Saúde

‘Em um simples biscoito água e sal encontramos resíduos de agrotóxico’

Coordenadora de uma das entidades mais atuantes na luta contra os ultraprocessados, a nutricionista Janine Coutinho comenta o avanço do tema

Um estudo do Datafolha encomendado pelo Idec salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados foram os produtos campeões de consumo na pandemia. (Foto: iStock)
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A três meses da realização da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, ganha corpo no Brasil a discussão sobre os males que a comida ultraprocessada causa à saúde e ao meio ambiente.

Hoje, a comida rica em açúcar, sal e gordura corresponde a cerca de 20% das calorias ingeridas pelos brasileiros. É um nível já considerado perigoso por especialistas, mas ainda distante da realidade de países ricos — nos Estados Unidos, 60% da dieta média é composta por junk food.

Essa diferença torna o Brasil um mercado gigantesco a ser conquistado. E o governo Bolsonaro tem facilitado essa cruzada. Sob a guarida de entidades como a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia, tem sido tiradas do papel políticas favoráveis à cadeia produtiva dos ultraprocessados.

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi extinto e há uma ausência de coordenação nacional das políticas de segurança alimentar e nutricional”, pontua Janine Coutinho, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec.

Fundado em 1987, o Idec está linha de frente do combate a essa expansão desenfreada. “Estudos sistemáticos confirmam que os hábitos alimentares são um dos principais fatores de risco e de proteção para várias doenças crônicas não transmissíveis”, alerta Coutinho. Recentemente, uma pesquisa do instituto indicou que 13 tipos de agrotóxicos foram encontrados nos ultraprocessados brasileiros. “Em um simples biscoito água e sal, por exemplo, encontramos resíduos de até sete agrotóxicos!”

Confira a seguir os destaques da entrevista.

CartaCapital: O Brasil corre o risco de se tornar um paraíso dos ultraprocessados?

Janine Coutinho: A partir dos anos 1990, as empresas nacionais que abasteciam o mercado de alimentos regionalmente foram compradas e incorporadas a grandes corporações transnacionais: Unilever, Nestlé, Mondeléz, Coca-Cola, Pepsico, Danone e outras, que passaram a tratar nosso País como importante mercado e, portanto, alvo de estratégias de marketing específicas e cada vez mais agressivas.

Todo esse movimento tem sido facilitado por políticas econômicas. E além dos interesses mercadológicos das grandes corporações, vivemos um desmonte das políticas de segurança alimentar no Brasil. Nosso modelo de agricultura é voltado para a produção de commodities, cultivos para a produção de ultraprocessados, criação de animais e exportação – e não para alimentar diretamente a população brasileira. O agro não é tão pop quanto parece e tem graves consequências para a diminuição da biodiversidade e saúde humana.

 

CC: Ainda estamos longe de um programa de transição rumo a uma alimentação mais saudável e sustentável?

JC: A transição para uma alimentação saudável e sustentável deve ser pautada no direito humano à alimentação, previsto na Constituição. É fundamental a ampliação do acesso a alimentos in natura e minimamente processados, a partir de sistemas alimentares sustentáveis. O padrão de consumo baseado em uma diversidade de alimentos in natura e minimamente processados – como arroz, feijão, frutas, verduras, grãos, leite, etc – é um fator de proteção da saúde. Já o consumo de ultraprocessados é associado a riscos de doenças, como obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares, diabetes, alguns tipos de câncer e até depressão.

Os ultraprocessados são convenientes, baratos, altamente lucrativos e comercializados de forma agressiva. As grandes indústrias alimentícias promovem uma alimentação à base desses itens. O agronegócio, alicerçado no desmatamento, no uso intensivo de agrotóxicos e na monocultura de commodities, causa deterioração do solo, contaminação dos cursos d’água e impactos irreversíveis na biodiversidade e na saúde das pessoas.

Nesse sentido, questionamos o atual modelo agrícola brasileiro, baseado na monocultura, que visa a atender a grande demanda por commodities, como soja, milho, trigo e açúcar. Hoje, essas quatro culturas mencionadas representam uma importante fatia do PIB.

CC: Qual o cenário da luta contra os ultraprocessados no Brasil?

JC: No Idec, a causa da alimentação saudável e sustentável é uma das grandes prioridades, e discutimos há anos os problemas da contaminação de alimentos com resíduos de agrotóxicos, os malefícios trazidos pelo consumo de ultraprocessados e a ausência de medidas eficazes para a proteção da saúde dos consumidores.

Recentemente, divulgamos uma pesquisa que trouxe luz aos riscos múltiplos do consumo de ultraprocessados. Pesquisamos produtos alimentícios consumidos pelos brasileiros e os levamos para análise em um laboratório que é referência nacional, credenciado pela Anvisa, e que conduz avaliações internacionais, inclusive para as próprias indústrias alimentícias. Resíduos de 13 tipos de agrotóxicos foram encontrados nesses produtos. Em um simples biscoito água e sal, por exemplo, encontramos resíduos de até sete agrotóxicos! A pesquisa está no site do Idec para quem quiser ver.

Um estudo do Datafolha encomendado pelo Idec em 2020 revela que salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados foram os produtos campeões de consumo em comparação com o levantamento realizado em 2019, subindo de 30% para 35%.

CC: Qual a expectativa do Idec quanto à Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU que será realizada em setembro?

JC: É um fórum de alto nível, que além de orientar estratégias, pode direcionar recursos e mobilizar outros atores para além das agências e programas da ONU. Em outras palavras, a Cúpula deveria ser uma oportunidade importante para esta agenda avançar, com a possibilidade de pautar estratégias que direcionarão as mudanças necessárias nos sistemas alimentares. Construir sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis significa repensar a lógica na qual hoje está baseada o cultivo, processamento, abastecimento e consumo de alimentos. 

O agro não é tão pop quanto parece e tem graves consequências para a diminuição da biodiversidade e saúde humana

CC: A indústria de ultraprocessados estará presente também…

JC: António Guterres, secretário-geral da ONU, indicou Agnes Kalibata como Enviada Especial com o papel de coordenar o evento. Ela é presidente da Aliança para a Revolução Verde na África, conhecida por seus laços com o agronegócio no continente africano e mostra dificuldade em reconhecer os direitos dos pequenos produtores. Na prática, sua nomeação representa um empecilho para uma participação representativa de acadêmicos e da sociedade civil, atores que defendem os interesses públicos na Cúpula.

Em paralelo, o Comitê de Segurança Alimentar da ONU, que é a plataforma multilateral mais inclusiva para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional, foi envolvido tardiamente na participação da Cúpula.

O Idec defende um debate amplo, que agregue diferentes vozes e conhecimentos para construir respostas e soluções para antigos problemas e novos desafios. A voz da sociedade civil precisa ser ouvida. Até o momento, percebe-se a preferência em se debater o aumento da produtividade e privilegiar propostas que aprofundam as desigualdades e a dependência tecnológica.

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