Opinião

“Nossa democracia corre riscos sérios com Bolsonaro”

O cientista político Claudio Couto fala sobre Lula, Bolsonaro, fake news, PSDB e o que o futuro deve nos reservar em 2019

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O ano de 2018 não foi para iniciantes. De um lado, o protagonismo nas eleições presidenciais foi assumido por um ex-presidente preso que não se sabia se poderia concorrer, mas que chegou a ter dois vices. O debate político foi dominado por mentiras (rebatizadas com um termo bem mais chique, as ‘fake news’)  e, ao final, o eleito foi um nome no qual poucos apostariam no início do ano.

Se por um lado partidos e nomes tradicionais parecem derreter ante a força desses tempos raros, quem ocupa o espaço são forasteiros no jogo, que chegam prometendo, no mínimo, menos do mesmo. Para falar sobre o que os últimos doze meses significaram e vão significar para nossa vida política, CartaCapital conversou com o cientista político Claudio Couto:

CartaCapital: O grande fato político de 2018 foram as eleições. Podemos incluir desde a influência do Lula até a eleição do Bolsonaro, que pegou muita gente de surpresa. Qual a análise que você faz disso?

Claudio Couto: Não vejo Bolsonaro como um outsider, acho mais correto defini-lo como um político marginal à política mainstream, às principais vertentes da política brasileira. Ele nunca teve grande importância nas principais corridas do Congresso, na Mesa Diretora, nunca foi presidente de Comissão, nunca foi um líder de partido ou teve interesse em assumir essas posições, que são  importantes da legislatura brasileira.

Outsider talvez fosse o Luciano Huck ou o Joaquim Barbosa, que nunca foram políticos com cargos eletivos, o Bolsonaro  esteve lá durante sete mandatos e mais meio mandato de vereador. Além disso, sua condição de político extremista também causou surpresa. Se tem algo que o regime democrático na sociedade brasileira faz é que ele normalmente facilita a vida dos candidatos com posições mais ao centro.

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Eles vão se moderando, e de repente, você tem aí um grande centro, de centro-direita, de centro-esquerda, em torno do qual oscila a política principal. Bolsonaro rompe com essa lógica. E o eleitor mediano migrou mais para a direita, se desviou daquilo que era a pesquisa tradicional. Por outro lado, ele também encarna o anti-sistema. E o combate à corrupção, claro, que estaria muito associada, na concepção do eleitorado, à política tradicional da qual ele não fazia parte. Essas são algumas das características que ajudam a entender a eleição dele.

Finalmente, o fato de que essa saída do eleitorado para a direita, no caso brasileiro, em particular, tem a ver com um desgaste que teve no Brasil recentemente, da esquerda. Claro que a representação mais forte da esquerda no Brasil é o PT. E consequentemente, o Bolsonaro se coloca como anti-PT e até como anti-Lula.

O Lula não saiu da disputa eleitoral, talvez tenha ficado mais forte do que se imaginava. Quando foi impedido de competir, continuou sendo a grande figura da esquerda. Haddad é Lula. Até aquela foto que é icônica dessa eleição, aquela do Haddad segurando uma máscara do Lula, simboliza muito o que foi essa eleição. O Lula nunca saiu dali, o PT fez um material de campanha dizendo que Haddad é Lula e, se Haddad é Lula, Lula continua na disputa.

Logo, o candidato anti-Lula que era o Bolsonaro, denunciava essa contraposição. Se o Lula tivesse, de fato, saído da campanha, declarado apoio a algum outro candidato, se não tivesse ocorrido essa tentativa real de associar o Haddad ao Lula, talvez o Bolsonaro tivesse um desempenho pior.

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Mas, como o Lula permaneceu ali, isso alimentou e ajudou a entender também o que aconteceu.

Então, é um conjunto de fatores, não é uma única causa, são todas muito vinculadas. E precisamos lembrar que o PT se tornou um partido de establishment, não é mais um partido como foi nos anos 1980 e até uma parte dos anos 1990 – um partido, que de certa forma, hoje, o PSOL que tenta ser. Era o partido contra tudo e contra todos, anti-establishment, que criticava todo mundo.

O PT se tornou um partido completamente convencional, completamente presente no sistema. E ironicamente isso aconteceu por que? O PT arranjou eleitor mediano, virou um partido de governo e foi obrigado a negociar, abrir mão de seus posicionamentos mais radicais. É um partido que foi caminhando para ser convencional.

Para o bem e pro mal, insisto. Porque um partido do establishment é mais viável como governante; mais pragmático; não faz loucuras; ele foi em geral, um partido moderado. Tanto que é risível quando surge essa história do PT ser um partido comunista. O PT é um partido comunista no mesmo tanto que o Brasil é um país glacial.

