Saúde

Brasil, 500 mil mortes: o que especialistas esperam para os próximos meses de pandemia

Com a ameaça das variantes ante uma vacinação ainda lenta, os brasileiros assistem ao agravamento da crise em diversos níveis

FOTOS: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP
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O Brasil levou apenas 51 dias para passar de 400 mil para 500 mil mortes por Covid-19. A dramática marca de meio milhão de vidas perdidas para o coronavírus foi confirmada neste sábado 19.

Entre a primeira morte e o registro de 100 mil óbitos, passaram-se 149 dias. Para chegar a 200 mil mortes, mais 152 dias. Já o índice de 300 mil mortes foi superado 76 dias depois. Neste momento, 459 dias após o anúncio da primeira vítima fatal da Covid-19 no País, uma população cansada, revoltada e assustada se pergunta sobre o que enfrentará nos próximos meses.

A vacinação, embora mais ágil, ainda é menos veloz e abrangente que o desejável – e ao que seria possível se o governo federal tivesse priorizado a compra de imunizantes em detrimento da promoção de tratamentos ineficazes, como vem mostrando a CPI da Covid.

O lockdown, a rigor, não existiu. A não ser em cidades cujos prefeitos, diante da lotação dos hospitais e da falta de insumos, não enxergaram outra opção. O governo de Jair Bolsonaro, entretanto, vem desde o início da pandemia lutando contra a adoção de medidas de distanciamento social. Tentou, ao contrário, encorajar os brasileiros a ganhar as ruas, em busca de uma inatingível imunidade de rebanho por contaminação, e não por vacinação.

Também se soma a essa equação o temor de novas variantes do coronavírus, cujo potencial para acelerar os contágios deve pressionar ainda mais o Sistema Único de Saúde — que, em muitos pontos do País, já está à beira do colapso.

CartaCapital ouviu especialistas para tentar projetar a próxima etapa da pandemia de Covid-19 no Brasil.

Brasil, o País com mais mortes por Covid-19?

Para o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que chefiou o Ministério da Saúde no governo de Dilma Rousseff, o Brasil ultrapassará os Estados Unidos e se tornará o País recordista em mortes pela doença.

A pressão sobre o sistema de saúde, ilustrada principalmente pela lotação de leitos de UTI, pelo número de pessoas que apresentam sequelas da Covid-19 e pelo represamento de cirurgias e exames, deve comprometer a taxa de recuperação dos doentes.

“Veremos também um aumento da mortalidade geral no País por outras doenças que ficaram represadas pelo fato de termos tantos casos de Covid durante todo o ano”, pontua Padilha. Há ainda, segundo o deputado, o risco de o Brasil e outros países que não conseguiram acelerar a vacinação continuarem a ser terras férteis para o surgimento de mutações do coronavírus.

Vacinação lenta, circulação intensa

O ritmo da imunização e a quantidade de doses no País também preocupam o médico infectologista José David Urbaéz, da Sociedade Brasileira de Infectologia em Brasília. Ele acusa um consenso — equivocado — por parte do ‘status quo’ de apostar apenas na vacinação, abrindo mão de medidas de restrição da circulação.

Até o final do ano, calcula, haverá um fluxo mais regular de vacinas e o Brasil alcançará a marca de 70 ou 80 milhões de vacinados, o equivalente a mais ou menos um terço da população. Não é o bastante para alcançar a imunidade coletiva. “Os 70% ou 80% da população necessários para imunidade coletiva, só em 2022, no primeiro semestre ou um pouco mais.”

Pesam também algumas outras dúvidas sobre a imunização. “Teremos proteção vacinal por mais de um ano? Se não tivermos, teremos doses para ‘revacinação?'”, questiona. “E com esse ritmo lento de vacinação teremos novas variantes, resistentes à nossa imunidade?”.

Mas, independentemente da campanha de imunização, o médico projeta para os próximos meses altos níveis de transmissão do SARS-C0V2 e elevação do número de mortes. “Sem sensibilidade, nem mobilizações sociais mais significativas, continuaremos com essa tragédia.”

Crise política e a variante Delta

Daniel Dourado, médico sanitarista, advogado e colunista de CartaCapital, também não vê com otimismo o cenário brasileiro. “A crise no Brasil é política, e é por isso que o problema está longe de ser resolvido enquanto estiver o Bolsonaro.”

Embora a substituição de Eduardo Pazuello por Marcelo Queiroga no Ministério da Saúde tenha favorecido discursos em favor das máscaras e das vacinas, Dourado também vê como o erro crasso da pasta agir como se fosse possível vencer a pandemia apenas com a vacinação.

“A vacina é fundamental, mas não é só acelerar a vacinação. Precisa ter medidas de controle, de restrição. Estamos vendo a preocupação com a variante Delta. Mais cedo ou mais tarde, ela vai chegar no Brasil, e ela está se mostrando com um potencial de infecção maior. Isso preocupa muito, porque a situação do Brasil ainda está fora de controle”.

