Política

STF forma maioria para aprovar repasse de dados sem aval judicial

Ministros foram contrários à necessidade de que a Justiça autorizasse o compartilhamento de dados pela Receita e pelo Coaf ao MP

A ministra Cármen Lúcia. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)
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Com o voto da ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria suficiente para aprovar o compartilhamento de dados bancários e fiscais sigilosos sem necessidade de permissão da Justiça. Ela deu o sexto voto a favor.

O julgamento teve início em 20 de novembro, com o voto do relator do processo, presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. O magistrado votou pelo provimento do recurso e fez considerações em favor de que a administração pública tenha acesso a dados bancários e fiscais para apurar crimes. No entanto, propôs que o STF delimite normas de garantia do direito à intimidade e ao sigilo de dados dos cidadãos.

Contrário ao presidente da Corte, votou, em 21 de novembro, o ministro Alexandre de Moraes. Os magistrados Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux acompanharam Moraes em votação na quarta-feira 27.

Em julho deste ano, Toffoli havia determinado a suspensão de todas as investigações no Ministério Público e na Polícia Federal que, sem autorização judicial, utilizavam dados bancários e fiscais secretos, fornecidos por órgãos de controle, como o Banco Central, a Receita Federal e o antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – que agora se chama Unidade de Inteligência Financeira (UIF).

Em tese, estes órgãos de controle extraem dados das instituições financeiras, como os bancos, para fiscalizar os contribuintes e verificar indícios de crimes tributários. A Receita, por exemplo, tem o papel primário de fiscalizar movimentações financeiras em bancos para verificar a compatibilidade entre a declaração do imposto de renda do contribuinte e os valores reais que constam em sua conta. A partir disso, os órgãos de controle identificam eventual ato ilícito e, em seguida, repassam os dados sigilosos para o Ministério Público ou a Polícia Federal investigarem. A questão é se a Justiça deveria ou não permitir esse repasse.

O caso mais notório que foi suspenso com a decisão de Toffoli envolve o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), o filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro. Foi a pedido de Flávio que Toffoli decidiu suspender as investigações. Segundo a alegação do presidente do STF, houve quebra ilegal de sigilo bancário por parte dos procuradores do Ministério Público, que acessaram relatórios do Coaf sem que a Justiça permitisse.

Após o mandado de Toffoli, o Ministério Público interpôs um recurso contra a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que anulou ação penal por considerar ilegal o compartilhamento de dados obtidos pela Receita Federal com o Ministério Público sem autorização judicial.

O entendimento dos ministros

Cármen Lúcia defendeu a legitimidade e a obrigação de órgãos como o antigo Coaf em informar dados ao Ministério Público que possam ensejar investigações. Segundo a magistrada, sem acesso permitido ao Estado às fontes financeiras, o combate à criminalidade seria ineficaz.

“O envio de dados do UIF ao MP é função legalmente a ela conferida, resguarda o sistema jurídico e cumpre finalidade específica. Não pode ser considerada irregular”, considerou a ministra.

Ricardo Lewandowski, o voto seguinte ao de Cármen, frisou que não há quebra de sigilo quando o órgão de controle encaminha os dados ao Ministério Público, portanto, inexiste ferimento ao direito à privacidade.

“Não configura violação do dever de sigilo ‘a comunicação às autoridades competentes da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa'”, afirmou, citando lei que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras.

Gilmar Mendes afirmou que a Receita deve repassar ao Ministério Público todas as informações imprescindíveis para viabilizar a ação penal, ou seja, que demonstre a constituição definitiva do crédito tributário em face do contribuinte. Portanto, o ministro considerou “temerário” estabelecer, de forma taxativa, quais informações podem ou não constar na representação fiscal para fins penais.

“Nesse ponto, divirjo da proposta apresentada por Vossa Excelência [ministro Dias Toffoli] para não estabelecer a impossibilidade de compartilhamento no âmbito restrito da representação fiscal para fins penais de documentos como declarações para imposto de renda ou extrato bancário”, afirmou. “Ressalvo, no entanto, que tais documentos só poderão ser objeto de compartilhamento na medida em que forem estritamente necessários para compor indícios de materialidade nas infrações apuradas.”

Em relação ao antigo Coaf, Gilmar Mendes concordou com Dias Toffoli e afirmou que o repasse de dados deve ter observância judicial. O ministro verifica abusos na relação entre o Ministério Público e o antigo Coaf, em situações em que agentes do MP requisitam Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) ao órgão por vias que ele chamou de informais e ilegítimas. Segundo ele, esses relatórios não podem ser utilizados como prova em investigações criminais.

“Dessa forma, é absolutamente vedado o intercâmbio aberto de informações entre o Ministério Público, a Polícia Federal e a UIF, para a obtenção de dados bancários e fiscais sigilosos. Na práxis institucional, o que se observa, muitas vezes, é um abuso das autoridades competentes na utilização dessa via de disseminação a pedido. Em casos concretos, deparamo-nos com situações em que as requisições para a elaboração de RIFs são encaminhadas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal por comunicação eletrônica simples ou outros meios de comunicação não-rastreáveis”, disse.

O ministro Marco Aurélio de Mello divergiu da maioria do STF e negou provimento ao recurso do Ministério Público. Em sua avaliação, o processo se tornou “momentoso”, porque ganhou uma conotação de processo objetivo ao atender o requerimento do senador Flávio Bolsonaro e ao suspender uma multiplicidade de procedimentos criminais no país, o que prejudicou a jurisdição na área da persecução penal.

O magistrado também questionou o uso da expressão “compartilhamento” para o que ele considera quebra de sigilo. Segundo ele, a Constituição diz ser inviolável o sigilo.

“Aliás, surge uma ironia. A Receita, parte na relação tributária, pode quebrar o sigilo de dados bancários, mas o Ministério Público não pode. Daí o surgimento desse vocábulo que passou a ser polivalente que é o vocábulo ‘compartilhamento’. E ouvi, em voto, que há de se viabilizar esse compartilhamento a todos os órgãos de investigação, não apenas ao Ministério Público. Quem sabe, também, às autoridades policiais. Presidente, a legitimidade das decisões do Supremo, hoje, são muito questionadas”, disse Marco Aurélio de Mello.

Último a votar, o ministro Celso de Mello também negou provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Ao mesmo tempo, considerou legítimo o compartilhamento de dados pelo antigo Coaf.

“Revogo a tutela provisória concedida neste recurso extraordinário pois considero plenamento legítimo o compartilhamento pela Unidade de Inteligência Financeira do Brasil, o antigo Coaf, do que se contiver em seus Relatórios de Inteligência Financeira, os RIFs, com os órgãos de persecução criminal, para fins de natureza penal, recaindo, sobre o Ministério Público e a Polícia Judiciária o dever de preservar o sigilo de tais dados e informações que lhes foram transmitidos”, concluiu.

Mesmo com maioria para aprovar o compartilhamento de dados sem permissão judicial, os ministros ainda terão de formular uma tese para ser aplicada nos processos. O debate sobre o tema, então, deve ocorrer na quarta-feira 4.

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