Política

Relator da ONU: novo marco do saneamento pode aprofundar desigualdade

Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador Léo Heller diz que projeto a ser votado no Senado vai na contramão de tendência mundial

O relator da ONU sobre direitos à água e esgotamento, Léo Heller. Foto: Reprodução/TV Brasil
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Uma das prioridades do Senado Federal para 2020 é a votação do novo marco regulatório do saneamento básico, que facilita a privatização de companhias estatais responsáveis pela distribuição de água e esgoto no Brasil. O projeto de lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 11 de dezembro e deve receber a avaliação dos senadores até março.

As novas regras modificam a Lei 11.445, fundada em 2007, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A legislação definiu competências para as execuções de políticas de saneamento e atribuiu ao governo federal, por meio do Ministério das Cidades, a responsabilidade pela elaboração do Plano Nacional do Saneamento Básico (Plansab).

Anos depois, o panorama do acesso ao saneamento continua alarmante. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relacionados a 2018, indicam quase 24 milhões de casas sem escoamento de esgoto, entre os 71 milhões de domicílios que existem no Brasil. Para 12 milhões de residências, falta coleta de lixo e, em 10 milhões, não há distribuição de água.

Diante desse cenário, o governo do presidente Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional querem deixar a solução do problema para as mãos do setor privado. Segundo o relator do projeto na Câmara, o deputado Geninho Zuliani (DEM-RJ), é preciso investir 600 bilhões de reais nos serviços de saneamento, e esse dinheiro “só pode vir das empresas privadas”.

 

Relator do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos à Água e ao Esgotamento Sanitário, o brasileiro Léo Heller é contrário ao novo marco regulatório. Segundo ele, uma das principais consequências da medida deve ser o aprofundamento da desigualdade no acesso ao saneamento, porque, em sua visão, o projeto não prevê a garantia do fornecimento de água e esgoto como direito humano e é omisso em relação à definição de tarifas.

Léo Heller é engenheiro civil, mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e doutor em Epidemiologia, com pós-doutorado na Universidade Oxford. Hoje, é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e atua como relator da ONU desde 2014 e deve permanecer no posto até novembro de 2020. Nesta função, participa do monitoramento da garantia dos direitos humanos no mundo, produz relatórios e realiza visitas em diversos países, entre outras atividades.

Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador aponta que, diferente da opinião dos defensores do novo marco regulatório, a tendência mundial é de reestatização dos serviços. Ele estima que, nas últimas duas décadas, houve cerca de 310 casos de reestatização do fornecimento de água e esgoto em países como França, Alemanha, Argentina, Bolívia e Moçambique. Este movimento foi registrado pelo Instituto Transnacional (TNI).

Entre os principais problemas da privatização, de acordo com Heller, estão o aumento de tarifas, a falta de interesse das empresas em atender municípios longínquos e a transferência maciça de recursos públicos para as companhias.

Confira, a seguir, a entrevista na íntegra.

Saneamento básico atinge milhões de brasileiros. Foto: Arquivo/Agência Brasil

CartaCapital: Qual a tendência mundial em relação à gestão dos serviços de saneamento básico?

Léo Heller: Tem se identificado em muitos países uma tendência a resgatar os serviços para as mãos do poder público. Esse processo tem sido denominado de remunicipalização, porque em geral é o município que reassume os serviços. Os serviços, em geral, são locais, é o poder local que privatiza. Houve casos na América Latina, tem o caso clássico que foi o de Buenos Aires, existem dois importantes na Bolívia, também nos Estados Unidos. A Europa talvez seja a região onde ocorra o maior número de casos de remunicipalização. Há uma grande concentração na França. Foi o país com o caso mais emblemático, porque duas grandes multinacionais de água e esgoto têm sede em Paris. Também houve remunicipalização nas cidades de Berlim e Budapeste. Tem casos na África e na Ásia. Então, essa tendência é bastante distribuída pelos continentes. Houve uma atualização recente que identifica que, desde 2000 até 2019, já são cerca de 310 casos de remunicipalização.

É importante dizer que não é a única tendência. Alguns outros países têm caminhado na direção da privatização. Um exemplo que sempre é mencionado é a China. Tem diferentes modalidades de contrato, não necessariamente o contrato clássico de concessão de serviços. Às vezes, utiliza-se uma modalidade em que a empresa é contratada para construir uma parte do sistema, opera essa parte durante alguns anos e depois a transfere para o poder público.

