Diversidade

Indígenas cobram governo por mais vacinação e retirada de invasores

STF reconheceu indígenas não aldeados e de áreas não homologadas como vulneráveis, mas imunização encontra resistência a decisões e lentidão

(Foto: Bruno Cecim / Ag.Pará)
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Liderança dedicada e reconhecida das mulheres xinguanas, filha de um grande cacique e sobrinha de outro, esposa do presidente de uma importante associação dos povos do Xingu, Watatakalu Yawalapiti não seria vacinada contra a Covid-19 pelo plano atual do governo federal. Acabou sendo por estar na aldeia do marido quando a equipe de saúde chegou. No entanto, o ato foi classificado como um erro pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), o que resultou na demissão da enfermeira responsável. 

O motivo para a recusa na vacinação de grande parte da população indígena do País está na regra que delimita a campanha atual apenas para indígenas aldeados, problema que não é o único registrado na maneira como a Sesai e demais órgãos se colocam na defesa dos povos indígenas na pandemia: organizações denunciam a subnotificação de casos de coronavírus, a exclusão de indígenas que vivem em terras ainda não homologadas e a recusa, por parte do governo federal, em assumir compromissos práticos para expulsar invasores, principalmente garimpeiros. 

Watatakalu e o marido, o presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX) Ianukulá Kaiabi Suiá, possuem residência em uma cidade próxima à aldeia para facilitar os trâmites da Associação, mas foram nascidos, criados e formados junto aos parentes e à terra, de onde jamais saíram definitivamente.

“Está tudo errado. Eu acho um absurdo esse posicionamento racista que o DSEI [Distrito Sanitário Especial Indígena] tem com os povos do Xingu. Eu fui considerada como moradora da cidade mesmo tendo minha residência na aldeia, e isso não me faz não ser indígena”, declara a coordenadora do ATIX Mulher, que explica que a dinâmica é corriqueira e nunca foi considerada um empecilho em campanhas de vacinação anteriores.

Agora, indígenas que trabalham na cidade e não estão sendo vacinados continuam com seus fluxos diários para a aldeia, só que sem a imunidade. “O nosso povo não está sendo tratado como prioridade. Não estamos seguros.”

A constatação de Watatakalu aparece nos números da vacinação indígena. Nos mais de três meses em que a campanha de imunização se arrasta a passos lentos pelo Brasil, a fase emergencial, a qual indígenas maiores de 18 anos e atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) integram, ainda não foi concluída. O número destacado pela Sesai no portal de monitoramento é de que 75% dos quase 410 mil “aptos” para a vacina receberam a 1ª dose, enquanto 59% também tomaram a 2ª.

Quando se olha especificamente para os DSEIs, há contrastes nítidos. No Xingu, 65% dos quase 4 mil indígenas aldeados receberam as duas doses. No DSEI Alto Rio Negro, que faz fronteira com a Colômbia, o mesmo índice cai para 54%. Já no DSEI Kaiapó, no Mato Grosso, apenas 731 indígenas receberam as duas doses da vacina – cerca de 20% do povo naquela região. 

Em nota, a Sesai destaca a existência de “dificuldades logísticas e climáticas” para o cumprimento das campanhas e, no parágrafo seguinte, afirma existir um “Plano de Sensibilização em que os profissionais de saúde reforçam a importância de que todos sejam imunizados, ressaltam a não obrigatoriedade da vacinação e reafirmam que as vacinas são seguras e possuem autorização da Anvisa”. 

A baixa imunização também encontra entraves particulares criados pelos estados. Em Roraima, onde os DSEIs Yanomami e Leste de Roraima possuem taxas de duas doses aplicadas em apenas 30% e 44% da população, respectivamente, o Conselho Municipal da Saúde, vinculado à capital Boa Vista, determinou um “remanejamento” de vacinas supostamente excedentes para a população da cidade. 

Segundo reportagem do portal Amazônia Real, a decisão do dia 5 de abril foi tomada devido a uma alegada “recusa” à vacinação devido a “crenças e costumes” dos indígenas, suposição negada posteriormente pelo coordenador do DSEI Yanomami em declaração à matéria. Para o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a decisão é “criminosa” e remonta ao preconceito contra os povos. 

