Política

Pelo fim do vale-tudo, o TSE fecha o cerco às milícias digitais

No topo do ranking da desinformação, figuram ataques ao STF e mentiras sobre as urnas eletrônicas

Operador. Carlos Bolsonaro controla as redes do pai, cujas mentiras logo se alastram pelo Telegram e pelo WhatsApp - Imagem: Redes sociais
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Desde a eleição de 2018, marcada pela disseminação em massa de fake news e pelo despreparo das instituições democráticas para lidar com a desinformação, o Brasil pouco avançou no combate à indústria da mentira. Mais de 12 milhões de brasileiros são divulgadores contumazes de notícias falsas na internet, 62% da população não sabe reconhecê-las e 42% nem sequer questiona o conteúdo recebido pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, revela a pesquisa Iceberg Digital, da Kaspersky. Enquanto isso, o PL das Fake News patina na Câmara dos Deputados e o Judiciá­rio segue sendo desafiado reiteradamente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nos últimos dias, o ex-capitão sofreu ao menos três reveses na Justiça por propagar fake news. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, acaba de autorizar o envio de provas contra Bolsonaro para o Tribunal Superior Eleitoral, que o investiga pela divulgação distorcida de um inquérito sigiloso da Polícia Federal. Durante uma live, o presidente disse que a apuração expunha a vulnerabilidade das urnas eletrônicas. Cascata. A PF investiga um ataque hacker ao site do TSE, sem qualquer relação com as urnas. Além disso, Bolsonaro foi incluí­do no inquérito sobre a atuação das milícias digitais que corre na Suprema Corte e também será investigado por difundir a delirante tese de que a vacina contra a Covid favorece a transmissão do vírus HIV.

Em vez de dar um passo atrás, Bolsonaro optou por esticar a corda. Publicamente, ele fez ao menos cinco ataques ao TSE e STF nos últimos três meses, além de alimentar suspeitas sobre as urnas eletrônicas. As declarações funcionam como um sinal verde para que as milícias digitais bolsonaristas aumentem a carga de fake news difundida na internet. Em apenas 30 dias, o termo “STF” foi mencionado 192 mil vezes em três redes sociais, e 75,9% das postagens eram depreciativas. O TSE, por sua vez, foi citado 57 mil vezes, e 70% dos comentários eram negativos. O último pico ocorreu em 17 de fevereiro, um dia após Bolsonaro divulgar, em sua live semanal, uma lista sigilosa de questionamentos feitos pelos militares sobre a segurança nas urnas. A narrativa detratora foi puxada pelo Jornal da Cidade ­On Line, site bolsonarista com mais de 74 mil interações, que se incumbiu de divulgar o vídeo do ex-capitão. Já uma postagem do deputado Filipe Barros, com a reprodução de uma declaração de Bolsonaro, “Fachin, Moraes e Barroso querem me tirar na canetada”, teve 51 mil interações.

Se no palco aberto das redes sociais as provocações ao Judiciário correm soltas, imagine o que é difundido em aplicativos de mensagem como o WhatsApp, presente em 98% dos smartphones brasileiros, e o Telegram, o submundo do bolsonarismo radical. De 10 de fevereiro a 3 de março, a mensagem mais compartilhada nesses apps foi sobre manipulação do resultado eleitoral. No ranking de textos mais viralizados, também estão pedidos de i­mpeachment de Alexandre de Moraes e mentiras envolvendo a “lista de perguntas” sobre a segurança das urnas. “Bolsonaro tem ido a países não só fazer negócio, mas para entregar o dossiê feito pelos militares contra o STF, pois eles sabem que haverá confronto nas ruas com ele ganhando as eleições”, diz uma das publicações mais populares. Já os termos mais utilizados foram “Alexandre de Moraes”, “Voto Impresso”, “Allan dos Santos” e “Urna Eletrônica”. O levantamento foi feito pelo Monitor de WhatsApp, parte do projeto “Eleições Sem Fake”, desenvolvido por pesquisadores da UFMG e coordenado por Fabrício Benevenuto. Os dados municiam o TSE e as agências de checagem.

