Saúde

Vacina de Putin dificilmente será aceita fora da Rússia, diz médico

Gonzalo Vecina analisa o anúncio da vacina russa Sputnik V contra a Covid-19 e traça um painel da evolução da pandemia no Brasil

Foto: Divulgação Créditos: divulgação
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O médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), Gonzalo Vecina Neto analisa em entrevista à RFI o anúncio da vacina russa Sputnik V contra a Covid-19, denuncia o “crime de lesa-humanidade” do governo brasileiro contra as “comunidades quilombolas e indígenas” e traça um painel da evolução da pandemia para os próximos meses no Brasil.

RFI: Qual é a sua opinião sobre o anúncio da terça-feira 11 do presidente russo, Vladimir Putin, da vacina “Sputnik V” contra a Covid-19?


Gonzalo Vecina Neto:
Um medicamento é utilizado para tratar pessoas doentes. Uma vacina é utilizada em pessoas sãs. Então os cuidados para se aprovar uma vacina são muito mais exigentes do que aqueles para aprovar um medicamento. Um dos cuidados fundamentais é que os dados produzidos sobre investigações têm que ser colocados à disposição da comunidade científica para serem criticados. No caso da vacina da Rússia, nenhum desses cuidados foi tomado. Ela está sub-júdice até que os dados produzidos durante a fase de pesquisa clínica e na fase pré-clínica sejam divulgados e submetidos ao conhecimento científico. Se os russos vão aceitar essa vacina, o problema é deles. Fora da Rússia, muito dificilmente essa vacina será aceita. Nós sabemos qual o risco de se morrer de Covid, mas não sabemos qual o risco de se morrer de uma vacina cujo grau de segurança e eficácia desconhecemos.

RFI: Segurança do ponto de vista da transparência dos protocolos de pesquisa?


GN:
No caso de um medicamento, é preciso conhecer quais são os efeitos colaterais que ele produz. Não existe medicamento sem efeitos colaterais. Fui presidente e criador da Anvisa, a agência nacional de vigilância sanitária do Brasil. Uma vacina tem que ser, antes de qualquer coisa, segura. Isso tem que ser demonstrado. Ela não pode ter efeitos colaterais que sejam piores do que os efeitos produzidos pela doença. Nós estamos falando de uma doença, a Covid-19, que tem uma letalidade relativamente baixa. Ela tem um impacto muito grande na sociedade porque tem uma capacidade de transmissibilidade muito grande. Os testes de segurança da vacina russa são desconhecidos. Enquanto não conhecermos os testes de segurança, não dá para assumir a vacina russa.

RFI: A imprensa brasileira chegou a mencionar possíveis parcerias do Brasil para fabricar a vacina russa…


GN:
Até onde eu sei, a Fundação Oswaldo Cruz não tem nenhum interesse em se comprometer com essa vacina. O Instituto Butantan já divulgou que não vai produzir a vacina russa. Nós temos duas fábricas de vacinas estatais no país, o Butantã e a Fundação Oswaldo Cruz. Não existe outra fábrica com essa capacidade no Brasil. E a iniciativa privada não tem tradição de produzir vacinas aqui. Nenhuma fábrica nacional ou internacional instalada no Brasil tem capacidade de produção de vacina.

RFI: O que se sabe de fato sobre a vacina russa?


GN:
Apenas o que permitiram que fosse publicado. Ela foi testada em militares russos voluntários e mais nada… Sabemos que esses militares ficaram confinados e que, ao final dos testes, saíram “todos vivos e andando”, há fotos que mostram… Temos que ter muito cuidado ao criticar qualquer coisa nestes tempos de Covid, que são muito complexos, mas temos que ser rigorosos.

RFI: O Brasil ultrapassou recentemente o marco dos 100.000 mortos. Como você vê esse momento brasileiro, num contexto de pandemia?


GN:
É importante a gente lembrar de algumas coisas. Por exemplo, não são cem mil mortos. Provavelmente, são 130 mil mortos. Não estão notificados aí um grande número de mortes de síndrome respiratória aguda grave que certamente fazem parte da Covid. Nós sabemos disso comparando os números de 2018, 2019 e 2020 por síndrome aguda respiratória. Esses óbitos poderiam ter sido entre 20% a 30% menores se o governo federal tivesse comandado esse país federativo no sentido do isolamento social, com uma proteção social maior. 60% da população brasileira vive da economia informal, e a economia informal, quando a formal para, se destrói.

A proteção social tardou a chegar para os pobres poderem ter acesso à comida. Pobre só tem acesso à comida andando, correndo atrás da comida todos os dias, e é desse maneira que se contaminam. A prevalência dessa doença entre os semialfabetizados, com baixo nível de vida, negros e pardos, é cinco a seis vezes maior do que no resto da população. Esse é um fenômenos que vimos também em Nova York. E existem grupos de risco no Brasil que estão absolutamente desprotegidos, como os quilombolas e os índios. Em Dourados, no Mato Grosso do Sul, no Xingu, no Amazonas, em Roraima, o Estado brasileiro permitiu a entrada de madeireiros, mineiros, e estes elementos estão levando a epidemia para os índios, que são absolutamente desprotegidos do ponto de vista imunológico. É um crime de lesa-humanidade o que está acontecendo no Brasil.

RFI: Como você vê hoje a evolução da Covid-19 no Brasil, para os próximos meses?


