Saúde

“Merecemos arriscar a vida para vender planos de celular?”

Na Coreia do Sul, um call center provocou um salto nos casos de Covid-19. Por lá, foram confirmadas mais de 90 contaminações em uma empresa

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Muita gente trabalhando junta. A poucos centímetros de distância. E compartilhando de tudo: mesa, cadeira, computadores, microfones, fones de ouvido… Os call centers são o cenário perfeito para a proliferação do novo coronavírus. Apesar das medidas draconianas necessárias à contenção da doença, locais como o descrito acima continuam operando em plena capacidade. CartaCapital ouviu funcionários do ramo de todo o país. Em comum, além da jornada extenuante, e pressão por metas, um duplo temor: contrair a doença e perder o emprego. 

Rodrigo*, de 19 anos, trabalha em uma sucursal da empresa AeC em Montes Claros (MG). Divide o espaço com outros 1200 funcionários. A sede fica no subsolo de um shopping, e não há saída natural de ar. Como só tem vinte minutos para o almoço, os funcionários acabam amontoados em uma cantina. Ele e os colegas também relatam encontrar máquinas empoeiradas, ainda com lixo e lidar com racionamento de álcool em gel. “Nossa rotina é muito mecânica. Eu não vejo limpeza, mas ele dizem que estão fazendo.” 

Após uma visita da Vigilância Sanitária, houve adequações. Em nota enviada a CartaCapital, a AeC diz ter posto em prática um “rigoroso protocolo de ação baseado nas recomendações dos órgãos oficiais de saúde nacionais e internacionais”, como isolar bebedouros e esterilizar o ambiente durante a madrugada e alocar os funcionários em estações de trabalho alternadas.  Os trabalhadores exigem mais. Rodrigo rebate: “Essa espaçamento é feitos descontando horas extras. E ninguém tem banco pra ficar nem uma semana descontando. Esse ritmo só vai se manter se eles nos liberarem de fato”.

Porta de entrada de muitos brasileiros com qualificação mais baixa no mercado de trabalho, o setor emprega hoje mais de 1 milhão de pessoas, segundo estimativas do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações. A maioria ganha um salário mínimo. A rotatividade é altíssima: 60% dos postos de trabalho se renovam em um ano. A categoria é dividida em três grandes ramos. As operadoras de telefonia móvel, os prestadores de assistência técnica (como internet e TV a cabo) e os serviços de telemarketing. Esses últimos são os mais vulneráveis, pois são quase sempre terceirizados, atendendo empresas de dentro e fora do país. 

É o caso da americana Conduent, que mantém mais de 200 funcionários. A sede fica em São Paulo, em um prédio em que a empresa oferece suporte técnico a uma gigante da tecnologia que fechou todas as suas lojas no mundo mas, nos bastidores, exige que as terceirizadas continuem prestando serviços. “Por não ter mais filial funcionando na Europa, eles nos colocaram pra atender os clientes de Portugal. Sem treinamento, sem bonificação, sem aviso, sem nada”, relata um funcionário brasileiro que preferiu não se identificar.” Segundo ele, há pressão por resultados e trabalho presencial, mesmo que haja casos suspeitos de Covid-19 no prédio. “Disseram que a empresa é mais segura que a casa de muitos, pois aqui tem abundância de álcool em gel”, completa. 

Para evitar paralisações, o governo federal declarou os call centers serviços essenciais.  Funcionários só são dispensados em caso de última necessidade. Embora as centrais telefônicas não tenham contato direto com o público, esses funcionários dividem material e trabalham muito próximos uns dos outros. “Se não houver higiene criteriosa, triagem e equipe reduzida, é muito arriscado”, avalia o infectologista Pedro Campana, da Santa Casa de São Paulo. Para o médico, o ideal é que os funcionários mantenham ao menos dois metros de distância.