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CC: Falando em versões e fatos, até que ponto você acha que foi importante esses escândalos que aconteceram durante as eleições, desses robôs que soltavam mensagens falsas pelo WhatsApp, a onda de fake news… Até que ponto isso influenciou?

CCo: O escândalo em si não influenciou muito, tanto que o Bolsonaro ganhou a eleição. Se tivesse influenciado, ele poderia ter sido prejudicado. Acho que até dá pra entender o por que ele não foi prejudicado, afinal o PT – que era o contra-ponto – se envolveu em tantos escândalos nos últimos anos, e ele próprio deu de ombros, se colocando sempre como vítima. De certa forma, se o outro tem escândalo, qual é o problema? Pelo menos, é um escândalo do qual eu não estou cansado, é um escândalo novo. Isso faz diferença.

CC: Mas o fato dessas fake news terem sido jogadas em cima do eleitorado teve uma influência na sua opinião?

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CCo: Isso sem dúvida nenhuma. Escândalo não foi problema, mas as fake news foram um fato importante porque sabemos que uma grande parcela do eleitorado passou a acreditar em certas coisas. O kit gay que inventam, por exemplo, que é uma maluquice, mas muita gente se deixou acreditar que existiria um kit gay, que o PT queria transformar as crianças em gays. Um negócio completamente maluco. E aí tem outras coisas relacionadas, aquelas montagens da Manuela com uma camiseta que ela nunca usou. Depois, o próprio PT dá motivos pra isso. Quando por exemplo, a Manuela e o Haddad vão à missa e comungam. Nesse contexto, já havia tanta coisa circulando em torno dessa ideia de que o PT é um partido que não respeita a religião, que não respeita as crenças das pessoas, que quer transformar as crianças em gays, com ideologia de gênero, isso acabou surtindo efeito.

CC:Este anos vimos novidades na forma como o eleitorado se comportou, deixando o centro e migrando para uma posição mais extrema, acreditando em fake news que até pouco tempo atrás seriam identificadas facilmente como mentiras. Isso sinaliza uma mudança mais profunda na forma como esse eleitorado se relaciona com a política ou foi só um fenômeno pontual que tende a não ser repetido.

CCo: Não acho que é uma forma nova. A imprensa tem sido até bastante influente, chamando a atenção para o problema, mas não vai mudar de um dia pro outro. Ao meu ver, é algo que veio para ficar e as pessoas vão ter que lidar com isso. De uma forma diferente daquela que lidava até hoje. Em outras palavras, a campanha eleitoral foi uma campanha na qual a difusão de informações verdadeiras ou falsas de forma incontrolável por meio de redes sociais veio para ficar. As informações falsas mais absurdas, justamente as que causam mais indignação, são aquelas que talvez vão fazer mais diferença. A gente vai viver, por conta desse modo de difusão das informações, um período de irracionalismo na política, eu acho que isso é uma coisa que vai nos acompanhar durante muito tempo. Não sei quanto tempo a gente vai levar para ter uma reversão.

CC:Os eleitos do PSL agora atingiram um patamar de protagonismo. Como você acha que eles vão atuar nessa posição nova para eles

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CCo: Eles vão ter que aprender. Falamos de um partido chamado de representante da lumpen política, usando um pouco aquela imagem do lumpen proletariado do Marx, são aqueles que não tem qualquer tipo de escopo maior, que são toscos. Eu acho que essa nova política da qual o PSL talvez seja a maior expressão, é realmente uma lumpen política. A gente está falando de políticas muito rasteiras, muito ruins. Há um levantamento muito interessante feito pelo Roberto Almeida, publicado no Congresso Em Foco que, dentre seus deputados que se elegeram, 38 ou 37, algo por aí, nunca na vida ocuparam antes um cargo eletivo. Ou seja, políticos que para além da sua qualidade, são novatos, recém chegados na política eleitoral, que muito provavelmente têm pouca capacidade de articulação ou negociação.

Acho difícil imaginar que esses quadros vão ser capazes de fazer política de uma maneira sofisticada, por não terem treino.

Eles vão ter que negociar com o Congresso que, mesmo tendo uma grande renovação tanto na Câmara quanto no Senado, continua a ter raposas ali, tendo inclusive regras de funcionamento que requerem um certo know how que a maioria deles não tem. Dois se reelegeram, um deles até o presidente do partido. E três apenas, entre eles o Eduardo Bolsonaro, são deputados reeleitos. O resto é tudo novato. Neste cenário, qual a expectativa que podemos ter da sua capacidade de negociar, liderar reformas, auxiliar o governo a funcionar? A minha é muito baixa. O governo vai ter que se valer de gente mais experiente, de fora do PSL, talvez do DEM, ou PR. Partidos como o PTB, PR e PRB não têm grande capacidade de operação institucional, saber se comportar ocupando um cargo de maior projeção como por exemplo a própria presidência da república. Nesse sentido o pmdb tinha muito mais massa crítica, mas saiu desnorteado dessa eleição, não voltaram figuras importantes como o Romero Jucá. Com todos os problemas que pudesse ter, o Jucá era uma liderança com grande capacidade de operação institucional, não é a toa que foi líder de vários governos, sabe juntar as pontas. Não vai ser uma tarefa simples.

