Política

“Com a nova portaria, aborto legal não é mais procedimento de cuidado, mas sim de investigação”

Pesquisadora critica medida e considera as alterações ‘uma tentativa de intimidação, desinformação e de criar pânico nas mulheres’

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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*Por Vitória Régia da Silva, repórter da Gênero e Número

O Ministério da Saúde publicou uma portaria nesta sexta-feira 28 que altera procedimentos interrupção da gravidez nos casos previstos em lei e dificulta a realização do aborto legal nos casos de estupro, inclusive levando ao constrangimento da mulher.

Segundo a Portaria nº 2.282/2020, para fazer o procedimento, os médicos são obrigados a notificar à polícia e deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, como fragmentos de embrião ou feto. Além disso, antes da aprovação da interrupção da gravidez, a equipe médica deverá informar à gestante sobre a possibilidade de visualizar o feto ou embrião via ultrassonografia.

A portaria foi publicada um dia após a ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves declarar que “o governo Bolsonaro não vai apresentar nenhuma proposta para mudar a legislação atual de aborto. Isso é um assunto do Congresso Nacional”.

Em entrevista à Gênero e Número, a advogada e pesquisadora do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), Gabriela Rondon, diz que essa norma representa um retrocesso e dificulta o acesso da mulher ao aborto legal:

“[Os profissionais de saúde] não foram treinados e nem é seu papel profissional e constitucional se preocupar prioritariamente com uma investigação criminal. A preocupação primordial deve ser cuidar daquela mulher ou menina. Se isso cria essas outras camadas, pode levar à confusão e, no fim das contas, fazer com que não cumpram seu objetivo principal, que é o principal efeito e problema dessa norma”.

As reações contrárias à nova portaria começam a aparecer. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e outros deputados protocolaram o Projeto de Decreto Legislativo (PDL ) 381 pedindo que a portaria seja sustada.

Confira a entrevista completa.

Gênero e Número: Qual a principal mudança da nova portaria?

Gabriela Rondon: A principal mudança da portaria é de perspectiva: o aborto legal deixa de ser um procedimento de cuidado e torna-se de investigação. Tanto que o primeiro artigo da portaria já menciona a necessidade de notificação às autoridades policiais pelos profissionais de saúde.

Fica evidente que o principal objetivo não é prestar o acolhimento adequado à vítima, e sim confundir a atuação dos profissionais da saúde com profissionais da segurança pública, que estão tentando investigar a verdade do que aconteceu. Isso não é trivial porque muda completamente o tipo de relação que essa mulher ou menina já em sofrimento vai ter com esses profissionais, que são profissionais do cuidado. Então, isso é a porta de entrada para entender todos os artigos da portaria e todos os problemas que ela traz.

GN: A notificação às autoridades é a mesma coisa que Boletim de Ocorrência (B.O.)?

Não fica claro, porque essa criação de uma obrigatoriedade para que o sistema de saúde se comunique com o sistema de justiça e as autoridades policiais é totalmente sui generis. Isso pode ser visto como uma violação do sigilo profissionais da saúde. Além disso, sequer a portaria explica como isso deveria ser feito. Não existe um manual de comunicação entre essas duas esferas, porque não necessariamente elas se comunicam de fato. Então, na verdade, isso gera insegurança para os profissionais de saúde, de como interpretar essa norma e o que eles devem fazer e como fazer isso sem violar o sigilo ou colocar essa mulher em risco. Isso não está claro, e essa norma que gera insegurança jurídica, na verdade.

GN: A portaria anterior, de 2005, prevê a não obrigatoriedade de apresentação de B.O. Essa nova portaria pode ser considerada um retrocesso que afeta o acesso dessas mulheres ao direito do aborto?

Com certeza. É preciso pensar quem são essas mulheres, que muitas vezes são meninas; sabemos pelos dados de estupro no país que a maioria das vítimas são meninas, e que muitas vezes os agressores são conhecidos ou fazem parte da família. Muitas vezes, não é simples para essa menina vítima de violência denunciar o agressor. A porta de entrada do cuidado é o sistema de saúde, e a vítima pode não querer levar isso à justiça. Porque a ameaça de prisão de um familiar pode ser suficiente para fazer com que essa menina desista de buscar o sistema de saúde.

