Política

Sem remédio

O Brasil padece com a falta de insumos para a indústria farmacêutica

Na ponta. Ruth Rodrigues e Wagner Silva saíram da UBS República sem os medicamentos que precisavam - Imagem: SMS-PMPA e Mariana Serafini
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“A cada três meses eu me consulto com o psiquiatra e venho pegar o remédio no posto, mas faz dois meses que não encontro. Tenho uma reserva e ainda não precisei comprar. Não tenho nem ideia de quanto custa. O problema é que não posso ficar sem”, comenta Wagner Silva, paciente em tratamento de depressão que não encontrou Sertralina na farmácia da UBS da República, no Centro de São Paulo. O medicamento é da classe dos inibidores seletivos de receptação de serotonina e seu preço varia de acordo com a dosagem, pode custar de 30 reais a 100 reais. “Recebemos 5 mil caixas, mas acabou. Tente ir na farmácia da Sé ou do Metrô ­Anhangabaú, pode ser que lá ainda tenha”, sugere a atendente da unidade de saúde.

O Brasil passa por uma epidemia de casos de depressão. No período da pandemia, os diagnósticos de quadro depressivo aumentaram em 40%, segundo um estudo realizado pela Vital Strategies, organização global de saúde pública, e pela Universidade Federal de Pelotas. Se em 2019, 9,6% da população era diagnosticada com a doença, no primeiro semestre de 2022 esse número saltou para 13,5%. Mas não é exatamente o aumento da demanda o responsável pelo desaparecimento da Sertralina.

Com capacidade de produzir apenas 5% dos insumos farmacêuticos necessários para o abastecimento nacional, o Brasil vê-se refém do mercado externo, que não tem suprido a demanda mundial. Com isso, os postos de saúde, os hospitais, as farmácias populares e até mesmo as grandes redes privadas de drogarias têm sofrido com a escassez de medicamentos.

A escassez de medicamentos atinge oito em cada dez cidades, revela pesquisa

Oito em cada dez cidades brasileiras enfrentam o problema, revela uma pesquisa divulgada, em julho, pela Confederação Nacional dos Municípios. E não são apenas os remédios de uso contínuo que estão em falta. A carência do antibiótico Amoxicilina foi apontada por 68% dos gestores municipais. Já a ausência do analgésico e antitérmico Dipirona na rede­ de atendimento municipal foi citada por 65,6%. A Dipirona injetável, largamente utilizada nos hospitais, desapareceu em 50,6% das prefeituras.

Outro estudo, recém-divulgado pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, revela que o desabastecimento atinge 98,4% das drogarias no estado. Os medicamentos mais citados são os antimicrobianos (em falta em 96% dos estabelecimentos), os mucolíticos (85,2%), os anti-histamínicos (84,7%) e os analgésicos (61,3%). A lista é longa, parece não ter fim.

“Hoje não tinha Amoxicilina. Nunca saio daqui com todos os remédios”, lamenta Ruth Rodrigues, mãe de dois filhos e à espera do terceiro. Ela chegou à UBS República por volta das 18h15, próximo do horário de fechamento da farmárcia. “Sempre que venho falta alguma coisa. Ultimamente, está difícil encontrar ácido fólico e sulfato ferroso (suplementos recomendados às gestantes) e pomadas para assadura.” O antibiótico em falta custará ao menos 30 reais, especula a desempregada, que não sabe mais como manejar o apertado orçamento doméstico após os sucessivos rejustes de itens básicos, como as fraldas e o leite das crianças.

Temporão. “Só não temos capacidade produtiva por uma opção deliberada da maioria dos governos que passaram” – Imagem: Pablo Valadares/Ag.Câmara

O pior é a ausência de perspectiva de melhora. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria e Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), o Brasil importa 95% dos princípios ativos usados na fabricação de remédios, sobretudo da Índia e da China. Com a pandemia da Covid-19, esses países não têm dado conta de atender à necessidade mundial. A guerra na Ucrânia e os recorrentes lockdowns chineses contribuíram para agravar o problema. Em outras palavras, o País está refém do mercado externo, sem condições de aumentar a produção de medicamentos por falta de insumos.

Ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, José Gomes Temporão explica que o calamitoso cenário é fruto de uma desindustrialização do complexo da saúde iniciada nos anos de 1990, a partir do governo de Fernando Collor. “Infelizmente, não há nada que o Brasil possa fazer no curto prazo, porque dependemos totalmente dos princípios ativos produzidos na Índia, na China, na União Europeia e na América do Norte. Só vamos mudar esse quadro com um programa ousado, com grandes investimentos”, afirma. “A falta de insumos insere-se dentro de múltiplas dimensões que afetam o SUS como um todo. Repare: o que estamos discutindo aqui tem interface com as políticas industrial, de ciência, tecnologia e inovação e da saúde. O governo precisa enfrentar, com urgência, os problemas existentes em cada um desses três eixos.”

Para ampliar a produção nacional de insumos farmacêuticos para 20%, seriam necessários dez anos de investimento pesado em pesquisa, ciência, tecnologia e industrialização, estima o presidente da Abiquifi, Norberto Prestes. Na tentativa de amenizar a situação, o governo federal, por meio da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), autorizou a suspensão do preço máximo para a aquisição de remédios em falta. Até julho, os preços de nove substâncias foram reajustados, número que deverá saltar para ao menos 20 até o fim de 2022. A “solução” traz, porém, impactos no orçamento do SUS e das famílias brasileiras, que há tempos padecem com a perda de renda e a elevada inflação. Pior, o Ministério da Saúde nem sequer tem um prazo em vista para normalizar o abastecimento.

Em torno de 95% dos insumos são importados. Mas o País nem sempre foi tão dependente

Recuperar a capacidade de fabricar insumos é uma questão de segurança nacional, acrescenta Temporão. “Estamos vulneráveis à chegada de novas pandemias e totalmente sem defesa”, alerta. “O atual governo, por exemplo, faz questão de destruir a indústria brasileira. É patético ver o Brasil se transformar em um mero exportador de commodities, como soja, carne e minérios. Nenhum país do mundo desenvolvido conseguiu prosperar sem desenvolver ao mesmo tempo uma base produtiva robusta, e a área da saúde está na fronteira das tecnologias do futuro.”

Durante a sua gestão, o ex-ministro procurou reduzir o quadro de dependência, mas as iniciativas não tiveram continuidade após o impechment de Dilma Rousseff, queixa-se. “Instituímos uma política de internalização de tecnologias estratégicas. Fizemos isso usando o poder de compra do Estado, e o estabelecimento de parcerias entre laboratórios privados e públicos, como a ­Fiocruz e o Butantan, com apoio do BNDES. Chegamos a ter cerca de 80 projetos do que chamamos de ‘parceria de desenvolvimento’”, comenta. “É possível resolver o problema, mas a saúde não pode ficar ao sabor de disputas ideológicas ou políticas. Não se pode pensar em projetos de governo, com quatro anos de duração. É preciso estabelecer metas de longo prazo, de três ou quatro décadas. Só assim poderemos recuperar a nossa capacidade produtiva e reduzir a dependência.”

O ex-ministro enfatiza que o Brasil tem todas as condições para reverter o quadro: um grande mercado consumidor, um sistema universal de saúde, um órgão regulador reconhecido internacionalmente, uma base produtiva industrial relevante, centros de pesquisa e universidades de grande prestígio. “Só não temos capacidade produtiva local porque isso foi uma postura deliberada da maioria dos governos que passaram.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem remédio”

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