No topo do ranking da desinformação, figuram ataques ao STF e mentiras sobre as urnas eletrônicas

Allan dos Santos, por sinal, é um dos que mais debocham do Judiciário. Foragido no EUA, ele chegou a sugerir, em vídeo gravado na porta da Disney, que Moraes pedisse “ajuda ao Pato Donald” para encontrá-lo. A provocação ocorreu logo após o blogueiro bolsonarista ter três contas no Telegram excluídas por determinação do ministro – foi a primeira vez que a empresa, com sede em Dubai, acatou uma decisão da Suprema Corte brasileira. O mitômano não tardou, porém, a driblar o cerco. Utiliza um canal reserva com 22 mil inscritos dentro do aplicativo, valendo-se de uma tecnologia que lhe permite acessar contas no Brasil.

Pego de calças curtas em 2018, o TSE recentemente passou dois importantes recados a Bolsonaro. Primeiro, ao cassar o mandato do deputado federal Fernando Franceschini, denunciou sem apresentar qualquer prova ou indício palpável uma fraude nas eleições passadas. A segunda sinalização foi o julgamento dos dois pedidos de cassação da chapa Bolsonaro/Mourão. Embora eles não tenham sido acatados, os humores podem mudar a qualquer momento, uma vez que ­Moraes vai assumir a presidência do ­Tribunal Eleitoral a partir de agosto.

Em fevereiro, o TSE também firmou acordo com oito plataformas e enviou novo ofício ao Telegram, reiterando pedidos de colaboração para conter os impactos das fake news sobre o processo eleitoral. O aplicativo de origem russa, presente em 60% dos celulares brasileiros, não possui sede ou representante no Brasil e fecha os olhos para a desinformação propagada por seus usuários. No Brasil, 92,5% dos usuários que seguem temas políticos na plataforma são bolsonaristas, atesta um estudo da UFMG.

Esperança. Silva acredita que o PL das Fake News será votado ainda em março – Imagem: Pablo Valadares/Ag.Câmara

As plataformas se comprometeram a criar filtros para identificar e remover notícias falsas, além de desenvolver meios para informar os usuários sobre notícias oficiais das eleições de 2022. A Corte eleitoral também começou a trabalhar em um programa de proteção à reputação institucional e, segundo fontes, quer incrementar tecnologias para acelerar a derrubada de conteúdos nocivos ao processo eleitoral. “Comparando a Justiça Eleitoral de hoje com a de 2018, vemos que o TSE tem uma musculatura maior para regrar. Avançou com acordos junto às empresas e proibiu o disparo em massa e propaganda eleitoral paga na internet, à exceção dos conteúdos identificáveis”, avalia Francisco Cruz, diretor do Internet LAB, centro de pesquisas na área de direito e tecnologia.

Na Câmara, tramita o Projeto de Lei 2.630/20 sob a relatoria do deputado Orlando Silva, do PCdoB. Inicialmente, a ideia era fechar o texto em março, mas um novo acordo deve retardar o cronograma. De acordo com o parlamentar, ele acertou com o presidente da Casa, Arthur Lira, um roteiro iniciado com uma reunião de líderes e bancadas. “A minha expectativa é votar ainda em março. O que tenho dito aos deputados é que é melhor que o Congresso vote as regras para que tenhamos um ambiente menos tóxico na política e nas eleições, em vez de deixar que o Poder Judiciário estabeleça as regras, dando vazão a ativismos judiciais.”

Mais de 12 milhões de brasileiros são divulgadores contumazes de notícias falsas

A costura entre Lira e Orlando está sendo fundamental para acelerar o andamento do PL, ao contrário do que se imaginava. A regulamentação dará a Lira entrada junto à atual oposição, que possui mais de 150 deputados, e que pode vir a ser a base governista, caso Bolsonaro não seja reeleito. No jogo de equilibrar pratos e interesses, o setor privado também tem feito seu lobby. O Facebook chegou a publicar um anúncio pago em veículos de comunicação contra o PL das Fake News, que, além de combater as notícias falsas e seus disseminadores, também proíbe disparos em massa, exige a remuneração a sites jornalísticos e limita o uso massivo de dados pessoais dos usuários.

A expectativa de especialistas que monitoram as estratégias digitais de Bolsonaro é que ele invista ainda mais na propagação de fake news. Não estará, porém, reinando sozinho na selva das redes sociais. “Desde a saída do Moro e da capitulação em 7 de setembro de 2021, ele tem perdido soldados. Alguns foram para a militância virtual de Moro, e também vemos surgirem páginas de apoio a Paulo Guedes. Claramente, isso não é espontâneo. Um truque em uma eleição fica velho para a próxima”, explica Fabro ­Steibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pelo fim do vale-tudo”

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