Saúde

Ministério da Saúde contrata grupo empresarial acusado de fake news para monitorar covid-19

Talktelecom, investigada por disseminar notícias falsas, opera programa que realizará 120 milhões de ligações para mapear covid-19 no país

Foto: Terimakasih0/Creative Commons / Pixabay
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Por Diego Junqueira

Grupo de telefonia acusado de fazer ataques via telemarketing em eleições de 2012 e 2014, e investigado por explorar consumidores, fechou contrato de R$ 46,8 milhões com Ministério da Saúde, sem licitação, para operar serviço de pesquisa telefônica do SUS. Operadora já foi multada oito vezes pela Anatel, em R$ 7 milhões

Não são as cifras bilionárias das ações do governo para combater a covid-19 que vêm acendendo o alerta de especialistas em orçamento público. É a falta de transparência. Do total de R$ 55 bilhões destinados à crise do coronavírus, R$ 2,7 bilhões referem-se a compras sem licitação do Ministério da Saúde, incluindo um contrato milionário com um grupo de telefonia com histórico de má gestão com o poder público.

Por R$ 46,8 milhões, o Ministério da Saúde contratou para gerenciar o sistema de telefonia que monitora a saúde da população um grupo empresarial investigado por explorar consumidores na TV e manipular eleitores fluminenses. Primeiro em 2012, quando espalhou notícias falsas na votação municipal, e depois em 2014, ao ser acusado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ) de praticar ataques via telemarketing contra os candidatos ao governo Lindbergh Farias (PT) e Marcelo Crivella (PRB).

A Talktelecom, que ganhou o contrato, pertence aos mesmos sócios da operadora de telefonia Falkland/IPCorp, que tem no currículo oito multas da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), no valor de R$ 7 milhões, por falhas na prestação de serviço. O Procon de São Paulo também já autuou a empresa em três ocasiões, em R$ 194 mil. Nos últimos quatro anos, a IPCorp foi alvo de 6.500 queixas de consumidores na página do Reclame Aqui.

Com apoio da IPCorp, a Talktelecom está operando desde 1º de abril a “Busca Ativa” do TeleSUS, programa federal que vai realizar 120 milhões de ligações telefônicas automáticas para mapear possíveis casos de covid-19 no país e facilitar ações de vigilância.

O contrato, sem licitação, foi fechado com base na lei 13.979/2020, que estabelece as regras de contratação durante o estado de emergência e determina a divulgação de todos os acordos. Embora o Ministério da Saúde esteja publicando a lista de contratos desse período, não há detalhes sobre a participação de outras empresas em concorrências nem os motivos que levaram à escolha dos vencedores.

“Essa transparência é superficial. Não basta lançar o contrato com a empresa vencedora. Tinha que ser divulgado as empresas consultadas, os preços que elas ofertaram e o porquê da empresa escolhida. Todas as fases desse processo deveriam ser detalhadas, mesmo porque estamos falando de valores extremamente elevados”, diz o pesquisador Gil Castello Branco, da associação Contas Abertas, que monitora o orçamento público.

Foi por meio de um contrato de urgência que o Ministério da Saúde adquiriu, em março, R$ 700 mil em aventais hospitalares de uma empresa que financiou a campanha eleitoral do então ministro Luiz Henrique Mandetta. A empresa é de Campo Grande (MS), reduto eleitoral do político.

Como a pandemia do novo coronavírus é uma situação inédita para gestores e funcionários públicos, há dificuldades para divulgar as informações com rapidez, reconhece o diretor-executivo da organização Transparência Brasil, Manoel Galdino. Ele cobra, porém, transparência do governo e detalhes sobre as transações, para que as compras sejam avaliadas pelos órgãos de controle. “Não só porque pode ter corrupção, mas porque a empresa pode prestar um serviço ruim”, diz.

Questionado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde não informou se outras empresas disputaram nem os motivos que levaram à contratação da Talktelecom. “Diante da possibilidade do sistema de atendimento presencial sofrer esgotamento, são ofertadas para os cidadãos estratégias alternativas, com escala e mediadas por soluções tecnológicas”, afirmou a pasta por e-mail.

Mescla de jogo de azar e publicidade enganosa

Um dos ramos de atuação da IPCorp é a parceria com produtoras de TV em programas de “quiz televisivo”, popularizadas como “encontre o erro” – e investigadas pelo Ministério Público de São Paulo. Por telefone, telespectadores tentam participar da atração para acertar a pergunta principal e levar o prêmio em dinheiro.

Na prática, porém, o serviço é utilizado para aumentar a conta telefônica dos espectadores e elevar o ganho das empresas. Isso porque, segundo a Promotoria de Justiça do Consumidor, o software da IPCorp fazia perguntas aos telespectadores para mantê-los na linha pelo maior tempo possível, sem que chegassem a participar efetivamente do quiz.

“Tudo isso aliado a um custo por minuto muito elevado”, destaca a ação do MP-SP, que classificou a atração como uma mistura de “jogo de azar com publicidade enganosa”. O programa estimulava o uso do código de operadora da IPCorp, cujo valor por minuto chegava a ser seis vezes superior ao das concorrentes.