“Temo pela minha mãe e pela minha filha”, diz Carina*, funcionária da Sercom, que emprega cerca de 8 mil funcionários em cidades da Grande São Paulo, Osasco e Taboão da Serra. A empresa diz ter dispensando funcionários de grupos de risco, mas, segundo os cálculos da funcionária, 90% dos pessoal continua indo à sede onde ela trabalha, em Taboão (SP). Apesar de ter adquirido alergia a medicamentos depois de um episódio de pedra nos rins, ela continua batendo ponto normalmente. Seu fluxo de atendimento continua o mesmo, em baias lado a lado. “Costumávamos direcionar alguns seguros para ser cancelados nas lojas, agora com as lojas fechadas, nós mesmos vamos cancelar.” [ATUALIZAÇÃO: Em nota enviada às 17h55 do dia 26, a Sercom informou estar atuando com apenas 50% da colaboradores em regime presencial. CartaCapital mantém a informação]

Na sede da AeC em Montes Claros, funcionários encontram máquinas sujas, e almoçam aglomerados em uma cantina; empresa diz ter tomado medidas

Na sede da Intervalor, em São Paulo, mais de 3.000 funcionários dividem as estações de trabalho. Gestantes, idosos e pessoas com baixa imunidade foram dispensados, mas o volume de gente circulando no galpão ainda é grande. “Já temos cerca de 280 computadores na casa de colaboradores e nossa missão é aumentar esse número em aproximadamente 150 por dia, até que 70% do quadro esteja atuando em regime de teletrabalho”, afirma o CEO Luís Carlos Bento. Funcionários ouvidos por CartaCapital duvidam da promessa. “A empresa diz que está tentando montar máquinas para trabalhar em casa. Mas não vejo nada andar e nem movimentação para isso”, relata Gabriela*, de 42 anos.

Os protestos e a pressão nas redes sociais têm rendido conquistas pontuais. “Não é na rapidez que queríamos, e nem a que o trabalhador merecia, mas continuamos tentando”, diz Mauro Cava de Britto, vice-presidente do Sintetel. Na sede da Atento em São Bernardo do Campo, duas em cada três estações de trabalho estão desocupadas, garantindo distância segura aos funcionários que continuam batendo ponto. Em Minas Gerais, a VGX impôs home office a todos os funcionários.

Um paliativo da parte dos consumidores seria interromper o fluxo de ligações desnecessárias. Às empresas, caberia suspender os serviços de telemarketing ativo  quando o funcionário liga para o cliente. Não é o que vem acontecendo. O do coronavírus diminuiu a demanda por SAC ligado ao comércio (por ex. sites de compra e venda), mas não pelos demais serviços. Na manhã de terça-feira 24, a reportagem recebeu uma ligação da Legião da Boa Vontade, entidade beneficente. Questionada, a atendente de 19 anos disse estar trabalhando na sede da LBV no Bom Retiro. “A gente se pergunta, por que temos que trabalhar? Somos uma entidade filantrópica, mas entramos na lei como call center. A gerente prometeu nos tirar aos poucos, porque não podemos parar.” 

No dia 20, funcionários do call center Almaviva paralisaram as atividades por conta do novo coronavírus (Reprodução)

Na Coreia do Sul, um call center provocou um salto nos casos de Covid-19. Foram confirmados mais de 90 ligados diretamente à empresa, cuja sede fica perto de um terminal que conecta a capital Seul a outras grandes cidades. Como muitos dos trabalhadores que apresentaram resultado positivo usaram metrô e ônibus, foi necessário um longo trabalho de desinfecção nas principais estações do sistema. Caso esse cenário dramático se repita no Brasil, a MP 927 abriu um precedente perigoso.

Caso contraia o vírus no trabalho, o funcionário pode ser demitido assim que voltar da licença médica. Na Europa, a garantia é de 60 dias. Além disso, a regulamentação trabalhista específica para os operadores de call centers não valerá para as situações de home office.

Por exemplo, a CLT estabelece que eles não podem trabalhar mais do que seis horas por dia. Caso passe disso, a hora extra é paga com acréscimo de 50%. Com as medidas excepcionais recém-definidas, as eventuais horas extras não terão esse acréscimo. Rodrigo questiona: “As pessoas nos ligam para pedir serviços que podem ser feitos via internet, para aprender a baixar o WhatsApp. E nós, para vender planos de celular. Merecemos colocar a vida em risco por isso?”. 

A reportagem não conseguiu contato com a Conduent.

*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.

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