Política

Mandetta: Bolsonaro se expôs ao ridículo ao dizer que o coronavírus seria uma gripezinha

Para ex-ministro, a pasta da Saúde perdeu a credibilidade. Leia a entrevista

Mandetta conversa com o presidente quando ainda era ministro da Saúde. Foto: Planalto
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Para o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), colocar militares para conduzir a pasta durante a pandemia de covid-19 é como deixar a saúde dos brasileiros “nas mãos de jogadores de futebol ou físicos nucleares no momento de maior risco da história do país”.

Mandetta foi exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro em meados de abril, após divergências entre ambos em relação à resposta à doença causada pelo novo coronavírus. O ministro foi substituído pelo médico Nelson Teich, que, após menos de um mês no cargo, pediu demissão, em meados de maio. Desde então, a pasta da Saúde está sob o comando interino do general Eduardo Pazuello.

Após o início da epidemia no Brasil, Bolsonaro “começou a se cercar daquelas pessoas que em tempos de crise adoram falar o que o chefe quer ouvir”, diz Mandetta.

Em entrevista à DW Brasil, o ex-ministro comenta o apagão de dados da covid-19 por parte do Ministério da Saúde, no início de junho: “Na Saúde não pode existir segredo. Quanto mais você orienta a população e é transparente, melhor. Quando você coloca segredos em cima de uma doença infecciosa, você erra profundamente, porque o segredo passa a ser o aliado do vírus. Na cabeça dos militares, o segredo é importante, pois com ele você surpreende o inimigo.”

O ex-ministro também fala sobre a “quarentena” na qual foi colocado após deixar o cargo, impedido temporariamente de atuar na iniciativa privada, e seu futuro político.

DW Brasil: O Brasil é hoje o segundo país do mundo com o maior número de infectados pelo coronavírus e de mortos em decorrência da doença, atrás apenas dos Estados Unidos. Como chegamos a esse ponto?

Luiz Henrique Mandetta: Creio que foi quando o Brasil “abriu mão” de continuar dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) com participação federal, estadual e municipal. O nosso sistema é tripartite, envolve três níveis de decisão. E quando estava no Ministério, a participação das cidades, dos estados e da União convergia. Isso conferia empoderamento técnico e político para os tomadores de decisão na ponta, sabendo que eles tinham respaldo dos governos estaduais e da União.

Quando você rompe com isso, as cidades ficam muito sujeitas à pressão política, por conta das eleições municipais que se avizinham. Já os governadores, devido às necessidades de repasse de recursos federais aos seus estados, foram diminuindo a articulação técnica; começou a prevalecer a articulação política.

O conflito de orientações verificado entre autoridades, entre o presidente e governadores, contribuiu para que chegássemos a mais de 70 mil vidas perdidas para o coronavírus?

Acho que o presidente, com a sua figura, sua imagem, seu exemplo, acabou servindo de álibi para muitos que não queriam tomar decisões difíceis. Ele também serviu de desculpa para os cidadãos que começaram, politicamente, a questionar as medidas dos prefeitos e governadores, sob o argumento de que o presidente as condenava. Foi uma sinalização fora de compasso. O Ministério da Saúde, governadores, prefeitos iam em uma direção, enquanto o presidente ia na outra. O desconforto foi tamanho que fui exonerado, já o ministro seguinte [Nelson Teich] pediu exoneração. O que vimos, a partir daí, foi uma ocupação militar no Ministério da Saúde.

Essa militarização do Ministério se torna mais nítida com a saída de nomes técnicos da pasta, como o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde Wanderson Oliveira e o ex-secretário-executivo João Gabbardo. Além disso, estamos com um general como ministro interino desde o dia 15 de maio. Deveríamos ficar preocupados?

É como se você colocasse a condução do Ministério da Saúde, no momento de maior risco da história do país, nas mãos dos jogadores de futebol, nas mãos dos físicos nucleares… Abre-se mão da academia, de séculos de construção do saber em saúde pública. O Wanderson é um enfermeiro com mestrado e doutorado, especializado no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) nos Estados Unidos. O Gabbardo é ex-secretário estadual de Saúde, 41 anos de experiência na área, acostumado com gestão de crises.