Um software semelhante faz as ligações do TeleSUS, com perguntas preestabelecidas pelo Ministério da Saúde a respeito do estado de saúde das pessoas. “Fizemos um algoritmo que faz disparo de ligações para 125 milhões de brasileiros. Esses disparos estão ligados em um grande data center, que irá nos ajudar a antecipar o nome das pessoas, onde elas estão, se são grupo de risco, com quem convivem. É como se fosse uma consulta, por meio de uma voz artificial, que vai fazer uma triagem”, afirmou em 31 de março o então ministro Luiz Henrique Mandetta sobre a ligação gratuita do governo, cujo número que aparece no identificador é o 136.

Até o momento, 11 milhões de pessoas já passaram pela triagem, das quais 686 mil estão sendo monitoradas. “O serviço viabiliza a implantação de estratégias automatizadas, como a busca ativa para identificar antecipadamente pessoas vulneráveis com sinais de covid-19, através do disparo de ligações com atendimento automatizado para encontrar possíveis casos e monitoramento à distância das pessoas em isolamento”, informou o ministério à Repórter Brasil.

Marketing negativo e má gestão

Os problemas relacionados ao grupo IPCorp não se resumem a práticas de exploração de consumidores na TV. O software de pesquisa por telefone desenvolvido pela IPCorp também foi utilizado nas campanhas eleitorais de 2012 e 2014 para espalhar notícias falsas sobre candidatos do PP, PRB e PT. Em 2012, o TRE-RJ identificou 50 mil ligações com notícias falsas no dia da votação para eleitores de Itaboraí, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O tribunal chegou a cassar o prefeito eleito, que se manteve no cargo por decisões liminares de tribunais superiores.

Já na campanha de 2014 ao governo estadual do Rio, os então candidatos Marcelo Crivella (PRB) e Lindbergh Farias (PT) denunciaram os dois sócios da IPCorp ao TRE por realizar marketing negativo contra suas candidaturas e em favor de Luiz Fernando Pezão (MDB), eleito na ocasião. O TRE absolveu no ano passado o ex-governador e os sócios da empresa.

Além disso, em março, a própria Talktelecom não teve renovado o contrato com o governo do Rio de Janeiro para gerir o software de gestão de crédito consignado. Segundo a Casa Civil do estado, a empresa “não atendeu às demandas do serviço de forma satisfatória” e deixou de cumprir “inúmeros” termos do contrato.

Apesar do histórico, as empresas não são impedidas de contratar com o poder público. A Talktelecom diz que sua área de atuação é distinta à da IPCorp, embora ambas pertençam ao mesmo grupo. Afirma também que as multas do Procon-SP são “irrisórias” e que as sanções da Anatel são questionadas na Justiça.

Com relação às denúncias de ataques eleitorais, a empresa diz que não foi considerada culpada pelo TRE-RJ. E sobre a investigação do MP-SP, diz que “a Falkland foi mencionada na ação porque as linhas da operadora foram contratadas e utilizadas por clientes” e que “não tem conhecimento ou interferência sobre o conteúdo das chamadas”.

Além das contratações sem licitação, outro problema apontado por especialistas é a falta de uma base de dados unificada com todos os gastos do Ministério da Saúde. O painel de compras do governo federal informa gastos de R$ 219 milhões em compras sem licitação. A própria pasta, no entanto, detalha que as aquisições desse tipo já passam de R$ 2,7 bilhões. Já o Tesouro Nacional, que lançou na semana passada um site para divulgação dos dados, aponta que o ministério já gastou mais de R$ 5,2 bilhões na pandemia.

“Na época da Copa do Mundo, houve uma tentativa de se controlar as despesas, que não chegaram a R$ 30 bilhões, e mesmo assim ocorreram desvios na construção dos estádios. Hoje já são R$ 226 bilhões [em gastos autorizados], e certamente isso vai se aproximar de R$ 300 bilhões. Difícil imaginar como esse processo de controle vai acontecer”, diz.

O estado de emergência por conta da pandemia abriu brecha também para a aquisição de medicamentos sem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e para compras acima do preço-teto autorizado pela agência. O Tribunal de Contas da União está autorizando as transações em caráter temporário.

O caso mais emblemático envolve a imunoglobulina humana, usada no tratamento de vários doenças para reforçar o sistema imunológico de pacientes. Após uma liminar da Justiça Federal impedir a compra do produto pelo Ministério da Saúde por preço acima do permitido por lei, a Advocacia-Geral da União recorreu e, com base na urgência provocada pela pandemia, a Justiça autorizou a aquisição. Desde o segundo semestre de 2019, o ministério vem enfrentando dificuldades para comprar esse medicamento.

Além da compra acima do preço-teto da Anvisa, o TCU autorizou a compra de imunoglobulina de duas fabricantes asiáticas que não possuem registro na agência brasileira nem o certificado brasileiro de boas práticas. A decisão foi criticada pela Associação Brasileira de Alergias e Imunologia e por representantes da indústria farmacêutica nacional. O Conselho Nacional de Saúde, por outro lado, afirmou que essa é a saída “possível” no momento para evitar o desabastecimento da rede.

“Estamos vivendo um momento totalmente atípico, seja pelo volume dos gastos, pela velocidade em que ocorrem, pelos preços atípicos e pela falta de licitações. A forma de diminuir os riscos desse processo é dar a maior transparência possível”, diz Castello Branco.

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