Esse cenário catastrófico, ressalta, poderia ter sido minimizado se o Ministério da Saúde houvesse promovido uma coordenação com secretarias estaduais e municipais para a adoção de medidas como o lockdown.

Entendimento semelhante tem a CPI da Covid, que, embora tenha perdido parcialmente o fôlego nas últimas semanas, continua a manifestar a convicção de que o governo de Jair Bolsonaro priorizou, de forma deliberada, a adoção de métodos negacionistas em detrimento da aquisição de imunizantes.

Não à toa, um dos focos do colegiado neste momento é o aprofundamento da investigação sobre o chamado ‘gabinete das sombras’, uma espécie de poder paralelo que orientou o presidente da República a dar as costas à Ciência e abraçar teorias da conspiração.

“A gente precisa entender cada tomada de decisão do governo federal. O mesmo governo que se recusou a fazer qualquer gesto em favor da compra de vacinas é o que vai em busca de insumos para dois fabricantes nacionais para um medicamento que não funciona no combate à Covid”, disse em referência à cloroquina o senador Alessandro Vieira (Cidadania)-SE, titular da comissão, em entrevista a CartaCapital em 11 de junho.

Pessoas se despedem de ente perdido para o coronavírus – realidade de 500 mil famílias do Brasil (Foto: Michael DANTAS / AFP)

O drama da Fome

A duração da crise sanitária expõe a população brasileira a outros problemas graves: a fome e a pobreza. 

Segundo a FGV-Social, a renda média per capita no Brasil atingiu 995 reais no primeiro trimestre de 2021, menor valor da série histórica analisada pela FGV desde 2012. A comparação entre os primeiros três meses de 2020 e o mesmo período de 2021 mostra que os mais vulneráveis empobreceram duas vezes mais que a média dos brasileiros.

Há outros indicadores que sinalizam essa piora. Pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, em parceria com pesquisadores da UFMG e da UnB, concluíram que 59,4% dos domicílios brasileiros conviveram com a chance de não ter comida na mesa entre agosto e dezembro de 2020. Cerca de 15% enfrentavam insegurança alimentar grave — quando o risco de passar fome já se estende às crianças. 

Se o auxílio emergencial de 600 reais foi o responsável por salvar famílias de uma situação de completo desalento no primeiro ano da pandemia, o valor atual do benefício, drasticamente reduzido, leva a uma rotina de busca constante por complementação. E o cenário não deve mudar tão cedo. 

Nós adentramos a pandemia com 19 milhões de pessoas passando fome e agora, com meio milhão de pessoas mortas pelo coronavírus, podemos chegar ao outro lado da pandemia com o dobro dos 19 milhões, ou até 40 milhões de pessoas passando fome no País”, calcula a socióloga Vilma Reis, integrante do coletivo Coalizão Negra por Direitos, que organiza a campanha Tem Gente Com Fome desde março de 2021.

Até o momento, mais de 12,4 milhões de reais já foram arrecadados pelo projeto — que reúne, além da Coalizão, organizações como Anistia Internacional, Redes da Maré, 342 Artes, Oxfam Brasil, entre outras. Foram mapeadas mais de 224 mil famílias aptas a receber cestas básicas, no valor de 200 reais. Para o projeto alcance a meta proposta, explica Vilma, será necessário arrecadar 133 milhões de reais. “Nunca uma organização negra no Brasil liderou uma campanha com uma meta tão alta. É histórico.”

A fronteira da perversidade

Vilma Reis pondera que, além da falta do auxílio de 600 reais, o governo federal tem agido para suprimir a real dimensão da pobreza, especialmente a partir do cancelamento do Censo 2021.

Se tem um sujeito social não enxergado e não alcançado pelas políticas públicas, esse grupo é o das mulheres negras. Não querem que as perguntas sobre empobrecimento sejam feitas, não querem que a gente olhe para o Brasil com condições de responder à pergunta de quem está sofrendo com esse desmonte.”

Outra forma de ‘exclusão’ é a desigualdade no acesso às vacinas. A Coalizão pretende pressionar o governo para que sejam coletados os dados sobre raça nos formulários de vacinação, a fim de identificar possíveis discrepâncias na principal saída para a pandemia.

Uma reportagem da Agência Pública de março deste ano apontou que, enquanto 3,2 milhões de pessoas autodeclaradas brancas receberam a primeira dose do imunizante contra o novo coronavírus, a quantidade caía para 1,7 milhão entre os brasileiros pardos e pretos.

A resposta para o futuro, defende a socióloga, será a implementação da renda básica, de forma ampla e viabilizada por diferentes governos estaduais e municipais. Também será indispensável uma política que vá contra o desmonte de assistência social, ainda mais necessária diante dos longos efeitos da pandemia sobre emprego, renda, acesso à alimentação, saúde e educação no Brasil. “Vivemos na fronteira da perversidade”, define. E ela já deixou 500 mil pelo caminho.

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