Política

“É inevitável a volta dos manicômios”, lamenta ex-ministro Temporão

Para o médico, texto do Ministério da Saúde que libera eletrochoque e internação de crianças traz de volta uma velha disputa política

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde
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Na ultima quarta 6, o Ministério da Saúde propôs novas diretrizes para as políticas nacionais de saúde mental e drogas. Em linhas gerais, o texto ampara o fim da política que substitui o atendimento em hospitais psiquiátricos – alvo de várias denúncias de violações – por serviços abertos e de base comunitária como os CAPS (Centros de Atendimentos Psicossociais).

Fica autorizada, por exemplo, a compra de aparelhos de eletrochoque para o SUS. E também a internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos, mesmo aqueles frequentados por adultos. A abstinência é recomendada como solução chave para o abuso de drogas. (Leia na íntegra.)

Esse novo documento aprofunda as diretrizes da Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, lançada em 2017 pelo governo Temer. Já naquela época, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão se juntou a outros colegas para divulgar um manifesto contra a reformulação.

Em sua opinião, é um erro colocar os hospitais psiquiátricos no centro da política de saúde mental. “É a velha política tentando voltar e impor sua visão atrasada, medicalizadora, hospitalcêntrica, agora travestida de neutralidade”, diz.

Especialistas temem que essas normativas enterrem de vez os avanços da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. Para Temporão, esse esses temores são mais do que justificáveis, especialmente sob o governo Bolsonaro.

“A questão psiquiátrica toca na essência do estigma e do preconceito contra os diferentes da sociedade. Temos agora um governo que vê os diferentes como potenciais marxistas-leninistas, um ministro que acha que o marxismo cultural é um dos vilões.”

Médico sanitarista e chefe da pasta no segundo governo Lula (2007-2011), ele o comenta os principais pontos do texto em entrevista a CartaCapital. 

Confira a seguir.

CartaCapital: Há dois anos, você e outros ex-ministros divulgaram uma declaração contra a reformulação da Política de Saúde Mental. O quão grave são essas novas mudanças em relação àquelas?

José Gomes Temporão: É a velha política tentando voltar e impor sua visão atrasada, medicalizadora, hospitalcêntrica, agora travestida de neutralidade. Chama atenção que esse novo documento seja escrito com muito cuidado: fala em humanização, evidências científicas, diz que o trabalho em rede continua. Mas o que fica implícito é que o hospital volta ao centro da política de saúde mental. E esse é um aspecto extremamente importante.

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CC: Porque a reorganização do sistema de Saúde Mental é alvo de uma disputa tão grande?

JGT: Nós sabemos que o sistema substitutivo jamais foi implementado em sua plenitude, e por inúmeras razões. Uma delas é exatamente os interesses desse grupo que agora toma as rédeas da política de saúde mental.

Temos aí uma luta de visões radicalmente distintas de como devemos enfrentar as doenças neuropsíquicas. De um lado há essa visão biológica, de que tudo se trata com medicamento, com eletrochoque, com internação compulsória. Do outro, há um conjunto amplo – nacional e internacional – que acredita que a política de intervenção precisa dialogar, acolher, compreender e criar mecanismos inovadores.

CC: Quem são os atores dessa disputa no Brasil?

JGT: Principalmente o estrato mais conservador dos psiquiatras. Eles estão, por exemplo, na direção da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). De outro lado há médicos, psicólogos e outros terapeutas com uma visão reformista.

CC: Afinal, o país precisa ou não de mais hospitais psiquiátricos? Dá pra conciliar esse atendimento ao respeito aos direitos humanos?

Quando se fala em hospitais psiquiátricos, é inevitável a volta dos manicômios. A Reforma Psiquiátrica, que começou lá nos anos 70, foi uma luta pela cidadania e pelos direitos humanos. A partir dela, descobrimos que muitos hospitais psiquiátricos, na verdade, eram depósitos de pessoas. Muitas delas internadas por motivos totalmente estranhos à boa medicina.

Nós tínhamos que estar falando de leitos psiquiátricos para estadias curtas em hospitais gerais. O que esse documento discute é exatamente o contrário.

CC: A abstinência voltou a ganhar força frente à redução de danos. Curiosamente, é abordagem mais utilizada nas comunidades terapêuticas religiosas…

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Esse recuo, na verdade, começou no governo Dilma, que trouxe as comunidades terapêuticas pro centro do debate e as assumiu como espaços de tratamento, um erro gravíssimo. Não há evidências científicas que justifiquem defender a abstinência como abordagem central. Menos ainda como parte de uma política de valorização do trabalho dessas instituições religiosas.

Experiências internacionais mostram que a liberalização das drogas e a redução de danos têm funcionado. Portugal é o melhor exemplo.

CC: Outro ponto bastante criticado é a internar crianças em adolescentes, até mesmo nas mesmas instituições que os adultos…

JGT: Isso é uma farsa, uma fraude. Abre inclusive a possibilidade de internação compulsória de crianças e adolescentes que, por questões de mau relacionamento com a família, serão entulhados nessas instituições. Abre-se aí toda uma questão de direitos humanos e direitos de cidadania que podem ser colocados em risco.

CC: Em que medida essa reforma se alinha com a ideologia bolsonarista?

JGT: Essa questão toca na essência do estigma, do preconceito com os diferentes da sociedade. Nós estamos vivendo agora um governo que vê os diferentes como potenciais marxistas-leninistas, um ministro que acha que o marxismo cultural é um dos vilões… Então, essa proposta, nesse momento, dessa maneira e neste governo, levanta uma série de temores muito justificáveis. O problema todo é político.

CC: Não há também interesses financeiros nessa mudança?

JGT: No passado sim, era uma maneira de fazer muito dinheiro. Hoje essa questão econômica fica em segundo plano. Na medicina hoje, dá pra ganhar dinheiro em outras áreas. O cerne é essa visão conservadora da psiquiatria.

CC: O texto também dá aval para o eletrochoque. Muitos médicos dizem que esse tipo de tratamento dizem que ele é eficaz, mas subutilizado dado o estigma histórico…

JGT: Existem protocolos para situações muito raras, como depressão grave, quando o paciente não responde a nenhuma medicação. O grande risco é afrouxar esses critérios. Quando o Ministério da Saúde traz o hospital de volta para o centro do debate e diz inclusive que vai financiar o eletrochoque, sinaliza que, na verdade, o que eles querem é relativizar esses protocolos tão rígidos.

Se a indicação é tão restrita assim, qual o sentido de abrir financiamento? Centros universitários e hospitais especializados já dispõe desses serviços. Para situações raríssimas.

CC: Analisando as políticas dessa área nas últimas duas décadas, quais os erros e acertos? 

JGT: Fechamos milhares de leitos psiquiátricos que na verdade não eram leitos, eram depósitos de pessoas. Também construímos uma ampla rede de atendimento psiquiátrico que está aí, mas está frágil. Porque essa rede nunca foi plenamente estruturada. Nem financeiramente e nem com os quadros técnicos necessários.

E estamos falando de doenças que serão  a principal causa de morbidade no mundo nos próximos vinte anos, segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde]. São questões extremamente relevantes para o dia a dia e para a segurança das famílias.

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