Outra tendência que tem havido no sentido de participação privada é o que se chama de financialização. Significa que fundos de investimentos, empresas de seguro, que ficam com o capital muito imobilizado e necessitam identificar formas de aplicar esse capital, têm investido, em alguns casos, em adquirir ações de companhias públicas de saneamento. Isso é uma tendência que tem ocorrido, alguns autores têm identificado uma certa transição desde aquela forma mais clássica de concessão de serviços para essa forma de financialização.

“Há um dogma por trás dessa mudança da legislação de que o serviço público não funciona no Brasil e de que precisamos substituí-lo pelo privado”, afirma Léo Heller.

O que preocupa é que, nesse caso, o saneamento é tratado de forma muito dura, como uma commodity, uma forma de reproduzir capital. Então, esses investidores, alguns até são fundos de pensão de empresas públicas. Tem um fundo de pensão de trabalhadores de uma empresa do Canadá, por exemplo, que tem adquirido ações de companhias. Quer dizer, o problema é que esses financiadores, investidores, não estão interessados em prestar serviços de água e esgoto, estão interessados em reproduzir o capital. Então, o saneamento perde completamente o seu papel de serviço com uma função social, que visa garantir o direito humano ao acesso a esse serviço.

Em linhas gerais, eu diria que uma tendência muito predominante é a de remunicipalização. Essa questão é importante porque tudo indica que a iniciativa de alteração da lei brasileira não fez esse dever de casa, de fazer uma revisão de literatura sobre o que ocorreu com a privatização em outros países, se está havendo uma tendência de remunicipalização, qual é a razão disso, o que motiva os municípios a não renovarem contratos ou até romperem contratos no meio do caminho, com ônus. Há um dogma por trás dessa mudança da legislação de que o serviço público não funciona no Brasil e de que precisamos substituí-lo pelo privado.

CC: O que explica a tendência de reestatização?

LH: São diferentes motivações, depende do contexto. Mas pode-se dizer que a remunicipalização é motivada por insatisfação com a prestação de serviços privados. A insatisfação pode ser oriunda de diferentes aspectos. Um deles é o aumento de tarifa. Não estou dizendo que isso aconteceu em todos os lugares. Em alguns lugares pode ter sido o aumento excessivo de tarifa e a não-expansão dos serviços para as áreas mais pobres. O caso de Paris é bem emblemático sobre isso, quando o município se sente muito alijado do processo de tomada de decisão, de o que fazer com o recurso. Há muitos insatisfeitos, inclusive, com a maciça transferência de lucros para a empresa privada.

Hoje, eu tenho tido contato com o gestor do serviços de Paris. Ele fala muito claramente : “Olha, agora, nós estamos cobrando menos, investindo mais no sistema, olhando mais para a dimensão dos direitos humanos. Nós estamos, por exemplo, assegurando acesso à água para a pessoa que vive em situação de rua, sem cobrança”. Tudo com recursos arrecadados do próprio sistema, o que não ocorria antes. Então, as razões da insatisfação são variadas, dependendo da situação, mas tem ocorrido.

CC: Em entrevista a CartaCapital, em julho de 2019, o relator do projeto na Câmara, deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), afirmou que é preciso investir 600 bilhões de reais no sistema de saneamento e disse que esse dinheiro só pode vir do mercado financeiro. Segundo o parlamentar, a ideia é basear o marco em três pilares: investimento, concorrência e regulação. Quais são os principais problemas do texto que tramita no Congresso Nacional?

LH: São vários. Mas acho que eu posso começar a responder falando sobre esses três pilares do relator. Então, ele fala em regulação. Tem muita literatura que diz que um serviço como o de saneamento é um serviço denominado de monopólio natural. O que é um serviço de monopólio natural? Nós não temos mais de um prestador de serviço, como a telefonia, por exemplo. Então, em cada cidade, existe um prestador. Nós não temos a opção de receber água desse prestador ou de outro, é sempre um só. Isso caracteriza um monopólio natural. O que a literatura fala? Que sempre é muito difícil uma regulação independente nesses casos. Existem muitas e muitas evidências de situações em que houve uma captura do regulador pelos interesses do empresário. Tem muitos reguladores que olham de fato para a saúde financeira da empresa e não para o interesse da população. Então, esse é um dos pilares.

