Saúde

Antes da anestesia, a medicina era um ofício sem misericórdia

Sem a antissepsia, a medicina era um ofício purulento e sem misericórdia. No século 19, a ciência descobriu onde estava o problema

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Medicina dos Horrores (The Butchering Art, no original inglês) começa, muito a propósito, no anfiteatro do University College London Hospitals, onde um afamado cirurgião se prepara para perpetrar o espetáculo tão ansiosamente aguardado pela plateia: a amputação da perna, da coxa para baixo, de um desafortunado paciente. Mas aquele 21 de dezembro de 1846 não seria um dia banal para a Medicina.

O cirurgião Robert Linton, 1,90 metro de altura, “o bisturi mais rápido do West End”, possuía o dom de teatralidade que o evento requeria. Desde a Idade Média, intervenções cirúrgicas – se é que elas poderiam merecer esse nome, de acordo com o olhar de hoje – e, da mesma forma, seções pedagógicas de dissecação de cadáveres davam-se em auditórios abertos aos “assistentes hospitalares”, aos estudantes de Medicina e a um público de voyeurs fascinados por gritos, sofrimento e sanguinolência que se acotovelava no salão abafado. À falta de um patíbulo na praça, uma execução na guilhotina ou uma rinha de cães selvagens, a ciência proporcionava um show de crueldade apreciado pelo sadismo coletivo.    

O doutor Linton, perdão, o cirurgião escalado para protagonizar a encenação daquele dia no UCLH, tarefa que demandava certa expertise, mas não lhe facultava o status de doutor em Medicina – bem, Robert Linton tinha uma novidade a experimentar e nem ele próprio tinha presciência das consequências que estava introduzindo.

Aliviar a dor do paciente era um desafio que o conhecimento científico vinha buscando em vão. O químico Joseph Priestley destilou, em 1772, o óxido nitroso, que se revelou de cara um eficiente analgésico, mas os cirurgiões tinham dúvida sobre os efeitos desse “gás hilariante” em seus excruciantes procedimentos. 

Teve seu momento, também, à bordo da mesma esperança de alívio, a terapia do alemão Franz Anton Mesmer, inaugurada em 1770. Consistia na tentativa de “energizar” o paciente com gestos que lembrariam o passe de um xamã, com um que de hipnotismo. Não funcionou. Alguns dos discípulos de Mesmer chegariam a ser condenados por charlatanismo.

“Senhores, vamos experimentar um truque ianque que deixa os homens insensíveis”, disse Robert Linton, dirigindo-se à plateia. De fato, o tal truque já fora testado, com êxito, em 1842, na remoção de um tumor de pescoço e, em 1846, na extração de um dente – as duas vezes nos Estados Unidos.

Para cometer seus crimes em série, Jack, o Estripador escolheu um facão-bisturi de cirurgião

O princípio do gás anestesiante era conhecido desde o século 13, mas foi em 1540 que o botânico alemão Valerius Cordus antecipou a fórmula que Linton iria averiguar naquele 21 de dezembro de 1846, que prevalece ainda hoje. Cordus adicionou ácido sulfúrico ao álcool etílico. A ciência médica levou todo esse enorme espaço de tempo para acreditar nas propriedades atenuantes do éter. Enfim, sucumbia à feliz, ainda que tardia, descoberta.

Até então, cirurgias eram práticas tão dolosas, tão traumáticas, que só se recorria a elas em último caso. Cirurgiões, mesmo os mais gabaritados como Robert Linton, situavam-se no estrato social de menor prestígio, ganhavam mal e, pela natureza do ofício, eram comparados aos açougueiros, aos bombeiros hidráulicos e aos empalhadores de animais. 

Alguns eram analfabetos. E, no entanto, se tinha alguém que verdadeiramente botava a mão na massa eram eles, estando a prática curativa convencional restrita ao uso de unguentos, mezinhas, sangrias e demais paliativos, quando não ao recurso extremo de uma boa rezação.

O éter funcionaria como um razoável lenitivo à carnificina até então executada a frio. O paciente desfalecia. Mas o instrumental cirúrgico continuava o mesmo: serra para cortar ossos, faca especial à guisa de bisturi, fórceps, escalpelo, sondas, ganchos, agulha, linha para ligadura e lancetas, indispensáveis à prática das sangrias, tão comuns da Inglaterra vitoriana. A faca de amputação, não por acaso, foi a ferramenta escolhida por Jack, o Estripador para colher suas vítimas em série, em 1888, o que levou a polícia, de cara, a suspeitar de um ou outro cirurgião. 

O ofício do cirurgião, como se vê, era trabalho manual, no qual se exigiam destreza, força e, rapidez; e, ao paciente, coragem, a qual, aliás, quase sempre lhe faltava, compreensivamente, na hora da verdade. Episódios estapafúrdios pontuam a crônica da prática cirúrgica da época. Os pacientes eram vigorosamente amarrados à  mesa e contidos à força pelos assistentes para que não fugissem – o que ainda assim podia ocorrer. 

