os dias, mas se não tem ninguém conhecido na lista de mortos, as pessoas podem esquecer dos perigos e do grande potencial destruidor da pandemia – não que seja necessário perder alguém ou adoecer para entender isso. Mas sim, essa exposição diária colabora com a normalização e, portanto, há um distanciamento cada vez maior da morte. Evidente que também pesa o fato da morte ainda ser um tabu, e de não termos uma educação para ela, o que faz com que vivamos a escondendo. Isso também implica na forma como a imprensa, a ciência, as estatísticas, etc tendem a reduzir a pandemia a um modelo matemático composto de gráficos e números”, observa.

O pesquisador não deixa de avaliar as narrativas de líderes governamentais que, “em nome da economia não pode parar”, também vão contribuindo para uma percepção equivocada de bem-estar. “Contudo, isso tem um efeito perverso que deixará sérias consequências sociais, uma vez que a pandemia do novo coronavírus, que chegou primeiro em uma população de classe média alta, agora aflige mais diretamente quem sempre esteve às margens. A epidemia tem uma correlação com os marcadores sociais, ela mata mais quem está nas periferias, mais a população pobre e negra. Se colocamos um enfoque teórico, seja da biopolítica ou da necropolítica, essas mortes são ainda mais distantes, ao passo que a morte deste Outro, marcado socialmente, tem menos impacto na criação de políticas de enfrentamento da pandemia”, conclui.

A pandemia por estado

O Maranhão ocupa a sétima posição entre os estados com mais casos de covid-19 confirmados. Números do Conass mostram que São Paulo é o líder, seguido por Bahia, Ceará e Rio de Janeiro. Nos últimos dias, a média móvel de novas mortes no Brasil foi de 1.019 óbitos.

Fonte: Conass

Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte apresentaram nos últimos dias alta no número de mortes.

Já Paraná, São Paulo, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Acre, Amazonas, Roraima, Tocantins e Bahia estão em estabilidade, ou seja, o número de óbitos não caiu nem subiu significativamente.

Por fim,  as mortes no Espírito Santo, Rio de Janeiro, Amapá, Pará, Rondônia, Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Sergipe estão em queda.

Fonte: Conass (Última atualização foi feita na sexta-feira 7)

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