Era um conjunto todo de saber que foi trocado. Agora perderam a linha do tempo, as políticas que tinham sido iniciadas. Não foram anunciadas novas medidas porque não há competência para isso. Os militares só estão esquentando a cadeira do Ministério da Saúde para uma indicação política, provavelmente alguém do “centrão”.

No início de junho, o governo federal reduziu a transparência dos dados da covid-19. Como enxerga esse episódio?

Na Saúde não pode existir segredo. Quanto mais você orienta a população e é transparente, melhor. Quando você coloca segredos em cima de uma doença infecciosa, você erra profundamente, porque o segredo passa a ser o aliado do vírus. Na cabeça dos militares, o segredo é importante, pois com ele você surpreende o inimigo. Nos anos 1970, o Brasil teve uma epidemia de meningite, que foi classificada como proibida de ser comentada. A doença se alastrou pelo Brasil inteiro. O que eles fizeram [com os dados] acabou com as condições mínimas que eles tinham de pedir qualquer colaboração da população.

O Ministério da Saúde perdeu a credibilidade. Essa epidemia ocorre na era da internet, não adianta, você não consegue esconder nada. Lamentavelmente, foi necessário que o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenasse o Ministério a fazer o seu papel. A primeira linha de defesa das pessoas, das famílias, dá-se no âmbito de suas casas, e essa linha de defesa é feita com informação.

Há uma denúncia de que o Exército gastou R$ 1,5 milhão para ampliar seu estoque de cloroquina, que não tem eficácia contra a covid-19 comprovada. O senhor já afirmou que não houve aval do Ministério da Saúde e que a ordem para aumentar a produção do medicamento pelo Laboratório do Exército foi tomada pelo presidente e pelo Ministério da Defesa. Houve algum momento em que Bolsonaro realmente lhe ouviu?

O presidente escutou no início, quando levei para ele a gravidade do caso [da covid-19]. Mas é comum quando o médico dá um diagnóstico duro para uma pessoa ela sair da consulta negando. A primeira reação a uma notícia dura geralmente é a negativa. Aí vem a raiva, a tristeza e, finalmente, a aceitação e a colaboração. O presidente ficou estacionado na primeira fase, que foi de negação; no máximo se movimentou para a fase de raiva.

Então ele começou a se cercar daquelas pessoas que em tempos de crise adoram falar o que o chefe quer ouvir. Ele acreditou e se expôs ao ridículo de ir à rede nacional de televisão dizer que o coronavírus seria só uma “gripezinha” que não mataria ninguém. Depois, apegou-se a essa cloroquina porque o [presidente dos EUA, Donald] Trump disse que o medicamento era bom para tratar a doença. A influência do Trump para ele, nesse ponto, foi muito negativa. Então ele [Bolsonaro] apareceu com uma caixinha na mão, dizendo que a cloroquina iria salvar todo mundo.

Enfim, foi dito que os militares foram para o Ministério da Saúde por sua especialidade em logística: agora temos alguns medicamentos, em que gastamos muito dinheiro, para quase 20 anos de consumo. O presidente sempre diz para “deixarmos a história julgar”. Então provavelmente teremos um capítulo chamado “Cloroquina no Brasil”, já que somos o único país em que ainda se discute isso com mais empenho do que enfrentar os graves problemas causados pela pandemia.

Recentemente o presidente acusou o senhor de ter inflado os números de casos de coronavírus no país…

Acho que talvez ele estivesse sob efeito de algum medicamento, sofrendo de algum delírio, alguma coisa fora do seu estado de normalidade. Um homem submetido a muito estresse, a muita pressão, às vezes toma algum medicamento para dormir, não se sente bem… Ou comeu alguma comida estragada, aí falou uma bobagem dessas. Tem que perdoar, coitado.

