Política

“População ainda segue Bolsonaro. Nunca iríamos conseguir o lockdown”

Prefeito de Manaus, um dos municípios brasileiros mais afetados pelo coronavírus, Arthur Virgílio teme o avanço da doença no Amazonas

O ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto (Foto: George Gianni/Divulgação)
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Após atingir um pico de 140 enterros em um único dia, a cidade de Manaus atravessa uma fase menos aguda da crise. O mais recente boletim do governo do Amazonas, divulgado na quarta-feira 20, indica 67 enterros. Antes da pandemia do novo coronavírus, a média nos cemitérios da prefeitura era de 30 por dia. Também caem os atendimentos de emergência, sinal de que a curva epidemiológica está se achatando. 

Mas a crise sanitária ainda tira o sono do prefeito Arthur Virgílio (PSDB). “Manaus está se livrando do problema, mas o interior vive uma devastação, uma coisa imperdoável”, lamentou, em entrevista por telefone a CartaCapital. Em dois meses e meio, a capital amazonense teve mais de 12 mil casos da doença e mil óbitos. A doença se espraia pelo interior, que contabiliza agora mais de 13 mil casos da doença. Treze das 20 cidades brasileiras com a maior proporção de moradores infectados ficam no Amazonas. As únicas UTIs do estado, porém, estão concentradas na capital.

Outra angústia, relata, é o avanço da doença entre as populações indígenas. Na quarta-feira, o prefeito divulgou um vídeo no qual acusa o governo federal. “Eu temo um genocídio e quero denunciar essa coisa ao mundo inteiro. Nós temos aqui um governo que não liga para a vida dos índios.”

Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 80 dos 110 indígenas mortos pelo coronavírus vivem no Amazonas. As aldeias se concentram no Alto Solimões e no Alto Rio Negro, cujo acesso é apenas de avião. “São pelo menos 27 etnias, cada uma falando sua língua. Os índios guardam uma história oral. Quando você perde um índio, você perde a história de 10.000 anos de civilização”, lamenta.

CartaCapital: Como o senhor resumiria a situação de Manaus?

Arthur Virgílio: É preciso muito cuidado ao dar essa notícia, mas estamos sob relativo controle. Os hospitais estão com lotação de 90%, nossos hospitais de campanha vivem cheios. Mas os chamados do Samu, que são um termômetro, caíram. Eram 140, 160 por dia e estão em 30 ou 40. Vejo sinais de arrefecimento. Já chegamos a enterrar 167 pessoas em um único dia. Agora temos em torno de 60. Já não estamos tão longe da média do País. Minha preocupação é o interior, porque há poucas UTIs. Tanto com as cidades em si e quanto com o reflexo do interior em Manaus. Disso eu tenho muito medo.  E estão começando a morrer índios.

Indiretamente, as mortes cabem a ele [Bolsonaro]

CC: Algumas cidades e aldeias estão há centenas de quilômetros de distância. Seria difícil ajudá-las…

AV: As pessoas têm como alternativa ficar lá. Morre e pronto, faz um enterro modesto, coerente com a própria vida. Temos tido a ajuda dos Médicos Sem Fronteiras. Estou vendo a coisa muito mal parada. Manaus está se livrando do problema, mas o interior vive uma devastação, uma devastação, uma coisa imperdoável.

CC: Pode explicar melhor?

AV: Tem havido contaminação tanto no Alto Solimões, quanto no Alto Rio Negro. Os índios guardam uma história oral. São pelo menos 27 etnias, cada um falando sua língua. Quando você perde um índio, você perde a história de 10.000 anos de civilização. A morte de uma parte dessa história. A morte de um índio se reveste de uma força muito grande.

Sepultamentos no cemitério Nossa Sra. Aparecida, em Manaus, capital do Amazonas. Foto: Alex Pazuello/Semcom

CC: Como avalia a postura do presidente Bolsonaro frente à pandemia?

AV: Bolsonaro é completamente alheio a tudo isso. Falei com o vice-governador, vice-presidente, com os ex-ministros Mandetta e Teich. Recebemos pouca ajuda, mas cada um deu alguma contribuição. Já ele é completamente alheio à pandemia. Eu, sinceramente, não o entendo. Porque ele costumava seguir todas as políticas do Trump, e mesmo o Trump mudou de postura. Bolsonaro é o único líder de um país expressivo que ignora a a lógica e a ciência. Ele faz com que uma parte da população não leve a sério a covid-19. Indiretamente, as mortes cabem a ele.

CC: Tanto ele como o governador de Manaus tem sido alvo de pedidos de impeachment…

CC: Tenho evitado discutir esses temas. Tem muitos pedidos de impeachment contra o governador aqui [Wilson Lima, do PSC]. Eu me recuso a discutir esse impeachment no meio de uma pandemia. Vai mudar de governador no momento em que ele está fazendo algumas coisas produtivas, acertando o passo? Deixa para depois da pandemia.

CC: E no caso do Bolsonaro?

AV: Penso que o impeachment poderia tirar nossa força na luta contra a covid-19. Mas vejo como inconveniente alguém como o Bolsonaro permanecer no governo. Ele nos boicotou o tempo todo, não tem tomado nenhuma providência útil. Ele sabe que, graças à ele, as expectativas de crescimento de 2,5%, de independência do Banco Central, foram por água abaixo. Foi assim em 2019, estava sendo assim antes da pandemia. O Brasil ia crescer 0,8%. A pandemia nos leva a uma queda de 4, 5%. Ele usa a pandemia para se defender das tentativas de impeachment, nas quais eu ainda não me envolvi. Mas também contra a recessão que vem aí. Se não tivemos uma reação mais rápida, foi porque ele boicotou.

CC: Há chance de Manaus entrar em lockdown

AV: Mesmo quando parecia ser a solução mais adequada para Manaus, eu fui contra, porque o lockdown não resolveu nada em lugar nenhum. Cheguei a ser criticado por isso. Aqui temos um forte tráfico de drogas, uma população que ainda segue o Bolsonaro. Nunca iríamos conseguir o lockdown. Iriam resistir, com pedradas, pedaço de pau, sabe-se lá o quê. Iria haver conflito entre a polícia e as pessoas. Temos agido com a Polícia Militar de forma educativa. E para proteger os fiscais, que são um poder desarmado, para multar e fechar estabelecimentos. É um trabalho educativo e, ao mesmo tempo, de limitação, para as pessoas não ficarem muito à vontade. Nossos comerciais de TV e internet são chocantes. Não existe uma definição para lockdown. Quando você para parte da cidade, você está fazendo lockdown. Não existe um lockdown no qual você prende a pessoa completamente.

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