Política

Reforma da Previdência revela brechas que colocam STF contra a parede

Proposta mexe com a idade mínima de aposentadoria dos ministros e afrouxa regras de composição da corte

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Durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro fez uma proposta envolvendo o Judiciário que causou preocupação. Sua ideia era mudar a composição do Supremo Tribunal Federal (STF), ampliando o número de ministros de 11 para 21. Essa medida daria ao hoje presidente da República a prerrogativa de nomear esses dez novos magistrados, formando uma corte alinhada aos interesses do governo.

A proposta foi criticada por ser um ataque à separação de poderes, uma das bases da democracia. Comentaristas lembraram que ela remetia ao que Hugo Chávez fez na Venezuela em outubro de 2003, ao ampliar a Corte Suprema de 20 para 32 juízes. A medida garantiu ao chavismo o controle do Judiciário.

Diante das críticas, antes do primeiro turno, Bolsonaro disse que “praticamente” havia abandonado a ideia. A reforma da Previdência indica, no entanto, que o tema ainda é importante para o governo.

Desde a quarta-feira passada, dia 20 de fevereiro, quando a proposta de Reforma da Previdência” chegou ao Congresso, análises detalhadas do texto encontraram vários “jabutis” – jargão político para medidas estranhas ao tema central de uma matéria legislativa, mas mesmo assim contrabandeadas para dentro do projeto. Uma delas afrouxa as regras para a mudança de composição do STF.

O ponto em questão altera o artigo 40 da Constituição, que trata da aposentadoria de servidores públicos. Atualmente, uma das diretrizes previstas neste trecho determina aposentadoria compulsória aos 75 anos. A regra vale, entre outros servidores, para os ministros do Supremo. O texto da reforma da Previdência retira do artigo 40 da Constituição a referência aos 75 anos e determina que a idade da aposentadoria compulsória será determinada por uma “nova lei complementar”.

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Manobra perigosa

O impacto da mudança é significativo. Para mudar a idade da aposentadoria compulsória, é preciso alterar a Constituição. Para isso, são necessários 49 votos no Senado e outros 308 na Câmara, em dois turnos. Uma lei complementar, por sua vez, exige apenas 41 votos no Senado e 257 na Câmara, em turno único. Assim, a nova idade de aposentadoria dos integrantes da mais importante instituição do Judiciário poderia ser alterada mais facilmente.

“Essa medida é extremamente grave pois se trata, evidentemente, de uma manobra para colocar contra a parede o Supremo Tribunal Federal”, afirma o deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara. “Se essa proposta passar com essa redação, e eles [os ministros] eventualmente desagradarem o governo, ficarão à mercê de um projeto de lei complementar para que o presidente mande à aposentadoria quem quiser”, diz.

Molon foi o primeiro parlamentar a alertar sobre o “jabuti” do STF. Para ele, a medida é inspirada em ações de governos europeus vistos como autoritários, como os de Viktor Orbán, na Hungria, e do partido PiS, na Polônia. Ambos buscaram retirar força do Judiciário de seus países.

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Orbán conseguiu, em 2012, reduzir a idade compulsória de aposentadoria no Judiciário húngaro de 70 apara 62 anos, o que permitiu ao governo nomear mais de 200 juízes em poucos meses. O governo do PiS assinou em 2018 a redução da idade de aposentadoria dos magistrados de 70 para 65 anos, mas diante da pressão da União Europeia abandonou a controversa reforma. “São governos autoritários, admirados publicamente pelo presidente da República, então não há razão para não imaginar que seja isso que ele queira”, diz Molon.

Orbán esteve na posse de Bolsonaro, em Brasília, e dias depois classificou o Brasil de “mais apta definição de democracia cristã moderna”. O presidente da Polônia, Andrzej Duda, encontrou Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, e disse que ambos compartilham os mesmos valores.

Gigantesca margem de insegurança

Para o professor de Direito Rubens Glezer, da Fundação Getúlio Vargas e um dos coordenadores do centro Supremo em Pauta, dedicado à observação do Supremo Tribunal Federal, o “jabuti” embutido na reforma da Previdência abre uma “gigantesca margem de insegurança”.

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Glezer destaca que, numa Constituição, documento que lança as bases de funcionamento de um país, alguns temas são protegidos e colocados atrás de votações complexas para evitar casuísmos. É o caso da aposentadoria compulsória dos ministros do STF. “A mudança na Constituição tem processos lentos, desenhados assim para evitar que uma maioria de ocasião tome uma decisão oportunista ou apressada”, afirma Glezer. “Quando você desconstitucionaliza, você permite que maiorias conjunturais alterem o sistema”, afirma.

O professor da FGV lembra que não é preciso recorrer aos exemplos europeus para salientar o potencial autoritário da medida. Em 1965, Castello Branco, primeiro presidente da ditadura, ampliou de 11 para 16 o total de ministros no Supremo Tribunal Federal. Quatro anos depois, Costa e Silva fez um expurgo no STF ao aposentar compulsoriamente três ministros que considerava incompatíveis com o regime. “Tanto o candidato Bolsonaro quanto o governo têm sinalizado que não existe uma diferença entre governo e Estado e que há uma tentativa de minar a separação de poderes”, diz.

Além do “jabuti”, a base de apoio a Bolsonaro tem uma outra estratégia para enfrentar o STF. É a revogação da chamada “PEC da Bengala”, a Proposta de Emenda à Constituição que elevou a idade de aposentadoria compulsória no STF de 70 para 75 anos. Essa PEC foi aprovada em 2015, no início do segundo governo de Dilma Rousseff (PT). A proposta foi articulada pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que agiu para tirar poder da petista e reduzir o número de ministros que ela poderia indicar ao Supremo.

Atualmente, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) coleta assinaturas para revogar a PEC, o que faria os ministros do STF se aposentarem com 70 anos e não mais 75. “Eu quero causar desconforto para o Supremo”, disse ela à Folha de S. Paulo.

Se revogada, a PEC permitirá que Bolsonaro nomeie quatro integrantes do Supremo em vez de dois. Para Glezer, a eventual revogação da PEC da Bengala é casuística, assim como foi sua aprovação, só que mais grave justamente pelo contexto de pressão sobre o Judiciário exposto na reforma da Previdência. “Em 2015 estávamos em meio a uma disputa entre o Legislativo e o Executivo, mas agora teríamos uma união do Executivo e do Legislativo para apagar o Judiciário”, afirma.

Molon, o líder da oposição no Congresso, promete resistir. “A ideia é debater [o “jabuti”] na Comissão de Constituição e Justiça e na comissão especial. Se a proposta não for derrotada, nós vamos examinar quais outras medidas tomar”, afirma. Procurado pela DW, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (PSL-GO), não respondeu até a publicação desta reportagem.

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