Política

O que é a austeridade? E por que os neoliberais a defendem?

Não se engane, os economistas do mainstream não estão preocupados com a moralidade ou o sentido republicano do termo, mas em perpetuar privilégios

Para os neoliberais, só os trabalhadores e o Estado devem ser franciscanos
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No discurso econômico contemporâneo, austeridade tem um significado muito diferente do significado moral. Moralmente, a austeridade é quase sempre vista como virtude. Julgamos negativamente aquele que peca pelo excesso, que não sabe se conter, que tem desejos ou apetites exageros, e que, economicamente, “vive além dos seus meios”, que não poupa para o futuro, que se endivida para financiar caprichos de consumo ou noitadas com jogos e bebidas.

Por outro lado, louvamos a moderação, a aceitação de limites, em alguns casos até mesmo a rigidez moral e religiosa na conduta pessoal. No terreno do orçamento individual, observamos como o desperdício e o abuso podem criar dificuldades e até arruinar uma família, prejudicando a escola dos filhos e a poupança para problemas futuros de saúde, por exemplo. No terreno da moral, portanto, a austeridade é vista como uma virtude, como é também na gestão do orçamento familiar.

O problema não é tão simples, mas muito mais complexo para o governo e o orçamento público. É claro que todos defendem a máxima eficiência e o mínimo desperdício no uso de recursos públicos. Este tipo de austeridade é fundamental para o trato da coisa pública, da república, do governo que presta contas aos cidadãos, é uma austeridade desejável e deve ser fiscalizada pelos cidadãos.

O problema é o uso que o neoliberalismo faz da austeridade e de seu valor moral. No discurso neoliberal, austeridade tem um sentido muito diferente daquele que consideramos justo no campo da moral privada ou na conduta republicana do governo. No neoliberalismo, a austeridade é usada para aumentar a injustiça no uso dos recursos, aumentar a concentração da renda nacional e prejudicar seu crescimento e da geração de empregos. Ou seja, a austeridade do Estado que é pregada pelos neoliberais pode prejudicar o orçamento familiar, sobretudo dos trabalhadores e das famílias economicamente mais vulneráveis.

Isso ocorre porque os neoliberais pregam a austeridade para finalidades injustas e nos momentos errados. O que é o neoliberalismo? Uma doutrina que valoriza a concorrência entre os indivíduos como o instrumento da economia de mercado capaz de disciplinar o comportamento dos cidadãos e empresas para forçá-los ao trabalho duro, à busca da criatividade e da máxima eficiência na oferta de bens e serviços para os consumidores. O próprio Estado deve ser regido por metas e regras de desempenho concorrencial e deve estimular e preparar os cidadãos para a competição e não para o comodismo.

O neoliberalismo, portanto, afirma que privilegia o bem-estar dos consumidores e não o comodismo dos produtores, que devem ser tirados da rotina e da preguiça pela máxima competição. O consumo futuro só será garantido, no entanto, pela poupança dos empresários. Nada pode prejudicar a poupança dos empresários, pois dela dependeria o investimento na produção e, portanto, a geração de empregos e o bem-estar futuro dos consumidores.

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É com base neste argumento que, na prática, os economistas neoliberais acabam por defender mais o empresário do que o consumidor. A poupança é encarada por eles como oposta ao consumo. Aliás, normalmente os economistas neoliberais são empregados ou financiados por associações representativas dos empresários ou diretamente por empresários, e não por organizações de defesa dos consumidores ou dos trabalhadores. Seus argumentos justificam a moderação no crescimento de salários e da oferta de bens e serviços públicos, sob o pretexto de que isto acabará por prejudicar o próprio consumidor no futuro ao prejudicar a poupança dos empresários.

É por isso que a realização de ideais neoliberais aumentou a injustiça e a desigualdade no mundo desde a década de 1980. Na prática, os argumentos neoliberais são usados para justificar a moderação salarial e dos serviços públicos gratuitos, mas não dos lucros. A austeridade proposta não é austeridade daqueles que já consomem mais e melhor, os ricos, mas a austeridade dos trabalhadores e dos cidadãos que dependem de serviços públicos, pois os lucros dos ricos são vistos como a fonte da poupança que melhorará a vida de todos em um futuro que não chega nunca. É por isso que o uso que o neoliberalismo faz da austeridade e de seu valor moral aumenta a injustiça.

De fato, políticos e economistas neoliberais defendem uma austeridade mais ou menos permanente que constrange o consumo de bens e serviços privados e públicos pelos trabalhadores, mas pouco ou nada falam sobre o consumo diferenciado dos ricos que, aliás, eles buscam imitar em seu próprio estilo de vida.

O problema é que a ideia de que a concentração da renda para os empresários e grupos sociais ricos aumentaria o crescimento econômico e, assim, “gotejaria” para os de baixo foi amplamente refutada pelos fatos. Apesar disto, a defesa da austeridade permanente inspira reformas neoliberais do governo Temer. A trabalhista reduziria o custo do trabalho e, ao contrário que ocorre em outros países, supostamente aumentaria o emprego e a renda nacional. A lei do teto do gasto público limitaria a expansão do consumo de bens e serviços públicos e, ao contrário da experiência do resto do mundo, supostamente também aumentaria o investimento privado e o crescimento econômico.

O equívoco da previsão neoliberal resulta do fato de que a concentração da renda não assegura o investimento privado, pois também limita o crescimento do mercado a ser atendido pelos investimentos. Os economistas neoliberais não entendem que o Estado e os trabalhadores tendem a gastar o que recebem e, assim, seu gasto aumenta o mercado e os lucros que estimulam o investimento privado. Se o gasto dos trabalhadores e do Estado se reduz, o mercado para o investimento privado também se reduz. É por isso que há evidências estatísticas convincentes que a desigualdade diminui o nível e a duração das fases de crescimento, ao contrário da previsão neoliberal.

Além da austeridade permanente e injusta, os neoliberais costumam propor a austeridade no momento errado, ou seja, quando a economia desacelera. Uma desaceleração da economia trazida por uma desaceleração do gasto privado vai fatalmente se refletir em uma desaceleração da arrecadação de impostos. A proposta da austeridade fiscal é que, diante do problema de arrecadação, o governo deva cortar gastos para não ter déficits. Sem déficits, o governo asseguraria o pagamento da dívida pública aos poupadores privados que investiram nela.

O problema é que este argumento confunde o orçamento público e o orçamento familiar. Quando uma família “aperta os cintos” para não “viver além dos seus meios” e para evitar a explosão de sua dívida, a redução do gasto familiar não afeta a economia como um todo e, portanto, não influencia suas próprias receitas. Quando o Estado acompanha a desaceleração dos gastos privado e corta os seus, ele desacelera a economia e prejudica sua própria arrecadação de impostos, podendo gerar um círculo vicioso que leva à recessão, ao déficit público e ao aumento da dívida pública.

O certo seria gastar contra a corrente, anticiclicamente, mesmo que isso aumente o déficit público temporariamente. É melhor ter um déficit para evitar uma recessão do que sofrer um déficit involuntariamente por causa da recessão que a austeridade contribui para trazer.

É por isso que a austeridade econômica é injusta e inadequada: amplia a concentração da renda e a pobreza, e diminui o crescimento da renda e do emprego. Não se engane, a austeridade que você pode achar boa no terreno da moral não é boa, mas injusta e perversa, no terreno da macroeconomia e do orçamento público. Não se deixe levar pelos equívocos, muitas vezes conscientes, do discurso neoliberal da austeridade. A austeridade é uma ideia muito perigosa quando aplicada no lugar errado. 

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