Na campanha de vacinação contra a Covid-19, as fake news também chegaram ao WhatsApp dos parentes, conta o biólogo e mestre em Saúde Pública Luiz Penha, do povo Tukano, que atua como técnico de projetos na unidade de Manaus da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Porém, a responsabilidade de conscientização sempre foi dos trabalhadores de saúde dos DSEIs, destaca. 

“Um dos pontos que hoje se tornou um discurso é de que as vacinas nos DSEIs não estão avançando por conta das fake news. A gente sabe que tem acontecido e estamos trabalhando dentro da COIAB, mas ela não pode ser o empecilho para que a gente imunize os indígenas nas aldeias. Se há essa necessidade, os DSEIs precisam trabalhar educação em saúde. Essa é uma falha deles.”

Ao longo de 2020, Luiz Penha atuou no monitoramento dos casos de Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira (AM), conhecido como o município mais indígena do País por sua população composta por 90% de povos originários. Com o início da vacinação, ele uniu-se à COIAB para ampliar os trabalhos de vigilância, que inclui, em Manaus, um movimento de pressão para que os mais de 20 mil indígenas da capital também sejam considerados no plano de vacinação.

Em meio a reuniões com a secretaria estadual e o Ministério Público Federal do Amazonas, Penha recebe dados que apontam a dificuldade de diversos municípios em baterem suas metas de vacinação. A judicialização dos casos, explica, é o caminho mais comum em um momento de tamanha urgência, mas nem assim as medidas mais esperadas a nível de política de saúde têm sido aplicadas pelas autoridades, especialmente pelo poder federal. 

Subnotificação e invasão de terras

Enquanto a vacinação é a única saída para conter o coronavírus, o acompanhamento rigoroso do número de casos e óbitos dá a real dimensão do impacto, do luto e dos desafios. O problema é que, para a Sesai, a contagem também se restringe às aldeias, o que gera uma subnotificação de quantos indígenas foram de fato afetados pela Covid-19. 

Em um estudo recentemente publicado na revista científica Frontiers, um grupo de pesquisadores descobriu que o Ministério da Saúde registrou 103% menos mortes de indígenas em toda a Amazônia Legal do que o monitoramento feito pela COIAB do Amazonas, que contabilizou e checou informações de parentes também de áreas urbanas.

Como consequência, os dados referentes à incidência e mortalidade a cada 100 mil habitantes também acabaram distorcidos no período analisado (de 23 de fevereiro a 3 de outubro de 2020): a incidência é 136% mais alta do que a média nacional registrada até então; a mortalidade, 110% maior. Enquanto o Ministério registrou 303 óbitos para o período, a organização contabilizou 670, mais que o dobro. Há ainda “uma correlação direta entre desmatamento, grilagem e mineração, e a incidência de casos entre indígenas”, escrevem os pesquisadores.

Esse é mais um ponto em que o governo federal se faz “negacionista”, opina o advogado Luiz Henrique Eloy, do povo Terena, que atua na Associação Brasileira dos Povos Indígenas (APIB). A associação entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal, em julho de 2020, para demandar da União um plano de contingenciamento da Covid-19 nas terras indígenas, que incluía a imediata expulsão da onda de garimpeiros e grileiros que levaram o vírus e o desmatamento às portas das aldeias. 

Com o deferimento do ministro Luís Roberto Barroso e, posteriormente, da maioria da Corte à ADPF 709, o governo federal foi obrigado a enviar o planejamento, que seria analisado por avaliadores independentes da Fiocruz e da Abrasco antes de finalmente ser implementado. Havia pressa, já que o meio do ano de 2020 representou o pior momento em relação ao número de casos e mortes por coronavírus em diversas terras. Mas os planos “eram ineptos do ponto de vista técnico”, lembra Eloy.