Quando se condiciona uma coisa a outra, pode fazer com que essas meninas não busquem ajuda, então, você fecha a porta do serviço de saúde a partir do momento que você vincula o sistema de saúde ao sistema policial. Isso não significa dizer que é irrelevante buscar responsabilização dos agressores. É simplesmente dizer que as esferas sejam separadas porque é possível que, depois que essa mulher tiver sido acolhida e com suas necessidades de saúde atendidas, conversem com ela para ver se gostaria de tomar outras medidas. Porém, condicionar uma coisa a outra é muito perigoso.

GN: Duas mudanças desta portaria são o termo de consentimento, que aponta os riscos do aborto legal, e a obrigatoriedade de que a equipe médica informe sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia. Essas medidas são para ajudar a mulher a tomar essa decisão ou para pressionar que ela desista?

Não são medidas de acesso à informação ou que ajudem a mulher a tomar uma decisão consciente, porque há uma seleção ideológica e parcial do tipo de evidência que está sendo mencionada. Faz-se uma lista de riscos possíveis, mas não se fala da prevalência desses riscos, que são baixíssimos. É preciso ter noção do que é risco. Inclusive se fosse para oferecer um adequado acesso à informação, seria muito importante dizer [no caso da gravidez infantil] que o aborto é sempre mais seguro que o parto. Então, teria que se informar que se essa menina quer seguir com a gestação e ter um parto que é mais arriscado, objetivamente falando, do que interromper a gestação.

Selecionar alguns aspectos sem realmente explicar o que significam esses riscos é claramente uma tentativa de intimidação, de desinformação e de criar pânico nas mulheres.

GN: Uma das justificativas para alteração dos procedimentos e criação da nova portaria foi de proteger os profissionais de saúde. Essa proteção já não era prevista?

Não existe esta necessidade porque essa segurança já era assegurada na portaria anterior. Já existiam todos os termos de consentimento e responsabilidade das mulheres pela narrativa contada da violência, e isso era uma medida de proteção aos profissionais para garantir que o trabalho deles fosse unicamente o trabalho de cuidado, que não precisassem investigar a palavra da mulher. Se eventualmente se considerasse que aquela situação não era de aborto legal e que a mulher por alguma razão foi imprecisa nas suas informações, quem seria responsabilizada seria a mulher e não os profissionais de saúde, porque não era função deles averiguar os detalhes criminais do que está sendo contato. Isso já estava previsto na portaria anterior, não havia insegurança jurídica anterior. Dizer isso não é compatível com a verdade, e não era necessária a mudança da norma nesse sentido.

GN: No ano passado, foi aprovada a Lei n° 13.931, que prevê a notificação às autoridades no caso de violência doméstica. Essas novas normas fazem parte de um contexto de judicialização do cuidado em saúde?

Sim, essa lei que entrou em vigor esse ano ainda não foi regulamentada. A legislação já era muito problemática e inconstitucional porque mistura processos que não deveriam ser misturados e condiciona a saúde a outra esfera que não tem nenhuma relação e pode gerar obstáculos de acesso. Além de tudo isso, não foi regulamentada, não especificou como os profissionais de saúde atenderiam a essa nova lei. Essa norma não está sendo colocada em prática porque os profissionais não sabem o que fazer, e essa nova portaria sobre o aborto legal cria mais uma camada de confusão nesse sentido.

GN: Os profissionais de saúde, segundo a portaria, podem recolher o feto e o embrião para ajudar na investigação do caso de violência policial. Esse tipo de medida é comum ou viola os direitos da mulher?

Mais uma vez há confusão de qual é o papel dos profissionais de saúde. Eles não foram treinados e nem é seu papel profissional e constitucional se preocupar prioritariamente com uma investigação criminal. A preocupação primordial deve ser cuidar daquela mulher ou menina. Se isso cria essas outras camadas, pode levar à confusão e, no fim das contas, fazer com que não cumpram seu objetivo principal, que é o principal efeito e problema dessa norma.

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