O segundo pilar: concorrência. Eu respondi. Porque em termos de monopólio natural não tem concorrência. Quer dizer, pode haver uma concorrência, num primeiro momento, quando você faz uma licitação. Então você tem mais de um competidor na licitação e escolhe. Depois que se contrata, a concorrência deixa de existir, porque você fica com um prestador único, o que dificulta a regulação.

E o terceiro pilar dele é a atração de capital privado, mas isso também é discutível. Tem muitos estudos que mostram que as empresas não levam recursos delas quando existe privatização. Elas usam principalmente de recursos arrecadados pelas tarifas, pelo pagamento dos serviços dos usuários, ou quando precisam contrair um empréstimo para alguma obra, o empréstimo vem do poder público. No Brasil, o BNDES tem uma tradição de emprestar para as empresas privadas. Então, fica a pergunta: por que o poder público não empresta para os próprios prestadores públicos?

Então, de novo. Será que o relator Geninho fez um estudo sobre em que medida as empresas privadas têm aportado novos recursos nos processos de privatização ao redor do mundo? Eu, pessoalmente, sou cético em relação a isso. Acho que não virá na proporção esperada pelo governo.

O deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP), relator da proposta. (Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)

Aí você pergunta sobre os problemas na legislação. Bom, basicamente é uma lei que foi concedida para expandir a privatização. Expandir com a licitação a cada caso, município por município ou por blocos de municípios, eliminando o contrato de programa. Então, depois dessa lei, se ela for aprovada, elimina-se a possibilidade de o município recorrer ao Estado, à companhia estadual, e tem que necessariamente abrir uma licitação para a prestação de serviço. Em alguns casos, pode ser que a companhia estadual vença a licitação. Mas em outros, não. Portanto, fica uma incerteza enorme. Há ainda uma certa tendência de transferência dos serviços para as empresas privadas, e elas vão trabalhar muito fortemente para assumirem as cidades mais rentáveis, as capitais, os municípios de maior porte populacional, porque esses locais são mais atrativos financeiramente. Outra modalidade é a venda das companhias estaduais. Há uma indução muito forte na lei para que as companhias estaduais sejam vendidas.

Então, de duas maneiras, o que o projeto faz é apontar para uma exclusão ou uma diminuição radical da prestação pública dos serviços de saneamento. Não estou fazendo nenhuma inferência, isso está no discurso do relator e dos promotores do projeto. Eu vejo isso com preocupação. Não estou dizendo que qualquer forma de privatização é nociva, é negativa, o que me preocupa é uma reorientação tão radical da forma como o serviço está sendo prestado no Brasil com essa lei.

É interessante, eu tenho participado de alguns debates. Um que me marcou muito foi um debate naquele programa chamado Painel, da GloboNews. Eu estava junto com dois defensores do projeto: o presidente da entidade Trata Brasil e uma pessoa que estava muito envolvido na minuta do projeto na época, quando estava tramitando no Senado [A edição do programa foi exibido em 18 de maio e teve a participação de Edison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil, e de Sílvio Coelho, assessor técnico responsável pelo relatório de uma Medida Provisória que atualizou as regras do saneamento].

“Existe essa combinação: deterioração da qualidade do serviço na pré-privatização e grande impulso do setor público na pós-privatização, para que o serviço melhore. Isso dá à população uma sensação de mudança”, opina pesquisador.

A racionalidade que eles usavam para defender o projeto era tão tosca, na minha opinião, que eles falavam assim: “Olha, a Lei 11.445, que é a que está sendo principalmente alterada, foi aprovada em 2007, hoje nós temos 100 milhões de pessoas sem acesso a esgoto, portanto a lei errou. O modelo implantado pela lei errou porque nós continuamos a ter muitas pessoas sem esgoto. E essa lei é muito estatista, e ela errou na dose do estatismo, então a saída é privatizar”. É um argumento, ao meu ver, frágil, porque o que faz aumentar o acesso ao serviço não é uma lei, é uma política pública. Lei não é uma política pública. Eu reconheço que de 2007 para cá nós poderíamos ter avançado mais, isso se deve a uma implementação não muito completa da lei. Ou seja, a política pública não foi a melhor. Esse é um problema no raciocínio.