GN:
Essa doença desbanca os donos de bola de cristal. Eu não vou tentar enxergar muito longe, eu diria que mantidas as mesmas condições de hoje, espero que aconteça nos próximos quatro meses o que houve nos quatro meses anteriores. No entanto, em algumas localidades do Brasil, como Manaus, temos feito estudos de soroprevalência, utilizando os doadores de sangue. O banco de sangue de Manaus tem uma soroprevalência de 50% em maio, entre doadores de 18 a 60 anos. Ou seja, metade da população de Manaus testou positivo para a Covid-19. Provavelmente, no Amazonas, estamos perto de uma imunidade coletiva em relação, por exemplo, a São Paulo, onde temos uma soroprevalência de cerca de 10%. O Brasil é um país muito grande, vamos ter diferentes realidades.

Neste momento, temos a doença avançando em oito estados, em decréscimo em 10 estados e mantida num pico elevado no restante do país. Acho que a doença vai continuar, porque existe muita gente que não saiu para a rua, como a população escolar. Entre alunos, professores e trabalhadores da educação temos cerca de 60 milhões de pessoas. Se voltarem as aulas, uma boa parte desses 60 milhões voltarão a circular e certamente haverá um repique de casos. Como será esse repique, ainda não sabemos…

Paraná e Rússia devem assinar acordo

O governo do Paraná pode fechar um acordo de produção de vacina contra o coronavírus com a Rússia nesta quarta-feira 12.

O governador Ratinho Jr. (PSD) irá se encontrar com o embaixador russo Sergey Akopov para discutir os termos de compartilhamento de tecnologia da Sputnik V.

Em nota, o governo do Paraná afirmou que “está em tratativas com a Embaixada da Rússia no Brasil para participar do desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19” e que, no momento, “as negociações prosseguem entre as partes”.

“O encontro é para definir os termos de um possível acordo entre as partes. O Governo do Estado reforça que o Instituto Tecnológico do Paraná (Tecpar) é um órgão com capacidade técnica para participar do processo.”, diz a nota.

OMS e a Sputnik V

No dia em que a Rússia anunciou a produção de uma vacina para combater o coronavírus, a OMS afirmou que precisaria acessar os dados da pesquisa do Instituto Gamelaya para avalizar a eficácia e segurança da mesma, mas que o país poderia registrar o imunizante mesmo sem o aval da entidade.

Pelo último registro da OMS, do dia 31 de julho, os russos ainda estariam na fase 1 do desenvolvimento, e seria preciso completar a fase 3 para ter certeza de que ela pode ser administrada na população sem riscos à saúde.

Fases da vacina

A produção de uma vacina segue as seguintes etapas:

  • 1a fase: avaliação preliminar da segurança do imunizante, feita com número reduzido de voluntários. Com ela, entende-se qual é o tipo de resposta que o imunizante produz no corpo. Ela é aplicada em dezenas de participantes do experimento.
  • 2a fase: estudo clínico ampliado, conta com centenas de voluntários. A vacina é administrada a pessoas com características (como idade e saúde física) semelhantes àquelas para as quais a nova vacina é destinada. Nessa fase, é avaliada a segurança da vacina, imunogenicidade (ou a capacidade da proteção), a dosagem e como ela deve ser administrada.
  • 3a fase: ensaio em larga escala, com milhares de indivíduos. É preciso fornecer uma avaliação definitiva da sua eficácia e segurança em populações maiores. Além disso, feita para prever eventos adversos e garantir a durabilidade da proteção. Apenas depois dessa fase é que se pode fazer um registro sanitário.

Outras vacinas

Em julho, pesquisadores da Universidade de Oxford anunciaram que as primeiras fases de testes da vacina contra o coronavírus conseguiram identificar a criação de anticorpos contra o Sars-Cov-2 e a criação de células-T para combater a infecção.

A notícia foi publicada na revista médica britânica The Lancet e traz detalhes sobre a resposta imunológica da vacina em desenvolvimento, que tem parte da terceira fase – a de testes – sendo realizada no Brasil.

Nessas fases, 1077 adultos participaram, diz a Universidade de Oxford, que desenvolve a vacina em parceria com o laboratório farmacêutico AstraZeneca. Segundo os pesquisadores, a resposta imunológica apareceu com mais força após 56 dias do início dos testes e a aplicação de mais uma dose da vacina testada.

Também foram identificados os possíveis efeitos colaterais do fármaco, que, segundo indicam as pesquisas, seriam menores do que os das vacinas contra meningite, por exemplo. Dores de cabeça e fadiga foram sintomas apontados pelos voluntários.

Assim como os anticorpos, as células-T também reconhecem organismos invasores por meio de proteínas contidas no material genético do vírus, mas, nesse caso específico, há o reconhecimento e destruição das células infectadas pelo vírus. As células-T, segundo a pesquisa, atingiram o pico no corpo a partir do 14º dia após a primeira dose da vacina, e não se alterou com uma segunda aplicação.

No Brasil, a Coronavac, vacina contra a covid-19 produzida pelo laboratório chinês Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan, também começou a ser testada.

Segundo o Instituto, caso os testes comprovem a eficácia do imunizante, 60 milhões de doses iniciais estarão disponíveis para o Brasil até o final deste ano e serão distribuídas gratuitamente pelo SUS até junho de 2021.

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