Estima-se que 90% dos municípios brasileiros já tenham casos confirmados de coronavírus. Por que estados que pareciam mais “imunes” à doença, como Paraná e Rio Grande do Sul, registram agora um cenário preocupante?

O Brasil é um país continental. Não há como comparar o comportamento do coronavírus aqui com o de um país europeu, quando a Europa Ocidental não chega ao tamanho da Amazônia. Temos cidades e regiões muito diferentes. Por aqui, a pandemia começou claramente por Manaus (AM), Fortaleza (CE), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), muito provavelmente devido aos aeroportos internacionais e, no caso de Manaus, da Zona Franca. Agora, a doença está em todas as regiões.

Trata-se de um vírus extremamente competente para se propagar. Os estados do Sul estão passando por um período da pandemia que atravessará todo o mês de julho. Já o Centro-Oeste parece estar iniciando o seu processo, que deve durar até agosto. Provavelmente em setembro estaremos com os números mais homogêneos. Só então poderemos analisar, de fato, como foi a epidemia brasileira.

O senhor foi impedido temporariamente pela Comissão de Ética de atuar na iniciativa privada. Parece-me que os mesmos critérios não foram aplicados ao ex-ministro Nelson Teich. É algo pessoal?

É a primeira vez na história que um ministro da Saúde é posto de quarentena. É pessoal. Solicitei uma reconsideração, argumentando que não poderia haver conflito de interesse na área da Saúde se o meu interesse é, justamente, evitar que as pessoas adoeçam. Se isso for conflitar com os interesses do governo, então o governo quer que as pessoas fiquem doentes e morram?

Tamanha foi a incoerência que o meu sucessor [Nelson Teich] solicitou autorização para trabalhar, e eles deram. Autorização plena. Não sei como, porque ele ficou 28 dias no Ministério da Saúde. Bom, pode ser que alguém ache que ele não tenha feito nada, não tenha trabalhado, então reconheceram que ele não sabe de nada e autorizaram que ele pudesse trabalhar logo após deixar o governo. Então o governo está confessando que aquele mês [em que Teich ficou no comando] foi um mês perdido.

Nos EUA, o presidente Donald Trump parece estar perdendo capital político devido ao modo como tem conduzido o país durante a pandemia. Há quem diga que isso vai custar a reeleição dele. Acredita que talvez passemos por algo parecido por aqui?

O presidente [Bolsonaro] apostou que o assunto “saúde” é facilmente esquecido pelas pessoas. Na cabeça do presidente, as pessoas vão se lembrar somente dele dizendo que nunca quis que elas parassem de trabalhar, que ele sempre defendeu a economia. Para ele, o assunto “economia” é mais importante. Ele acredita que dará tempo de a economia se recuperar em 2021. Ele faz essa festa macabra e aposta todas as suas fichas no sentido de que o tempo jogará a seu favor. Nos EUA, como as eleições são este ano, talvez a gravidade da pandemia exerça mais pressão.

Ainda estamos a dois anos do próximo processo eleitoral. Já consegue enxergar seu futuro político?

É algo muito difícil de responder, porque acredito que política é destino e consequência do momento. O momento, agora, é das pessoas de bem do Brasil se reunirem e tentarem ver quais são seus pontos de convergência para um projeto de nação. Essa polarização entre PT e o núcleo Bolsonaro, com um lado falando “olha, se não votar em mim o PT vai voltar” e o outro dizendo “se não votar em mim o Bolsonaro vai ficar”, trata o eleitor, o cidadão, como hipossuficiente mental, como um torcedor apaixonado e burro. Nenhum extremo é bom. O bom é traçar um caminho pautado pelo componente democrático.

Construir um projeto de nação é o que pretendo fazer com inúmeras pessoas. Já está na hora de todos concordarem que é com educação de qualidade que vamos sair dessa crise. A saúde e o meio ambiente também precisam de atenção especial. Serei um cidadão muito participante nas eleições de 2022, mas se como eleitor, militante ou candidato, ainda é cedo para cravar.

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