“Percebemos que os técnicos do governo federal são completamente negacionistas no que tange a ciência. Os especialistas da Fiocruz determinavam certas medidas e eles simplesmente resistiam. A quarta versão do Plano, apresentada agora no início de janeiro, só foi homologada parcialmente devido ao avanço da pandemia, especialmente no ponto que tange a contenção de invasores nas TIs brasileiras.”, relatou. “É um desgaste técnico, político e, nesse ínterim, o governo ganhou tempo. E mesmo agora, quando o Supremo determinou o cumprimento desse plano, a gente vê um governo muito inerte”. 

Em relação à vacinação de não aldeados, a APIB voltou ao Supremo e ganhou, no dia 16 de março de 2021, o entendimento de Barroso de que esses e os povos residentes em terras não homologadas também precisavam ter prioridade assegurada na vacinação. Mesmo assim, Eloy narrou nova resistência da Sesai para que povos da terra Taunay-Ipegue, do Mato Grosso do Sul, pudessem receber as doses do imunizante – o que acabou sendo feito após novo acionamento do MPF na última semana. 

“Agora, estamos batendo na tecla da retirada de invasores, além da determinação de barreiras sanitárias também nas terras indígenas com povos isolados. O Supremo determinou um plano de retirada de invasores. O momento ideal para cobrar essa parte da decisão é este, e a gente vê que o governo está indo na contramão.”, afirma o advogado.

Watatakalu Yawalapiti (ao centro) com Sônia Guajajara (esquerda) e Célia Xakriabá (direita) na Marcha das Mulheres Indígenas de 2019 (Foto: Reprodução/Instagram Watatakalu)

Watatakalu Yawalapiti conta que essa foi a primeira vez que ela viu, no Xingu, uma profissional de saúde ser retaliada por defender a vida. Sua atuação militante na pandemia, com denúncias de negligência por parte do DSEI Xingu em relação à falta de materiais de proteção, oxigênio e medicamentos ao longo da crise despertou desconfiança de que a negativa da vacinação tenha se dado por motivos políticos, embora a hipótese tenha sido negada pelos responsáveis do DSEI e pelo secretário da Sesai, Robson Santos. 

“Demos suporte para os nossos povos enquanto a Sesai se omitia. Enquanto nossos povos morriam, estávamos na linha de frente entregando produtos de higiene, álcool em gel, e a Sesai desapareceu, sumiu. Não tinha nem medicamento, nem dinheiro para oxigênio. Nunca tivemos vergonha de mostrar o que estava acontecendo.”, afirma. “O que me revolta mais ainda é que querem aparecer nesse momento agora, mas quando nossas famílias estavam sendo enterradas, eles não estavam, não sabiam nem por onde começar o trabalho de conscientizar os nossos povos.”

A dimensão da tragédia é bem familiar para ela. No período de uma semana em 2020, Watatakalu soube da morte de um tio, uma prima e uma tia-avó em decorrência do coronavírus. Ela e o Xingu perderam para a doença o grande cacique Aritana Yawalapiti, irmão de seu pai, o também cacique Pirakumã Yawalapiti, morto em 2015. Pelo isolamento, ela embarga a voz ao relatar que não voltou para o Alto Xingu para nenhum sepultamento, nenhum abraço em suas tias e nenhum encontro com suas primas porque não saiu do Baixo Xingu, onde fica a aldeia do marido, durante a quarentena. 

Com a 2ª dose da vacina já aplicada, Watatakalu se diz segura para voltar e reencontrar a irmã, “que quase morreu de coronavírus e ainda não foi vacinada”, a mãe e o restante dos parentes. Desde já, afirma, é preciso pensar em fortalecer o movimento indígena para “participar dessas discussões onde se decidem as coisas”. 

“A gente vai reconstruir esse mundo. Tudo que passou e aconteceu, a gente vai ter que mudar. Não podemos repetir os mesmos erros sempre. É escutar, rever para poder melhorar e futuramente dizer que nós conseguimos. Não podemos é viver tudo errado. Este é o momento em que o governo e nossos inimigos, as pessoas que estão de olho nas nossas organizações e fraquezas, atacam.”

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