Saúde

“Opinião não resolve, precisamos de dados”, diz pesquisador da cloroquina

À frente da maior pesquisa com o medicamento no Brasil, o médico Alexandre Cavalcanti recomenda cautela

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Existem hoje no Brasil, seis ensaios técnicos com a cloroquina, uma antiga droga contra a malária apontada como estrela do combate ao coronavírus. No Brasil, seu maior embaixador é o presidente Jair Bolsonaro. Inspirado em Donald Trump, o ex-capitão tem defendido o uso indiscriminado do remédio. Sua militância virtual acusa céticos e divergentes de “defender o vírus”.

A pressão do Planalto fez com que o ministro Luiz Henrique Mandetta afrouxasse os protocolos para uso o droga, antes restrita aos doentes em quadros graves de covid-19. Médicos e cientistas não compartilham do mesmo ânimo. “Efetivamente, ainda não há prova alguma de que funciona“, diz o chefe do Instituto de Pesquisa do HCor Alexandre de Biasi Cavalcanti, à frente da maior pesquisa em andamento com o composto no Brasil. 

O programa, batizado Coalizão COVID Brasil, reunirá 1.300 pacientes e mais de 70 centros de saúde em todo o Brasil. Lideram, além do HCor, os hospitais Albert Einstein, Sírio Libanês, Moinhos de Vento, Oswaldo Cruz, Beneficência Portuguesa e a Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva.

Para Biasi, a defesa da cloroquina por médicos renomados não alivia a realidade: faltam estudos consistentes que comprovem sua eficácia. “Opinião de expert, sozinha, não resolve nada”, explica. “Um exemplo: a Itália usa sistematicamente a hidroxicloroquina. E a taxa de letalidade do país é altíssima. Acho extremamente irresponsável falar em cura.” Confira a entrevista:

CartaCapital: Em que estágio de pesquisa estamos?

Alexandre Cavalcanti: Ainda nos estágios iniciais. Já passamos da fase de escrever o projeto, discuti-lo entre as instituições parceiras, aprovar na Comissão Nacional de Ética e Pesquisa e na Anvisa, da parceria com a empresa que vai doar o medicamento. E iniciamos inclusão de pacientes.

São vários estudos. Além da hidroxicloroquina, temos estudos com a hidroxicloroquina, com a azitromicina, com a dexametasona, vamos iniciar estudos com um outro medicamento chamado tocilizumabeOs estudos de hidroxicloroquina estão sendo feitos em pacientes internados com infecção leve ou moderada. Em geral, são pacientes que não estão nas UTIs, e não precisam de oxigênio. Nesses pacientes, a hidroxicloroquina tem tido alguma eficácia.

Em outros tempos, ninguém daria a mínima ao trabalho francês que deu fama à cloroquina 

CC: Este é um bom sinal, não?

AC: É importante lembrar que, ao contrário do que tem falado algumas personalidades, que nem sempre são médicos ou pesquisadores, é que não há nenhuma prova da efetividade clínica da hidroxicloroquina. Nada confiável de que comprove um efeito benéfico para pacientes com covid-19. Essa pandemia fez crescer a defesa do medicamento fora da esfera clínica. Mas, efetivamente, não prova alguma de que ele funcione. 

CC: Nesse cenário, não é arriscado expor pacientes a esses testes como ‘cobaias’?

AC: Todos os medicamentos que existem, toda a cirurgia que é feita, é feita porque houve estudos. Os pacientes estão sendo assistidos e tratados, essa é a forma ética e correta de fazer o estudo. Cobaias mesmo são esses pacientes que recebem o medicamento fora da pesquisa. É lamentável que isso ocorra. Temos certeza que há um efeito deletério, como em todo medicamento.

2%, 5%, 10%… Algumas pessoas sempre vão pagar o preço por utilizar esse medicamento. Não sabemos dizer quem, mas alguns vão pagar. A maneira ética e correta de fazer isso é avaliando os efeitos de forma sistemática e estruturada. Cada paciente é reavaliado e, se houver prova de que há malefícios, o estudo é interrompido. Isso é completamente diferente do uso indiscriminado da cloroquina. 

Foto: Tchelo Figueredo/Fotos Públicas

CC: Como tem acontecido na Prevent Senior?

AC: Até onde sei, eles oferecem o uso a todos os pacientes. Não é uma pesquisa convencional, não há um grupo de controle. O cenário da covid-19 é totalmente inédito. Só 5% dos casos evoluem para o estágio mais grave. Ou seja, 95% dos pacientes sequer vão precisar de UTI. E que bom!

Entre os que precisam de UTI, mais da metade terão um desfecho mais grave, podendo chegar a óbito. Se esse paciente sobrevive, você diz que foi por causa do medicamento. Se ele morre, a culpa é da covid ou do medicamento? Sem grupo de controle, você não consegue fazer essa afirmação. Não consegue. Não dá pra dizer se funciona ou não.

Um exemplo, a Itália usa sistematicamente a hidroxicloroquina para pacientes com covid. E a taxa de letalidade do país é altíssima. Acho extremamente irresponsável falar em cura. Não digo que o tratamento lá é inadequado, mas afirmar que aquilo vai salvar a vida das pessoas quando lá dentro ocorreram ⅓ dos óbitos de todo o estado de São Paulo… É muito perigoso propagandear efeitos positivos quando os resultados que enxergamos não são tão brilhantes assim.

CC: Há mais de 200 ensaios clínicos acontecendo no mundo todo. Mas a cloroquina é, de longe, a promessa mais comentada. Por quê?

AC: As pessoas estão muito assustadas com o que está acontecendo. Estão buscando soluções, correndo contra o tempo. Esse trabalho francês [do médico Didier Raoult], o grande fomentador da coisa toda, foi um trial (teste) que em outros tempos as pessoas não dariam a mínima. Não tem grupo de controle adequado, não é randomizado… 

Hoje, se valoriza muito mais fontes de informação e evidências pouco confiáveis. Até em periódicos médicos. O editor de um periódico busca notoriedade. Em outros tempos, passaria-se por um mecanismo de revisão por pares mais rigoroso. Não daríamos tanto valor a esse tipo de informação. Não daríamos nenhum valor. Mas os tempos são outros, e a comunidade médica agora valoriza isso. 

CC: E na política?

AC: O que tá acontecendo do ponto de vista econômico é uma catástrofe. Eu entendo que os políticos se apeguem a essa ideia de medicamentos milagrosos. Mas os argumentos não são técnicos. Opinião de expert, sozinha, não resolve nada. Precisamos de dados consistentes.

CC: Em quanto tempo teremos resultados consistentes dos estudos no Brasil?

AC: Em outros tempos, um estudo deste tamanho levaria anos. Mas não temos esse tempo agora. Estamos pensando em soluções para acelerar esse processo. Dentro de três meses, talvez, dois, saberemos se o medicamento funciona, quais os efeitos, quais os efeitos adversos. 

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