O outro problema é que “a lei é estatista”. Ela não é estatista, ela permite a participação privada claramente. E daí o corolário do raciocínio é “então vamos privatizar”. Mas qual a evidência de que a privatização é o caminho e que a prestação pública não é? Evidentemente, por trás dessa lei existe um viés ideológico neoliberal de não acreditar de forma alguma na atuação do Estado e de achar que a iniciativa privada é sempre mais eficiente, ela que vai aplicar recursos, ela que vai garantir saneamento para os pobres. Ao meu ver, tem grandes equívocos.

CC: Numa tentativa de dar nomes aos reais interessados nesse marco, o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) critica o projeto e diz que o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), um dos precursores da nova regulação no Congresso, tem ligações com a Coca-Cola [associação já foi feita por reportagem do site The Intercept Brasil em 2017]. O senhor consegue enxergar, na prática, quem está por trás do novo marco? A que setores do mercado esse marco atende?

LH: Olha, certamente a lei teve uma influência muito forte de um lobby das empresas privadas, mas eu tenho um pouco de dúvidas se empresas com o perfil da Coca-Cola estão por trás disso. Pode ser que eu não esteja enxergando alguma coisa. Mas, em geral, as empresas que pressionam por este tipo de alteração são concessionárias de serviços de água e esgoto. Tem um conjunto de empresas no Brasil que estão sob a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) e que atuam no saneamento por meio de concessão do serviço. Então elas assinam o contrato, de 30 anos em média, para isso. Elas já estão presentes em várias cidades do Brasil.

No Rio de Janeiro tem várias, na Região dos Lagos, Petrópolis, São Paulo, Limeira, Manaus. Já tem uma proporção da população brasileira atendida por essas empresas. Tenho a impressão de que elas tenham sido os principais atores, fizeram o mais forte lobby para que isso acontecesse. Existe uma dúvida, eu não tenho uma análise clara sobre isso, do papel que jogaram os governadores, ou alguns governadores. Há alguns analistas que acham que os governadores, na reta final da negociação, acabaram apoiando o projeto, com interesse, talvez, de vender as suas empresas estaduais. Isso, ao meu ver, precisa ser mais bem mapeado, mais bem entendido.

CC: Em um estudo de 2011, chamado “Privatização dos serviços de saneamento: uma análise qualitativa à luz do caso de Cachoeiro de Itapemirim (ES)”, o senhor escreveu que, apesar dos problemas acarretados pela desestatização na cidade, houve a percepção, por parte da população, “de grande melhoria na qualidade dos serviços prestados após a privatização”. Como é possível convencer os brasileiros de que o serviço público tem sido o melhor caminho se, num caso de privatização, que o senhor relata na pesquisa, as pessoas enxergaram grande melhoria?

LH: É uma boa pergunta, e você me coloca aí na contingência de ter que explicar o que eu mesmo escrevi. Em geral, quando um prefeito decide privatizar, ou um governador, eles começam a estrangular as empresas públicas e os serviços se deterioram muito rapidamente. Isso é muito fácil de fazer. Basta não alocar o orçamento, não autorizar contratação de pessoal, funcionários se aposentam e não há substitutos. Então, estrangula-se o orçamento ao ponto de uma empresa, por exemplo, não conseguir comprar cloro para tratar a água. Isso tem sido muito frequente nos processos de privatização: você estrangula, o serviço passa a ser muito mal prestado, a população fica insatisfeita e agradece quando há uma substituição.

No caso de Cachoeiro, teve um outro componente. O prefeito, na época, no início dos anos 2000, assumiu a prefeitura, foi à Brasília, no órgão que era responsável por saneamento na época, e disse: ‘Olha, eu estou muito preocupado com a situação do saneamento no meu município, eu queria saber se haveria alguma maneira de o governo federal apoiar Cachoeiro com algum recurso, alguma assistência técnica’. E o governo federal falou assim: ‘Olha, privatize. Se você privatizar, a gente garante apoio’. Então, veja bem, o governo federal fez uma indução, não só ideológica, mas uma indução, no ponto de vista de condicionar um apoio financeiro à privatização. Isso me parece que foi uma das causas de ter sido privatizado e por que, após a privatização, o serviço melhorou. Porque houve injeção de recursos públicos para a empresa privada para que ela investisse e melhorasse o serviço.

