Política

“O que é bom aparece, e o que aparece é bom”: uma análise do discurso de Bolsonaro

Especialistas veem que nova onda de ataques à mídia reforça ideal político do presidente, que ainda não respondeu sobre Queiroz e Michelle

Presidente Jair Bolsonaro (Foto: Sergio Lima/AFP)
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O presidente Jair Bolsonaro voltou a ocupar manchetes na semana por seus mais recentes ataques à imprensa, impulsionados, principalmente, pela falta de respostas da suposta relação entre a primeira-dama Michelle Bolsonaro e o ex-assessor Fabrício Queiroz.

Se por um lado a pergunta “Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil reais de Fabrício Queiroz?” foi capaz de fazê-lo ameaçar “encher a boca” de um repórter “de porrada”, por outro também foi capaz de dissolver a imagem “pacífica” com que o presidente vinha tentando manter nos últimos meses.

Para analistas de política e comunicação entrevistados por CartaCapital, tanto o silêncio quanto o furor de esbravejar contra repórteres em frente às câmeras fazem parte de uma construção de imagem feita minuciosamente pelo presidente. É nesse contexto que a cientista política Deysi Cioccari encaixa uma frase atribuída ao escritor Guy Debord, criador do conceito de “sociedade do espetáculo”: o que é bom aparece, e o que aparece é bom.

“[Bolsonaro] sobrevive sendo o espetáculo dele próprio, então, quando ele não tem mais argumento, mais o poder da retórica, ele desiste de gerir o sistema e passa a destruir. Isso dá like, isso dá visualização, e ele acaba sempre se mantendo em evidência”, comenta Cioccari. 

No entanto, a recusa do presidente em comentar os cheques que teriam sido depositados na conta da primeira-dama por Queiroz – acusado de ser o operador das “rachadinhas” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos) pelo Ministério Público do Rio – voltou contra ele no ambiente digital.

No domingo, após a ameaça ao jornalista, a pergunta sobre o caso engajou mais mais de 1 milhão de publicações únicas em menos de 24 horas. O professor Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), fez um levantamento que mostrou Bolsonaro “sozinho e cercado” no ambiente virtual, sem a defesa de seus apoiadores.

Protesto saiu das redes e foi para frente do Palácio do Planalto, em Brasília (Foto: Evaristo Sá/AFP)

Mesmo assim, a presença de Bolsonaro nas redes também foi capaz de engajar, na mesma semana, uma campanha contra a jornalista Maria Júlia Coutinho, da TV Globo, após a apresentadora do Jornal Hoje destacar que o presidente não fez nenhuma fala direta sobre as vítimas do coronavírus no Brasil em um evento de apoio à hidroxicloroquina.

Na visão de Janaisa Viscardi, doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a mídia ainda não aprendeu a lidar com a estratégia de Bolsonaro no ambiente digital – o mesmo ambiente do qual o então deputado federal, ao longo dos anos, conseguiu ampla divulgação gratuita e uma horda de admiradores.

“Se todos os dias ele estiver xingando um repórter, a mídia tradicional pode aprender com o que aconteceu nos últimos anos: o quanto sua fala, que foi sendo reverberada nas mídias tradicionais, contribuiu para a construção de sua persona política”, analisa Viscardi. “É um cenário bastante complexo, mas a mídia precisa aprender com a dinâmica do Brasil e dos outros países”, diz. 

persona Bolsonaro

Para compreender por que Jair Bolsonaro volta seus esforços digitais aos jornalistas, uma das figuras centrais de comparação é o presidente americano Donald Trump. Ídolo de Bolsonaro, Trump frequentemente é associado ao que o historiador Richard Hofstadter definiu como “estilo paranoico” na política americana.

A tese, que data de 1964, vem sendo usada desde os anos 70 para explicar características peculiares no Partido Republicano desde então. A união de teorias conspiratórias, anti-intelectualismo, desilusão com elites econômicas, símbolos culturais e o famoso “establishment” político fazem parte do conjunto de radicalização da extrema-direita.

Deysi Cioccari define Bolsonaro como um “homem pós-moderno”, em termos da ciência política. Mesmo com um histórico de presidentes que tiveram embates com a imprensa, como Fernando Collor (1990-1992) e Lula (2002-2010), a cientista analisa que é a primeira vez que ataques diretos e expressivos são feitos com tanta recorrência.

“Toda a construção dele é de ataques às instituições, à própria imprensa, às universidades, que são símbolos de um homem pós-moderno que não aceita narrativas lineares”, explica. “A imprensa se cacifa de uma base de dados e o Bolsonaro vai lá e refuta tudo isso. Isso é extremamente negativo nele e preocupante. Ele é nosso primeiro presidente com ataque direto à imprensa”, diz. 

Já para Janaisa Viscardi, é importante ressaltar que o presidente não é um “ingênuo” que age sob forte estresse do cargo. A trajetória de 30 anos de vida política o fez saber como jogar o jogo, analisa a linguista.

“Esse é um exercício da construção dessa persona política, algo que é sistemático na produção dele, não é aleatório. É muito importante que as pessoas entendam isso. Bolsonaro é político, ele está há muitos anos no poder. Ele conhece esse jogo, tem gente junto com ele, não está sozinho. Pode parecer muito “tosco”, mas é construído para ser assim”, diz. 

Popularidade e mansidão

Com a popularidade em ascensão devido aos impactos do auxílio-emergencial na população – especialmente no eleitorado mais pobre e residente na região Nordeste, rincão no qual Bolsonaro não tinha sucesso -, há quem associe a mais recente série de ataques a uma confiança estimulada pelos números.

Na visão de Cioccari, Bolsonaro precisa cacifar o “caos” enquanto 2022 ainda está distante. Os ataques à imprensa, como em toda a trajetória política do presidente desde 2018, quando ainda era candidato, irão acontecer mais vezes.

Esses ataques à imprensa são inerentes a ele. Para conseguir vencer em 2022, dependendo dos candidatos, aí pode ser que ele precise rever um processo de comunicação. Mas hoje, com esse discurso reacionário dele, ele já tem cacife – ainda mais com esse auxílio que ele tem dado”, comenta. 

Imagens de Bolsonaro com o chapéu de palha ou de “cangaceiro”, símbolo dos sertões nordestinos, também passam a fazer parte do cenário de constante campanha. No entanto, Janaisa ressalta que as fotos precisam do contexto correto: o de que o presidente tem causado mais aglomerações em meio à pior crise sanitária dos últimos 100 anos.

Segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, já são mais de 118 mil mortes por Covid-19 confirmadas no Brasil. Os casos passam de 3,7 milhões.

A gente pode olhar não só pro chapéu – o chapéu é representativo para essas imagens que vão dar esse caráter de “eu sou o Nordeste”, e como o “povo me quer bem”, porque as fotos são em torno das pessoas. A gente nunca pode deixar de trazer o fato de que é no meio de uma pandemia e ele abraça pessoas e beija pessoas. Essas imagens precisam vir com esse significado, esse olhar de um presidente que não está preocupado com a população”, diz. 

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