O trauma era tão real que certa vez quem fugiu foi o cirurgião. O obstetra escocês James Y. Simpson assistia o profissional do bisturi numa amputação de mama no anfiteatro da Universidade de Edimburgo. O corte, sustentado de ganchos agudos, revelou um volume de tecidos moles repugnantes e, ao perceber que o bisturi se aproximava para outro corte, Simpson forçou a passagem entre a multidão bisbilhoteira, deixou para trás os portões do hospital e foi parar na Praça do Parlamento, onde proclamou, aos berros, que iria trocar a Medicina pelo Direito. Felizmente, não levou adiante o propósito. Anos depois, James Y. Simpson inventaria o clorofórmio.    

Sintonia. Pasteur e Lister, que salvou a sua rainha Vitória, revelaram ao mesmo tempo o mundo pernicioso dos micróbios

O verdadeiro herói da revolução cirúrgica, cujo epicentro foi a Inglaterra do século 19 – e protagonista do livro Medicina dos Horrores –, seria aquele Joseph Lister que, aos 19 anos, estudante recém-chegado em Londres e ao University College Hospitals, era, ainda que espremido lá na turma do fundão, um dos mais atentos espectadores no show do “truque ianque” encenado por Robert Linton no histórico 21 de dezembro de 1846.

O futuro papel desempenhado por Lister nasce de uma paixão adolescente: o microscópio. Criado numa família Quaker, livre das amarras éticas da Igreja Anglicana, e filho de um fisicista livre-pensador, Lister vasculhou desde cedo o amplo espectro da vida invisível a olho nu. Iria, ao longo de sua carreira, revelar o segredo que fazia da Medicina o inferno da Medicina. Morria-se, sim, das consequências de intervenções cirúrgicas desastradas. Mas o lugar onde as pessoas acreditavam poder se curar era, por macabra ironia, o maior aliado que a Grande Ceifadeira tinha: o hospital. “É mais fácil morrer de infecção hospitalar em Londres do que teria sido na Batalha de Waterloo”, comentou um visitante, aterrorizado. Sabia-se do efeito, porém, desconhecia-se a causa.

Hoje em dia pareceria óbvio. Os cirurgiões ignoravam o uso de luvas, nem as mãos costumavam lavar. Os aventais, surrados de tantas intervenções sucessivas, guardavam manchas de sangue coagulado. O bafo putrefato da multidão espectadora acentuava, nos anfiteatros da carnagem, uma fedentina que já não afetava a narina dos londrinos. Na cidade superpovoada, de 4,5 milhões de habitantes, a urina corria em valas na rua e crianças disputavam o lixo com os ratos.

Lister, com seu viveiro de água podre guardada em tubos de ensaio, onde cultivava sua fauna invisível, perseguia na Inglaterra a mesma pista a ser trilhada por Louis Pasteur, na França, e Robert Koch, na Alemanha. A ciência descobria os micróbios e demais microrganismos nefastos, causa de infecções, gangrenas, lacerações, feridas incuráveis, abcessos. Só a partir daí, das pesquisas simultâneas dessa geração de cientistas, a higiene entrou na pauta da rotina médica.

Lister foi além. Criou um sistema de antissepsia a partir do ácido carbólico e desenvolveu um pulverizador com o qual fumigava o ar dos ambientes hospitalares antes dos procedimentos cirúrgicos. A mortalidade caiu. Seus contemporâneos lembram de vê-lo trafegando em tílburis pelas ruas de Glascow – onde trabalhava na Royal Infirmary – tendo ao lado um pulverizador cada vez maior. Os colegas americanos desconfiaram de seu invento e Lister teve a paciência de atravessar o Atlântico para persuadi-los. Mas a prova de fogo seria em casa.

As infecções hospitalares faziam mais vítimas do que batalhas como a de Waterloo

Chamado de urgência ao Palácio de Balmoral, nos Highlands da Escócia, para atender a Rainha Vitória, que prudentemente relutava em aceitar um daqueles malfalados cirurgiões, surpreendeu-se em deparar com um quadro crítico: o abcesso no braço de Sua Majestade provocava dores excruciantes e ameaçava evoluir para uma infecção generalizada. Sob o fardo da real responsabilidade, mas armado com seu pulverizador de ácido carbólico, fez o que tinha de fazer. Em dois dias, Vitória estava recuperada. Morreu 30 anos depois, aos 81. Por muito tempo Lister vangloriou-se: “Sou o único homem que já enfiou uma faca na rainha”. 

A mais conhecida imagem sobre do que consistia o exercício do bisturi na pré-história da higienização é A Lição de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp, com a reverenciada assinatura de Rembrandt van Rijn, tela de 1632. Diante de um cadáver cujo braço esquerdo, músculos e tendões à mostra, está sendo vivissecado, o cirurgião procede a sua aula prática para uma atenta plateia de discípulos. 

Tido como um quadro realista, não é. O pintor flamengo providenciou uma boa assepsia no cenário de uma necrópsia, sem uma gota de sangue nos trajes, sem sinal das placas de coagulação, sem vísceras à mostra. O quadro foi encomenda da guilda dos cirurgiões de Amsterdã, que o doutor Tulp presidia. Se Rembrandt exagerou no retoque, pouco importa; ele produziu uma obra-prima.

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