Portanto, eu diria que existe essa combinação: deterioração da qualidade do serviço na pré-privatização e grande impulso do setor público na pós-privatização, para que o serviço melhore. Isso dá à população uma sensação de mudança, e com razão. Se eu fosse um habitante de Cachoeiro, eu responderia assim também, que depois da privatização, tudo melhorou.

CC: O senhor afirmou que a implementação da lei de 2007 apresentou problemas. O que o Estado deveria fazer, em vez de instituir o marco do saneamento básico que está em tramitação?

LH: A lei poderia ser um pouco melhor, toda lei tem imperfeições, mas o que eu mencionei é que a política pública que deveria ter sido implementada para dar consequência à lei teve problemas. Por que ela teve problemas? A lei é de 2007. Nós tivemos alguns períodos de alto investimento, de aumento de recursos não onerosos ao serviço, o FGTS ajudou muito. A gente percebeu isso entre 2006 e 2010, aproximadamente, com grande impulso ao saneamento por parte do governo federal, na época do Ministério das Cidades, em uma gestão interessante para o saneamento. Isso demorou um pouco, o início desse processo foi problemático porque o setor estava paralisado há muitos anos. E quando ele se paralisa, se desmobiliza, você não tem projetos prontos, não tem empresas de engenharia mobilizadas.

Depois de 2010, começou a haver muita oscilação no financiamento, aproximadamente em 2014. Em seguida, houve a desmobilização do Ministério das Cidades, no ano passado. Então, o que está havendo? É uma descontinuidade muito grande na política. Considerando o déficit que o Brasil tinha acumulado em 2007, era necessário um esforço muito continuado para modificar esse quadro de uma maneira mais rápida, sem essas oscilações que são muito fatais para uma boa política de saneamento.

O governo demorou muito a elaborar o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Depois de aprovado, ele não foi completamente implementado. Hoje, a minha impressão é de que nem se olha para o Plansab para uma política pública de saneamento. Um setor como esse, com o déficit que tem, sem um plano nacional bem implementado, é problemático. Por isso, a política pública tem sido problemática. E eu diria que 12 anos, 13 anos de uma lei não é um período tão longo para a gente sair de uma situação de déficit para uma situação de pleno acesso da população.

Deputados miram empresas públicas de saneamento básico em projeto aprovado na Câmara. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Agora, você pergunta qual é o melhor modelo. Não tem receita pronta. Tem que respeitar as particularidades de cada região, de cada município, de cada contexto. Eu penso que o serviço público, com muito apoio dos governos municipal, estadual e federal, bem gerido, com profissionalismo, com planejamento, pode ser uma interessante solução. Nós temos muitos municípios no Brasil que têm serviços municipais, às vezes, estaduais, com serviços muito adequados. Não penso que esse é o problema.

Cada município deve escolher, e não haver uma imposição do governo federal para um ou outro tipo de serviço. A Lei 11.445 não impôs. Essa lei está impondo, de uma maneira um pouco sutil, porque é por meio de indução, aquela velha forma que o governo federal usa: “Ou você faz assim ou você não tem acesso a recurso federal”. É isso o que a lei faz: ou você cria blocos regionais, ou você promove licitações, ou você vende a sua companhia estadual, ou você não terá recursos do governo federal. É uma maneira eficiente de fazer com que estados e municípios obedeçam.

Mas tem um aspecto que eu queria mencionar, que é o absoluto desconhecimento ou ignorância à água e esgoto como direitos humanos. Isso, ao meu ver, é imperdoável. O Brasil é signatário de uma resolução que reconhece água e esgoto como direitos humanos, e a lei simplesmente se omite em relação a isso. Isso tem muitas consequências. Uma consequência, por exemplo, é de que a lei é muito omissa quanto à acessibilidade financeira, que é um dos princípios dos direitos humanos. Não há na lei uma efetiva proteção à população mais pobre para acesso ao serviço. Isso é muito vago na letra da lei, inclusive quando define a função da Agência Nacional de Águas (Ana) como a nova agência que vai estabelecer diretrizes regulatórias. É muito vaga a forma como fala como a Ana deve definir tarifas.

Quer dizer, os pobres não estão sendo olhados mais uma vez. É, mais uma vez, uma legislação que muito possivelmente terá como consequência aprofundar a desigualdade que existe no acesso ao serviço no Brasil.

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