CC:Onde o PT errou? Qual o futuro para o partido e a esquerda em geral?

CCo: Errou muito, ao não fazer a autocrítica, e eu não acho que dava para faze-la durante a campanha. Deveria ter sido feita antes. Às vezes eu escuto dos meus amigos petistas uma queixa, perguntando por que ninguém cobra uma autocrítica da imprensa, do PSDB, e eu digo: “olha, se vocês não querem fazer a autocrítica, não façam, o problema é de vocês, vocês tão parecendo criança que fica disputando pra ver quem pegou o maior pedaço do bolo. Não é questão de falar que os outros têm que fazer, isso é uma bobagem. A população que não votou no PT nessa eleição ja não votou nele boa parte na eleição de 2006 e vai continuar sem votar. O único problema de não fazer a autocrítica é ficar num isolamento, e mesmo tendo uma parcela grande ainda do eleitorado potencialmente, como o segundo turno mostrou, não quer dizer que essas pessoas são eleitoras do PT, elas votaram em razão do adversário, que significava um perigo à democracia.

Outros não votaram mesmo assim. Ou seja, o PT tem que repensar essa sociedade, mostrar que vai fazer coisas diferentes, não só em relação à corrupção, mas em relação à política econômica profundamente equivocada no governo Dilma, a incapacidade de dar espaço para os outros partidos, a excessiva dependência de uma liderança carismática.

Isso é o lado do copo vazio. O lado do copo cheio, é que apesar de tudo, nem Ciro ou Boulos chegaram ao segundo turno, mas sim o PT, que continua sendo o maior partido da esquerda no país e vai continuar sendo, mesmo isolado. Mas se o PT continuar como esse partido principal, ele funciona como um limitador da possibilidade de voltarmos a ter uma esquerda competitiva no País.

Esse paradoxo… ele é pequeno demais para ser vitorioso em eleições importantes, sobretudo do sudeste para baixo, e por outro, é grande demais para permitir o crescimento de outros ao seu lado.

CC: Fernando Haddad saiu dessa eleição como uma liderança com mais potencial?

CCo: Tenho dúvidas. Por um lado, ele é claramente uma liderança capaz de expandir o espectro petista, mas por outro, é difícil fazer isso dentro do PT. O próprio partido não reconhece nele uma liderança com a qual se identifique. Aí ele tem uma limitação. Por um lado, o Haddad chegou onde ele chegou graças ao PT, que funcionou como uma plataforma, mas também age como limitador de um maior crescimento. Esse é o paradoxo.

CC: E o PSDB?

CCo:O PSDB foi de vez para a direita com a vitória do Doria que irá governar o principal estado da federação, onde o próprio PSDB governa há muito tempo. A tendência é que o centro de gravidade do PSDB esteja em SP, muito mais conservador do que aquele que seria expresso pelo PSDB tradicional.

Aquele velho PSDB, progressista, já era. A questão é saber quem vai ocupar esse espaço, talvez o próprio PT. Se fizesse isso iria justamente fazer aquele movimento de se repensar, reciclar sua imagem. Talvez o Ciro esteja tentando ocupar esse espaço mas tem também muita dificuldade. Ele mudou de partido muitas vezes, o PDT é um balaio de gato, tem o Ciro, tem figuras mais à esquerda, mas também tem o Amazonino Mendes. Difícil saber quem vai ocupar esse espaço do que foi outrora do PSDB mais progressista.

Todos os espaços que o PSDB já ocupou, seja de centro-esquerda ou centro-direita podem ser preenchidos por outras alternativas, como o NOVO ou o MBL, falando dos mais à direita.

CC: Você acha que a nossa democracia está em risco com o resultado dessas eleições?

CCo:Não tenho dúvidas, o risco é sério, já que o Bolsonaro não tem nenhum tipo de comprometimento com a democracia, muito pelo contrário. Ele é comprometido com valores autoritários.Sua tendência é tentar esfolar as instituições, para que elas não consigam controlar o próprio governante. O quanto ele vai poder fazer isso é uma questão em aberto. E é por isso que, se por um lado eu não tenho nenhuma dúvida em afirmar que há uma ameaça à democracia na figura do Bolsonaro e no governo dele, por outro lado eu digo que é uma ameaça, não digo que com certeza teremos uma ruptura autoritária.

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